Parece
que foi assim que começou o dia final. Foi um dia longo. Para acabar com a
Terra um só dia é pouco, o tempo esticou. O poder bélico construído e acumulado
pelos homens foi suficiente para acabar com o mundo.
A manhã
começou cedo, por alguma razão talvez tenha intuído o que ia acontecer, fez-se
dia com pressa. Na ambivalência difusa e opaca da alvorada, os bombardeiros,
máquinas de guerra, estavam prontos. De vários pontos do globo mantidos em
segredo, levantaram voo. Nas primeiras horas as tripulações mantiveram-se em
silêncio, oprimidas pelo ruido agressivo do potentes motores dos aviões. Não
houve comunicações com as bases, para não serem detectados. Todas as instruções
foram transmitidas oralmente em salas insonorizadas com o exterior para não
haver fugas de informação. Algumas dessas aeronaves cruzaram-se no céu, sobre a
lhanura dos oceanos ou no recorte da orografia dos terrenos. O sol, forte,
refulgiu nas carcaças metálicas dos aviões. Num primeiro momento encadeou
todos, depois as tripulações olharam-se por breves segundos e cada um continuou
a sua rota. As bases não foram informadas desses encontros.
À hora
marcada, os bombardeiros chegaram aos destinos e começaram a sobrevoar as
grandes cidades fazendo círculos largos, aves de rapina. Havia aviões a
sobrevoarem as grandes capitais do mundo. Parecia combinação mas não foi, foi
uma daquelas coincidências tão inverosímeis que fez o improvável acontecer.
Os
transeuntes aquela hora da manhã não se deram conta dos aviões. As pessoas que
vivem nas grandes acrópoles estão embrenhadas nas suas coisas, apressadas, não
têm tempo para olharem para o céu. Só os velhos mas esses não falam com ninguém
, falam para si.
Os
bombardeiros, todos, estavam carregados de elevado poder bélico, destruição
maciça.
No
momento certo que não deixou para este relato a confirmação exacta da hora
marcada a que isto aconteceu, deu-se o ataque às cidades.
Falácias
escritas, fake news, conspirações e propaganda, manipulações, e mensagens
subliminares, políticas de alienação pela palavra, foram bombardeadas
indiscriminadamente sobre as cidades e os seus habitantes. Não escolheram
alvos. Choveram frases corrosivas e ácidas, em cirílico, em mandarim, em hindu,
em alemão, em inglês. Praticamente em todas as línguas e idiomas que os homens
falam. Um poder nunca visto. Num só dia, aquele, foram ditas em todas as conjugações
de palavras, as maiores asneiras e vernáculos.
As
demagogias lançadas em bombas de fragmentação, cobrem todas as superfícies.
Discursos retóricos de grandes ditadores da história são atirados em papiros enrolados
em mísseis com ogivas de urânio enriquecido. Devia dizer-se “empobrecido”, mas
a turba aceita tudo.
O
inominável mal despiu-se e mostra toda a sua nudez putrefacta e flácida. O
poder da palavra foi tão devastador e atómico, que fez soçobrar a humanidade. Quando
uma palavra acerta para o bem ou para o mal, num certo ponto central e
nevrálgico do coração, o atingido ou experiencia o prazer mais absoluto ou
sofre a maior das dores. E foi dessa forma atroz e exangue que morreram os
homens: atingidos mortalmente pelas palavras cortantes dos outros. O mundo como
o conhecíamos foi destruído. Ficaram pequenas comunidades de beduínos nos
desertos e em ilhas remotas. Talvez eles reiniciem o mundo. Talvez não tenham
vontade disso e fiquem somente a olhar para as estrelas quando os céus estão
limpos e elas tremelicam.
No dia a
seguir ao dia final, o mundo que restou despertou sem brilho e vazio. A beleza
inigualável de uma alvorada límpida, nas suas cores vivas e rutilantes, não
tinha espectadores.
O espectáculo realizou-se, mas foi triste. A casa estava vazia, não havia ninguém para bater palmas.
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