Antes pelo contrário, não fazia frio. As pessoas queixam-se
com contenção de queixume porque lhes dá jeito, mas todos falam nisso. E
termina-se a conversa com um sorriso dúbio a dar entender todas as possibilidades,
e assim não se comprometem com responsabilidades. É melhor do que criar conflitos.
Este aglomerado de pessoas, que foi raça em tempos passados e agora é só um
aglomerado, têm este tipo de natureza: são informes: está tudo bem e mal, ao
mesmo tempo.
Dar-se o sol a esta obscenidade e a temperatura ser de calores
desta amplitude, no mês de novembro, é um contratempo ao qual as pessoas são
alheias. Não têm nada a ver com o assunto, não fizeram nada (desculpam-se elas
consigo próprias), concordam que não está bem, mas andam felizes por não
chover. E se a água vier a faltar a culpa é dos espanhóis, que são um povo estuporado,
que atazana desde tempos imemoriais a vida dos do lado de cá.
José António mesmo com os contratemos climáticos, optou por
tomar uma decisão fundamental. Nunca lhe tinha acontecido tomar uma decisão
assim, é a primeira vez, pelo que espera ingenuamente que lhe corra bem.
Esta decisão é do foro psicológico mas o senso comum acha que
é uma mera extravagância física. Ambos estão enganados, o senso comum e os que
pensam diferente: é uma coisa holística.
José vai anunciar finalmente, depois deste tempo todo – já com
cabelos a branquearem, e o corpo a não ir para Adónis -, o seu posicionamento sexual.
Alguém que faz isto, deve ter razões inquestionáveis para o
fazer. Anunciar um posicionamento é quase como uma fractura: fica-se a saber
que depois disso haverá os que ficam numa margem e os que estão na outra. E o
anunciador, tem sempre que escolher uma delas, perdendo os outros.
Mas é um posicionamento, vocábulo que não tem discussão, nem
argumentos. E já que o mundo pode acabar a qualquer momento, ou pelo menos a
eminente falta de água, vir a originar desidratações fatais, e ninguém está
livre disso: pode muito bem vir a acontecer ao José António, e ele sem ter tido
tempo de soltar a franga, pelo que resolveu anunciar-se.
José António é binário transgénero, não masculino, não
feminino. Os pais morreram toda uma vida sem desconfiarem de nada; alguns amigos,
poucos, acharam-lhe um piquinho muito ténue, mas nunca valorizaram; e no
trabalho, continua a ser um excelente professor com a carreira congelada.
Uma coisa é mais do que sabida, mesmo em tempos de seca, José
António pode orgulhosamente passear-se por aí a sibilar aos ventos a sua
tendência de género, sem que por lei possa vir a ser assediado ou impedido da
sua liberdade.
Pode vir a faltar a água, mas os seus direitos são
inalienáveis, e até que venha a
encontrar-se uma relação directa entre os recursos do planeta e a acção
maliciosa ou negligente dos seres que a habitam, nomeadamente os transgénero
binários, a sexualidade bizarra do José não é tida nem achada para as
vicissitudes do tempo.
A culpa é e continuará sempre a ser dos espanhóis.
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