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O MEU TIO QUE ERA ANJO

 


A ideia mais nítida que tenho dos anjos é uma fotografia de época: os meus avós, a minha mãe com uns lacinhos a rematarem os totós perfeitamente simétricos, e o meu tio, uns treze anos. O seu rosto irradiava uma luz que eu só posso qualificar de luz pura de um anjo. Depois dessa fotografia, nunca mais vi nenhum. Este meu tio, só estivemos juntos em carne e osso uma vez - apesar de ter sido o meu padrinho espiritual -, quando veio gozar férias da guerra colonial, à metrópole. Eu teria uns quatro anos. O seu rosto não aparece na memória desse episódio, só um passeio de carro eléctrico, um revisor com uma farda interessantíssima, o alicate pica-bilhetes, mais interessante ainda, e o bivaque militar do meu tio, fonte de toda a minha restante atenção. Se soubesse teria olhado para ele com detalhe, para o captar para mim, meu anjo: um bivaque e um alicate não mereciam essa transferência de interesse, mas uma criança tem os seus pontos fracos e eu claudiquei.

Quando cumpriu a sua obrigação de participar numa guerra absurda como são todas num continente longíquo, fez-se cantor de canções de amor. Só podia, sendo anjo. Morreu tragicamente e jovem num desastre de avião quando ia actuar para as tropas numa fronteira de Angola. Em casa houve um silêncio sobre esse contratempo fatal, mas porque eu era curioso e investigava as gavetas do psiché da minha mãe, descobri uma revista de época com uma reportagem sobre o trágico acidente. A ilustrar, uma fotografia do meu tio, num palco, vazio, um microfone de pé e ele, irrepreensível num fato claro, luminescente e loiro, a cantar, e as mãos, duma grande plasticidade, quedas por ser uma fotografia, mas a dizerem tanto do que seria a sua sensibilidade. Nessa fotografia, no seu perfil, tão lindo que era, voltei a ver um anjo anos depois.

Passaram muitos sobre essa fotografia que entretanto se perdeu nas resoluções das casas que se deixam por outras, e não em absoluta necessidade nem procura, mas nunca mais vi nenhum anjo, e lembrei-me agora disso.

Como teria sido a nossa vida se o meu tio tivesse um desfecho de morte diferente e tivesse voltado para Lisboa? Para mim era ter um anjo ao meu lado, e queiramos ou não, mesmo para os agnósticos, o meu tio, se vocês o tivessem conhecido, como anjo, era irresistível e ao meu lado seríamos triunfantes. Grandes feitos teríamos os dois. Como não aconteceu assim, aguardo sem nenhuma urgência de acontecer, o nosso próximo encontro. Quero ver se tendo um anjo por familiar directo, quando for o dia, não me dão acesso com privilégio aos jardins do Senhor, deliciado o Todo Poderoso e muito úbiquo,, a ouvir as canções de amor que o meu tio canta nesses jardins do Éden.

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