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DO AMOR INCONDICIONAL





Escreveu um livro, do amor incondicional.

Como se vive esse amor, se é tão emaranhado descrevê-lo, escrevê-lo? Complicou mais, e quis encandear os exemplos desse amor. Avançar no índice seria subir um degrau, complicar a aposta, apresentar um amor incondicional ainda mais incondicional que o anterior, é isso possível?

Mais difícil ficou o seu trabalho de Hércules: atribuir níveis de incondicional – este tem dez miligramas, aquele quarenta. É mais forte, é para ler depois, encadeados, todos, como se fossem missangas enfiadas no mesmo fio. E são.

o Amor incondicional é um algo que não se define bem a si mesmo. Uma emoção das mais fortes, um sentimento sublime, um estado de alma lapidado , sem arestas nem gumes, um estado de espírito para o descrente da alma, uma fisiologia, uma biologia, um produto acabado de conexões de sinapses que em si mesmas são a-sentimentais?

Tudo isso, nada disso, isso em partes.

É mais incondicional o amor do cão pelo dono, ou do pai pelo filho? Se for caso disso - oxalá não o seja para ninguém -  não dão ambos a vida por quem amam? E o que dizer do amor do mártir, e o do místico?

E o amor do narciso? esse é um dos grandes, amores.

O amor. O que é o amor? Um conceito universal inequívoco? Uma amálgama de abstrações, construções falaciosas da mente humana? Construções necessárias? O colo primordial? Uma desilusão de guionista de novela?

Que acometimento se abateu sobre ele, o escritor irrequieto,para falar sobre estes assuntos?  Tanto tema à mão e mais simpático! Por que quis complicar o tormento existencial das suas dúvidas? Não teria sido melhor tomar um comprimido? Beber um bloody Mary, um absinto com água tónica, e uma ginja no fundo do copo, para onde poderia ficar o resto da noite a olhar, para ela, a ginja, culpá-la dos mistérios insondáveis do mundo, ofendê-la vernaculamente, ir para casa completamente anestesiado e no dia seguinte esquecer tudo isso e voltar a ter uma vida normal?

Perguntas sobre perguntas. Um dominó.

Escolheu a opção mais complicada, a que não dá um milhão de dólares.

Que interesse tem dissecar o amor incondicional quando o condicional, muito mais acessível e quotidiano, dá para um tratado infindável de possibilidades, de teses, de antíteses? De guerras fratricidas? Só esse é um manual em fascículos infindáveis.

Não, é um homem teimoso que não toma os comprimidos. Podia ainda assim fumar um cigarro de haxixe, depois de jantar, e amolecer, e ver e penetrar nos filmes do seu pack canais, como se os estivesse a viver a quarenta e quatro dimensões, na sua cabeça, a eclodir de cores num ecrã Paramount.

A seguir iria para a cama, e podia fazer amor com a sua companheira, ou consigo próprio, ou mesmo só imaginá-lo,e ter um orgasmo magnífico potenciado em prazer e prolongamento ao equivalente à soma dos tempos de prazer de todos os orgasmos juntos, num semestre.

No caso de estar a dirigir-se para velho, ainda mais essa contabilidade do efeito do charro seria proveitosa e lucrativa. Lucrativa para quê? Para se esquecer de vez de assuntos enfadonhos, e  vir a gozar em substituição, de momentos à Tarzan Taborda, que para os mais recentes que não sabem, foi um rapaz de antigamente cheio de energia e power, como se usa agora dizer em bom português saxónico, a língua contemporânea das interconexões laborais e outras.

Voltando ao tema, este escritor, esteve uma década ou mais (se calhar a vida toda) a pensar nos dez amores incondicionais sobre os que escreveria. A escolher os eleitos. Levou outro tanto a decidir se não iria ofender pela omissão nenhum, que lhe escapasse. E ás vezes o óbvio é o que ofusca mesmo quando está à frente do olhar. É bem possível que existam mais, menos, só um, mesmo nenhum, tipo de amor incondicional. É como falar de futebol: todos são exímios mestres no assunto, e é só perdigotos para o ar. os que não cospem, fazem-no para dentro.

Gastou dois anos a escrever, um a decidir o passo seguinte, poderia rasgar todas as folhas miudinhamente, e ficar na história da não história incógnita, como o grande livro jamais lido sobre o amor incondicional. Não o fez porque caiu na esparrela emocional com que se armadilhou: tinha ganho um amor incondicional sobre as suas histórias do amor incondicional. Tinha que as mostrar.

Decidiu partilhar, poderia vir a difamar definitivamente o seu bom nome por isso. Arriscou, porque não era um indivíduo sensato.

Fez umas dezenas de revisões finais, era um indeciso, de decisões engasgadas, enviou um exemplar a todas as editoras do local onde paga a taxa de protecção civil e de esgotos.

No dia em que o fez, acometido de um alívio colossal, mas já arrependido pela possível humilhação da omissão, tirou férias de escrever sobre que assunto fosse, nem mesmo uma lista de compras, e quanto ao tema em apreço, deixou esse sofrimento para quando fosse mais velho.

E aguardou.Aguardou.Aguardou ainda, menos convencido.

Amargou.

Que interesse tem escrever sobre o amor incondicional? Nenhum, zero, aperreador, indigesto. Ou estaria mal escrito, podia ser. Ou mal pensado, mais grave, podia ser.

Não houve volta do correio. Não, recebeu duas voltas: uma compassiva, um bater nas costas via email, explicando que a editora não publicava coisas sobre  amor incondicional, lamechice que não vende;  outra foi a de um editor célebre, que numa entrevista cheia de estilo, para uma revista de grande tiragem, tinha dito pouco tempo antes, que lia todos os originais que lhe enviavam, e não deixava nenhuma alma ansiosa sem resposta. 

O escritor com inquietudes,  leu essa entrevista, achou que estava ali um homem honesto consigo próprio, e são esses, tão poucochinhos já, com quem se merece privar. Enviou-lhe o original. O editor, honesto e cheio de estilo, enviou quatro meses depois uma missiva a dizer que não lhe tinham enviado nada, como poderia ele, emitir uma opinião sobre o valor do amor incondicional? Se não o recebeu?
Recebeu-o de novo, sabendo-se que já tinha recebido o anterior.

Passaram  uns tantos meses mais e o editor, também exímio palrador, não respondeu, estava ocupado a dar mais entrevistas com estilo.

Com isto neste estado crítico ,tornou-se um imperativo agir.

O mundo não sabe, esquecido,mas precisa de saber - ser lembrado -umas quantas coisas sobre o amor incondicional. E será essa a missão ainda que fastidiosa, mal escrita e mal pensada, do escritor dos formigueiros que formigam comichões na  cabeça, coração e partes etéreas.

A partir da primeira semana do mês de Janeiro, do ano de 2018, em formato blog uma história sobre o amor incondicional.

Para ser lido e refutado, ou não.

Mais para a frente quando se espera que os leitores já estejam viciados,pedinchará, num estilo moderno de “funding” qualquer coisa, apoio à publicação em papel impresso, uma nostalgia que continua apegada a si - o papel com letras de tipografia, belas e redondas.


Até lá amem-se incondicionalmente, que é o que se leva da borra dos dias.


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