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OS ALMEIDA MARQUES DA PARTE DA MÃE

 


A sala de jantar, contígua à de estar e separada por um corredor da cozinha, tinha como mobiliário uma mesa e seis cadeiras de um estilo - se tinha estilo -, que não consigo identificar e mesmo nesse tempo de criança não posso dizer se eram bonitas ou feitas, o meu gosto não estava ainda feito para apreciar esse tipo de objectos. Havia também na sala um radio, objecto grande, em cima de uma mesa de apoio de pés altos, com o inevitável naperon. Para além destes objectos, havia uma moldura com uma fotografia a preto e branco, perdida na imensidão da parede branca e vazia, sem mais nada. Fotografia que marcava o centro geodésico do nosso universo familiar. A fotografia apresentava os meus avós maternos, o meu tio e a minha mãe, todos sorridentes e arranjados para a ocasião. Os sorrisos não são forçados, nem exagerados, pelo que deviam estar naturalmente bem-dispostos. Eram as pessoas mais importantes da família, assim como eu e o meu irmão, que não aparecíamos na fotografia porque quando foi tirada, os intervenientes da mesma estavam longe de imaginar que um dia eu e o meu irmão havíamos de trocar impressões sobre a fotografia pendurada na parede da sala. O meu pai também não aparece nessa fotografia nem em nenhuma que tivesse sido pendurada numa parede, porque era o membro dissidente da família, e como naqueles tempos ninguém era expulso, coabitávamos todos o mesmo espaço.

Esta fotografia era, não tendo por nascença nem herança, o nosso brasão. Do alto dessa parede branca, dominando todo o espaço da sala, aí estava o símbolo da nossa família, a nossa pegada, a heráldica, as raízes da nossa identidade. Era um objecto importante, que foi passando como testemunho da casa de uns para a de outros, até que veio parar a tempo inteiro à minha guarda, e eu, para não ser diferente, coloquei-a na minha sala de estar, na companhia de outras fotografias importantes e de algumas pinturas que gosto.

Quando com seis anos quase feitos fui para a escola primária, pela mão da minha avó, que desde esse primeiro dia fez entre as idas e as voltas, dois mil cento e sessenta trajectos, os dois de mão dada, com toda essa intimidade e apego, não podíamos ser dois, pelo que sem nos darmos conta fundimo-nos um no outro, e aqui estou a levá-la comigo até que eu me acabe, depois que a deixei a descansar da vida, num cemitério com flores bonitas e paz.

Quando fui para a escola, havia na sala de aula por cima do grande quadro de ardósia que dava direito a mais reguadas do que louvores, e as orelhas de burro, animal inteligentíssimo, duas molduras com duas fotografias e não uma. Dois senhores, que não estavam a sorrir nem aparentavam estar bem-dispostos. Um com fato e gravata negra, como os olhos negros e frios, o outro com um manto sobre os ombros, um colar com uma cruz e uma espécie de malga em pano, no cocuruto da cabeça. Tinha óculos e os olhos eram inexpressivos. Ensinaram-nos que aqueles senhores eram os pais de todos nós e tendo eu uns a quem chamava pais, no início fiquei confundido, mas depois percebi que era no sentido figurado: eles não eram pais, eram quem nos governava e protegia desse mundo feio, cruel e injusto. Essas fotografias acompanharam-me ainda uma boa meia dúzia de anos, até que desapareceram da sala de aulas, bem como as reguadas e o personagem do burro. De um momento para o outro, não sei se por deixar de haver fotografias penduradas na parede, se por coincidência de factos, os dias e a vida em geral ficaram mais radiosos, mais leves e as pessoas pareciam mais desanuviadas. Passeavam-se mais animadas pelas ruas e conversavam com gosto e sem receios.

Hoje quando os meus filhos me visitam fazem perguntas sobre aqueles membros retratados no nosso brasão, pendurado em destaque, por cima do sofá de orelhas onde gosto de pousar a minha cabeça. Vejo que lhes agradam as histórias e as peripécias que conto. Vão ficando familiares daquelas pessoas já desaparecidas, e isso é bom. Um dia quando eu for descansar e me incorporarem neles, levam –me e aos nossos familiares e assim continuamos pela eternidade fora, a grande família dos Almeida Marques.

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