O meu avô prendia com corrente, por decisão sua
e consciente, o nosso cão caçador Tôtu, farrusco que nem que disfarçasse muito
poderia passar por cão aristocrata, na marquise fechada que dava para a sala de
estar e de jantar. Era o seu shangri-la, a sua biosfera. Para além do Tôtu,
residiam na marquise um periquito muito canoro, que esqueci o nome, e os vasos
de plantas. Algumas floriam no seu tempo. Havia-as estéreis, mas o meu avô
gostava delas. Não me lembro de ele plantar plantas aromáticas - talvez porque
os nossos temperos se limitavam ao sal, à pimenta, ao colorau e ao louro,
ingredientes que não se plantam sem mais nem menos, numa marquise em Algés – ou
porque quis que o seu jardim fosse mais rebelde. O que não entendo é porque é
que ele que tinha tantos livros das Seleções e outros, a ocuparem o lugar dos
copos na cristaleira, sobre a natureza e os animais selvagens, e folheava-os, nunca
teve a ideia de soltar o Tôtu e o periquito na marquise. Era pouca, mas era
alguma liberdade, e os animais já tinham dado provas de fidelidade, não iam
fugir.
Quando o meu avô chegava ao fim dos seus dias
de trabalho, não muito extenuantes - cuidava-se - não sei se cumprimentava a
minha avó (eles tinham-se separado desde o dia em que se casaram, mas continuaram
até morrer a viver juntos e davam-se prendas no Natal) no seu posto
permanente de trabalho, a cozinha, se não a cozinhar, a costurar roupinhas de
bebés, era uma sala multifunções. Ele despia a roupa de trabalho de amanuense e
de camisola interior picotada e de alças, pior não podia ser, fazia a sua
entrada triunfante, rei-sol daquela casa, na sua selva urbana. E aí ficava até
o jantar. Afagava o cão, pedia-lhe repetidas vezes a pata, para confirmar que
Tôtu era um cão com inteligência superior e ele um grande treinador, mudava-lhe
a bacia com água fresca, dá-lhe a comida do dia, umas vezes boa outras não, e
assobiava para o periquito, para ele responder, e quando se cansava punha uma
mantilha por cima da gaiola, a tapá-la por completo e eu nunca, nem hoje,
percebi porque fazia isso. Regava também as plantas.
Quando eu os visitava e depois de a minha avó
me lambuzar de beijos repenicados e eu que os gostava tanto e hoje já não se
dão desses assim e os dela eram os melhores, sentávamo-nos na marquise, nuns
bancos quase toscos de madeira, baixos, ele muito grande e adulto e eu muito
pequeno e pirralho, e contava-me longas e fascinantes histórias de animais e
plantas, e aventuras, e eu embalava-me na imaginação e sentia-me um pequeno
herói e ele, o meu guia, um pisteiro, a decifrar os sinais do mundo selvagem.
Nesses dias afastados, a marquise da casa dos
meus avós não tinha a dimensão ridícula que tem hoje, era infindável, e agora quando
vamos vender tudo por atacado, o apartamento e a marquise, e damo-nos conta que
afinal aquela selva bravia e impenetrável, mingou, a ponto de reduzir as mais
valias da venda, coisa que quando ouvia as histórias do meu avô, sentados, em criança
eu e ele a não querer deixar de ser, não nos passava pela cabeça aos dois, que
um dia, ele defunto e frio e eu vivo e a arder de saudades dele, a nossa
marquise com o Tôtu, o periquito canoro e as plantas, viriam a ter uma
desvalorização de mercado.
Vendemos pois o apartamento, mas não nos desfizemos
da marquise, guardada como um tesouro da cobiça dos especuladores imobiliários.
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