O senhor M não é taciturno, aprecia o sol.
Em dias que são decisão sua, reunidas as condições,
intrinsecamente pessoais, estende-se numa cadeira de lona, e lê livros. Com ou
sem manta. O tempo que for preciso, seu. Os dois: a cadeira fidelíssima (há
cadeiras cujo elogio de serem fiéis é mais do que merecido) e ele, gozando do
privilégio da imobilidade consciente, estacionam-se na varanda para usufruírem desempoeiradamente
o privilégio de uma vista escandalosa da cidade. Escandalosa é demais, mas tem
que se dizer assim para captar.
Em dias luminosos e limpos, esticado como múmia em estado vivo
(para se ter uma ideia aproximada, não da sua situação futuramente definitiva,
mas dos preparos em que se põe no presente), jaz irrepreensivelmente hirto na
cadeira estilo colonial, e lê.
Lê descomplicadamente. O sol de dias assim, ocupa-lhe por
inteiro a cabeça, muito intenso. De tal forma, que se torna difícil tomar
atenção, lê temas ligeiros.
Se o sol bate de chapa, não se deve ler poesia: azeda
O senhor M fuma cachimbo nos mesmos dias em que afunerala o corpo estendido no cadeirão
da varanda. É uma ligação estranha, mas fuma cachimbo com prazer, e só nesses
dias. Depois abstencia-se.
Apesar de já ninguém se lembrar do senhor M, que se refugiou
por desgosto de afinidade com o mundo, fez a semana passada trinta e dois anos,
o seu diário pessoal assinala - como em todos - e independentemente das
decisões de cada um, os detalhes e as incongruências que serão de importância
extrema no momento do Juízo.
O senhor M afastou-se por decência, incomodado por uma que
outra idiossincrasia inultrapassável. Optou por ler, a viver, e fechou-se em
casa para sempre, ou seja, até ser chamado (não por vontade própria) ao tal
Juízo.
Até lá, inunda-se de sol. Nos intervalos lê com o ar mais sério
e adulto do mundo, os temas que pedem uma concentração absoluta: como por
exemplo a poesia e um ou outro conto infantil bem escrito.
Quanto a ler, não é muito saudável, mas felizmente não se
pega.
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