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OS MIRADOUROS ONDE ATRACAM BARCOS

 



Antes da subida das águas que submergiram a cidade deixando somente os cumes suaves das colinas a descoberto, transformando-as em ilhotas flutuantes, casais de enamorados e mãos cheias de vontade de se darem, hipnotizados pelas ondas energéticas do amor que tudo pode, faziam juramentos de eternidade e companhia, encostados nos parapeitos dos muros dos miradouros enquanto debruçavam os seus olhos sonhando, nas panorâmicas da cidade. Olhavam para os telhados ocres, os zimbórios, as torres e a geometria das ruas e das praças. O mar deu-lhes um manto de água, afugou as cores.

Onde foram jardins de belas vistas e tanto segredo segredado a acompanhar em sintonia o cicio do restolhar das folhas nas árvores em momentos de brisas suaves, são agora cais de amaragem, ancoradouros de pequenas barcaças de velas latinas e muita força de braços nos remos. Barcos que ligam as colinas-ilhotas.

Sobrou desse fim do mundo, um punhado de gente, sem intenções de futuro. Sem nada mais para fazer senão sentarem-se a olhar a inexplicação do mar, agora sem telhados, nem zimbórios, nem torres, nem uma linha a anunciar uma rua. No topo das antigas colinas havia castelos e igrejas e miradouros, e foi o que ficou de pé. Igrejas. Locais de culto religioso, portais do sagrado, agora acolhimento dos que sobreviveram. Deus tornou-se laico.

De umas ilhas para as outras veem-se os pináculos das igrejas e pessoas que acenam adeus, uns para os outros, todos os dias assim, não há sentido na acção. Como um monumento ao passado, no meio do mar onde navegam paradas as ilhotas das pessoas conformadas e que gesticulam entre ilhas, um enorme pilar de ferro sustêm um tabuleiro que não toca na água, que liga o nada com nada. Mais atrás, um cristo emerge o seu corpo de pedra da linha de água, e ali está, imóvel, vazio, inútil.

Aconteceu o anunciado que ninguém quis ver. Foi um fim do mundo e o começo do mundo. O papel da memória dissolveu-se ao contacto com a água e as letras que construíam as palavras e o sentido das coisas, apagaram-se. Os homens vão ter que descobrir de novo e aprender. Nas suas colinas-ilhas vai passar muito tempo até que no horizonte apareça um barco, com os novos descobridores, cheios de missangas e novos missionários.

Voltarão as orgias e ainda serão mais desregradas. Assim são as civilizações, sem mal nem bem a apontar.

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