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FIM DE SEMANA

 


Percebemos que o tempo não conta a nosso favor quando começamos, com insistência, a receber telefonemas simpatiquíssimos, nem lhes demos o nosso número de telemóvel, convidando-nos para fazer gratuitamente um teste de audição, no dia e hora que quisermos, estão ao nosso inteiro dispor, e logo de seguida, ainda o auricular está quente da chamada anterior, uma companhia de seguros, centenária, dizem eles, nos oferece um seguro de saúde para toda a vida, sem período de carência, sem pagamentos de caução, com ou sem cancro, com a próstata inflamada ou rija que nem um pero saudável, e ainda estamos a digerir estas vantagens todas, a cabeça a andar à roda, é tudo bom, recebemos uma nova chamada, estamos na idade ideal, por isso nos contactam, para acautelar o futuro e se aderirmos já, a um plano de pagamentos por conta e suaves que nem se dá por eles, podemos vir a usufruir, quando for tempo disso, não há pressas, de um funeral digno de um estadista, de um político afamado, com fanfarra sem desafinar, carpideiras genuínas oriundas da beira interior, uma multidão de anónimos, todos vestidos de preto, a acompanharem a urna e eu, dentro dela, até à morada final.

Tudo isto, um corrupio, uma hora de ponta, quando afinal o que queríamos mesmo, imaginação fértil, era ouvir uma voz melodiosa e suave, do outro lado, sem rosto, a convidar-nos para fugir, para sempre, dos pagamentos das prestações, das quotas das agremiações inúteis, mas que temos pena, há tanto ano que somos sócios, não os vamos abandonar agora, de fazer todos os dias o jantar, já não há pachorra para os tachos e a loiça constantemente por lavar, dos domingos, dos almoços de domingo, em que já ninguém tem paciência para ninguém mas é obrigatório, e todos a contarem os minutos, uns por debaixo da mesa, para regressarem às suas vidas desinteressantes, mas são as que têm.

Sim fugir, ir de viagem, tirar fotografias analógicas às cascatas calcárias de águas quentes da Capadócia, visitar, esmagados pela imponência que dizem que têm os minaretes no Uzebequistão, assistir ao pôr do sol no deserto de Gobi, com uma águia real pousada na nossa mão esquerda, nós a sentirmo-nos cavaleiros da salvação, e ao mesmo tempo a acreditarmos na eternidade, que existe, que é económica, acessível e que tudo isto não passa de um pesadelo de mau gosto, o comprimido as vezes dá para isto, destrambelha os sonhos e eles desenfreados, pela cabeça fora a fazerem filmes B surrealistas.

Será que estou a ouvir bem? Pelo sim, pelo, não, é gratuito.


Comentários

  1. Ah, ah...já reparei que é à sexta que mais ligam, enviam mensagens ou mails. Devem pensar que gastaremos o fds a pensar em carros novos, testes médicos, seguros, electrodomésticos, cremes... e outras coisas assim tão importantes...para coisa nenhuma.
    ~CC~

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