O truque é a abstracção. Não é pensar abstracto, é abstrair-se,
escapar para longe ficando no mesmo sítio. É quase uma coisa de iogui avançado.
Iliana fazia-o desde pequena, aprendeu com a mãe, que já vinha
da avó e daí para trás.
Iliana é muito viajada, apesar de ainda ser jovem. Conhece a
Europa de uma ponta a outra, de Norte a Sul. A boa Europa claro, a rica. Nomeie-se
uma praça, um monumento, uma rua comercial, ela conhece-as todas. Não de nome,
mas já lá esteve, e esteve constantemente estando, não é como os turistas que estão
de fugida. Não, ela é uma viajante de permanências prolongadas. Deve o seu cosmopolitismo
a esse poder de abstracção. Quase um dom.
Sem essa capacidade, como seria possível aguentar estar um dia
inteiro, sentada no passeio com um copo de plástico na mão, a mendigar para
esse copo quase sempre vazio, em frente a um belo restaurante com um belo
terraço com janelas panorâmicas, de vidro, corridas do chão ao tecto com um
sistema basculante que as recolhe em dias de amena temperatura?
Não seria, mas é. Porque ela está ali fisicamente mas os olhos
vão com as pessoas que passam entre si e o restaurante, de quem ela só vê de
baixo para cima, do nível dos joelhos destas, o que lhe dá uma perspectiva
bastante alongada das pessoas. Elas gigantes e ela minúscula. E os seus olhos,
voltamos a eles, acompanham-nas, vão atrás delas, até ao dobrar das esquinas
que esquinam essa rua. Depois regressam à dona, para voltarem a fazer o mesmo
com outros que entretanto passam. Assim ela entretém-se abstraindo-se da puta
de vida viajada que tem.
Os comensais têm igualmente o dom da abstração. Neste caso
selectiva. Explica-se: só não veem o que não querem. Este dom, magnífica funcionalidade,
veio-lhes de suas mães e pais e dos coevos destes. São assim de pequenitos –
que graça tinham em pequenotes quase todos eles, bochechas rosadas e gordas.
De vez em quando, há um cliente, que por ter sido apanhado
desprevenido, ou por sofrer de algum mal de sensibilidade fina, se incomoda por
ver Iliana de copo estendido.
Apieda-se e fica desconfortável, mas não pode fazer nada,
porque é hora de almoço e naquele restaurante come-se muito bem. Continua a
comer fingindo agora que ela não existe, que não a vê, mas o impulso é sempre
mais forte do que a vontade (essa coisa da vontade de ferro é um mito urbano),
e paga à pressa a conta para sair rapidamente daquele lugar, ligeiramente
abstraio.
Quando sai, olha para Iliana uma última vez, e procura rapidamente
o virar da esquina para se proteger da sua mendicidade. Os seus olhos seguem-no,
curiosos, brincalhões, e voltam para a dona quando se desinteressam de mais um
transeunte anónimo, que não pôs uma desgraçada de uma moeda, mesmo uma somítica
das pretas, no copo que segura Iliana.
O restaurante, nas sextas-feiras serve um cosido de uma
riqueza de carnes, enchidos e leguminosas, exuberantemente bom e tem uma vista
para a avenida, quase mesmo a fazer lembrar aquelas monumentais esplanadas dos
boulevards de Paris. Ah Paris, a cidade do amor!
Ela já lá esteve e frequentou no ângulo do lado de fora,
alguns desses locais famosos. Ao fim de algum tempo acaba por ser tudo igual e
a gente habitua-se, ou antes: abisma-se, alheia-se, escapa-se. Tem sido assim com Iliana, a rapariga dos olhos verdes.
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