Não havia serviço de lavagem de carros. Quem
tinha motorista era ele que os lavava e limpava, quem não tinha, arranjava-se,
uns com mais outros com menos aprumo. Havia quem nunca lavasse os carros.
Sempre houve e sempre haverá negacionistas. O meu avô que subiu à custa dos
seus sapatos mas cansou-se no primeiro andar, teve o seu primeiro carro depois
da reforma das ambulâncias postais. Não era bombeiro, era funcionário dos
correios, e as ambulâncias postais eram vagões, geralmente na cauda dos comboios
que descarregava e carregava o correio e as encomendas nas paragens e
apeadeiros onde os comboios paravam. Reformou-se aos quarenta e sete anos e
como arranjou logo um novo emprego de amanuense num escritório de despachantes
de alfândega, comprou um carro. Antes teve de tirar a carta. Não praticou
muito. Um Simca, um carro franco-italiano. Parecia um carro de estadista, era o
único que tínhamos. O meu avô praticamente só andava de carro, no seu, aos
domingos. Ou para irmos todos os da família que cabíamos, piquenicar nos Montes
Claros, ou em sendo verão, frequentar entre as nove e as onze e trinta da
manhã, a praia de Paço de Arcos, o mais longe na marginal que o meu avô chegava de carro.
Está visto que no inverno andávamos muito pouco
de carro, em todo o caso porque os motores precisam de trabalhar com
regularidade, nos domingos em que não íamos a lado nenhum, sentávamo-nos no
carro, estacionado na rua de nossa casa, e ali ficávamos, uma boa meia hora,
absortos no ruído do motor do Simca, motor italiano, atentos a qualquer
engasgo, pronunciador de um funcionamento defeituoso e eminência de avaria.
Perto do Estádio Nacional, nuns praticamente
descampados de terra e pedra batidas que serviam de parques de estacionamento
no único dia do ano onde se realizavam aí competições desportivas - o final da
Taça de Portugal -, jorrava uma humilde fonte, de um cano que alguém o colocou
lá, e que o meu avô e outros, porque era concorrida, dizia ser uma fonte de
água límpida e própria, tão límpida que quase a podíamos beber. Essa qualidade
garantia uma excelente lavagem ao nosso carro Simca, que era cor bordô, uma cor
de quem se dá ao respeito. Muito digna. E ir ao Estádio lavar o carro era
também uma aventura, porque todas as oportunidades de andarmos nele eram uma
aventura e sinal de que apesar de apeados no primeiro andar, andávamos de carro
e dos bons. Até tínhamos uma camurça magnífica, que não precisava de o ser
porque em sendo camurça, está tudo dito, que absorvia a água dos vidros e para-brisas,
deixando-os com uma transparência que pareciam que nem estavam corridos, que estávamos
sempre de janelas abertas. Depois da lavagem, que dava uma hora bem medida,
ficávamos sentados no carro a ouvir o relato dos jogos da bola, num radio
transmissor a pilhas com antena retráctil e giroscópica, um Telefunken.
O Simca e os rádios Telefunken eram para os do
primeiro andar. Para os que subiam mais andares, havia um cardápio diferente de
carros e rádios.
O meu avô nunca foi um condutor de excelência,
mas era dos que melhor lavava o carro, e não sendo egoísta, sentava-nos ao seu
colo e deixava-nos conduzir, dando voltas aquele volante maior que nós e que
apitava de dar gosto, a pôr os papalvos do rés-do-chão a olhar para nós.
Comentários
Enviar um comentário