O apartamento, extensíssimo, talvez sobrecarregado de
mobiliário e outros objectos, era um velório, não de defunto, mas de muitas
velas iluminadas. O motivo de toda a exuberante iluminária, era um bom motivo:
uma comemoração, um júbilo, Deo gratias. Nascia o menino, nasceu, há muitos,
muitos anos passados. A comemoração do acontecimento, um ritual, uma alegria, o
momento mais alto do ano dos encontros familiares, os sinos das igrejas a chamarem
à comunhão, o amor a derreter-se nas pessoas, a comemoração com os amigos, as
saudações e votos aos conhecidos, inimigos temporariamente em tréguas, conseguidas
com a ajuda das fumigações de compaixão, o respirar profundo. Um sentimento
nobre. Mais, uma missão na vida, que toca aos seres superiores, comiserarem pelos desvalidos.
As velas de pura parafina, a exalarem um quase impercepptível
olor a sebo, mas eram de parafina pura, era-lhes permitido exalarem o que lhe
apetecesse, faróis acessos intermitentes no alto de castiçais de prata repuxada
a brilhos ofuscantes. Criam no ambiente projecções nos espaços de parede não
preenchidos por quadros de artistas consagrados. Ao mesmo tempo, transmitem
paz, num piscar chamas ténues, amareladas, quentes . Parece
uma casa cheia de gente, de sombras nas paredes, afinal vazia.
Num tempo inimaginado de alguma vez ter sido possível, a olhos
de quem agora vê, as serviçais – velhas mulheres inférteis, que nunca foram
meninas de brincar – obedecendo cegamente as ordens rigorosas, atentas,
liderança guiada, da senhora, conseguiram esse milagre: o dos castiçais
ofuscantes.
Havia silêncio em toda a casa. Numa comemoração jubilosa não
há silêncio, mas sendo um apartamento extensíssimo com velas da mais pura
parafina, e serviçais bem conduzidas o silêncio não faz espécie.
Os preparativos para a festa. Começaram uma semana antes e
agora, tudo pronto para a ceia de natal. Uma azáfama, um nervo, uma tensão,
elas a serem levadas aos limites – aceitam todos os limites – a senhora,
raladíssima, uma perfecionista ainda mais naquela noite tão especial,do
nascimento do deus-menino, vindo à terra anunciar a culpa e a descupa dos pecados dos
homens.
O que dizer da mesa se já se indiciou ser uma casa que não
olha a despesa para apresentar o melhor de si, dos seus donos, a noite é única,
todos os anos única, no universo dos homens desencontrados de si e dos seus
irmãos, nasceu o homem redentor.
Estão os dois sentados, os dois doutores, assim tratados em
reverência pela criadagem. Obviamente, ele afastou-lhe o cadeirão e cumpriu o
protocolo de a sentar na mesa onde vai acontecer uma ceia que é jantar. De uma
forma tão natural, que se percebe ser um gesto muito antigo, de gerações
anteriores. Códigos rígidos mais do que ensaiados. Os preceitos de etiqueta dos
homens, os das mulheres, cada género com os seus. A seguir sentou-se ele,
direitíssimo, no seu cadeirão, no lado oposto da mesa opulenta e
irrepreensível.
encadeados de se verem cristalinamente - houvesse vontade no olhar - por um centro de mesa, com flores “rosa-chá”,
e dois castiçais também com velas de parafina. Há uma sintonia milimétrica de
todos os objectos, componentes do serviço: garfos e facas de um e de outro,
copos, guardanapos, num alinhamento e paralelismo que parece a projeção igualíssima
do reflexo de um espelho.
Eles não disseram nada, nem se olharam, vão dar inicio oficial
à consoada.
«Justina», friamente disse-o ela mantendo na forma como o
disse, a compostura formal exigida pela distância que se tem com os que nos
servem.
Ele levantou-se de novo e serviu-lhe uma flute de champanhe, com uma precisão, um vagar, a dar tempo a
verter para a flute, contando-as todas, borbulha a borbulha, uma a uma as que
borbulharam depois elegantemente nos recéptaculos de cristal da Boémia, que já
não se encontra.
A Justina não atendeu imediato ao chamamento.
Levantaram os copos, sinalizaram um brinde à distância de uma
mesa a separá-los, degustaram o maravilhoso líquido, e não deram indícios de se
virem a manifestar sobre o tema. O tema de ser muito bom e caríssimo, e
reunidas essas duas condições, ser expectável uma manifestação ligeiramente
mais exuberante de prazer do que um simples nada. Não aconteceu.
Justina entra na sala de jantar acompanhada por uma rapariga
ainda jovem mas já marcada de velha. Trazem suspensas nas suas mãos, duas
bandejas de prata fumegantes, subtilmente fumegantes. Tudo aqui é contido,
mesmo o fumo que se liberta dos alimentos quentes que a seguir vão servir.
Elas vestem branquíssimos aventais, branquíssimas toucas a
tapar por completo os seus cabelos, brancas e imaculadíssimas luvas, cujos
punhos terminam na linha de junção dos punhos rendados das mangas das camisas
igualmente brancas. Não há – à excepção dos seus rostos não tapados por um nicqab,
graças a deus – um pedaço de pele visível nos seus corpos. Tudo a bem da higienização.
E da decência.
Justina serve a senhora. A rapariga que só vai ter um nome no
dia em que a Justina for abatida - por morte - ao serviço, serve o senhor
doutor. Treme-lhe um pouco a bandeja, inexperiência.
As lascas do bacalhau amarelo da Islândia pigmentadas pelo
verde de um azeite de colheita, desfazem-se nas suas bocas mudas. Acompanham
couves e batatas.
Ele levanta-se de novo. Vai prestar-se ao acto de servir-lhe
um copo de vinho tinto “Barca Velha”.
Comem pausadamente, pouco por ser jantar. No sideboard um descritivo que seria
enfadonho de serem muitos, dispõem-se doces e sobremesas típicas da efeméride.
A senhora come meia fatia de ananás, o senhor meia fatia
dourada.
Terminam o jantar.
Justina e a sem-nome tem ordem para levantar a mesa, os
senhores não tomam café aquela hora. Depois não dormem, mais complicado, não
têm nada para pensar enquanto insones.
No salão.
«Minha querida, feliz Natal».
«Obrigado meu querido, para si também».
Trocaram prendas. Ligaram a televisão Bang & Olufsen, viram televisão antes de se deitarem cedo, não
há necessidade de ser mais tarde, o pai natal não passará por ali e nunca houve
crianças.
A felicidade é uma sorte.
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