O Imperador olhou para o império com olhos
humildes. Havia gratidão na forma como ele olhava. Não é habitual um imperador
olhar assim o mundo, mas ele é um homem anónimo, vestido da importância de um
cargo, que está acima dos homens e ao lado dos deuses. Amanhã deixará de o ser,
entrega esse fardo a outro.
Alvorece, o dia desponta e ele contempla o seu
vasto território. Não lhe conhece os limites e as fronteiras, nunca viajou. O
epicentro do seu império é marcado pelo penhasco onde agora se encontra a
contemplar. Um sítio num lugar.
A razão por estar ali, tão cedo, deve-se ao seu
forte sentido do dever. Homem de natureza séria. Está ali antes de começar as
suas infindáveis tarefas diárias, é o seu momento de introspecção. Vem para se
encontrar consigo mesmo, para fazer balanços, limpar a consciência de coisas
turvas. Lança para a caixa dos desejos a esperança de estar à altura, de poder
cumprir com orgulho o dever de que foi empossado. Com isto benze-se e cerra os
olhos por momentos.
O Imperador administra bem a herança que
recebeu das mãos do seu antecessor, é um homem focado na missão. Chama-se
Manuel João, nome comum para a importância do cargo que ocupa.
Disse-se que ele desconhece as fronteiras da
sua influência e poder, porque o seu império não é um espaço físico. É um
território do espírito e da fé.
Dizem que o xadrez é um jogo que mimetiza a
vida, um jogo mental que se joga na abstração do pensamento. Manuel João neste
momento, faz isso: joga xadrez enquanto olha tranquilo para o centro do seu
império. No seu jogo movimenta as peças procurando a harmonia, que conseguirá
se for um bom imperador.
Está tudo pronto. Trabalharam muito para chegar a este ponto. A irmandade que organiza o bodo. Os mordomos, que recolheram os donativos para a aquisição do pão, vinho e da carne para distribuir aos pobres.
O bodo realiza-se junto ao Império, o pequeno
templo para onde agora olha o Imperador. Lugar onde se venera a coroa, o ceptro
e a bandeira. Não é uma igreja porque este é culto dos homens para os homens. O
Espírito Santo é uma pomba. Ou talvez seja uma energia que envolve os homens
numa corrente de amor ao próximo e entreajuda. É uma promessa individual, em
que o imperador realiza a função, oferece um jantar a convidados e esmolas aos
pobres.
Durante a semana em que o Espírito Santo está
em casa do Imperador, este é ajudado pelos vizinhos e todos os dias, à noite,
se reza o terço e se dança na sala em frente à coroa do Espírito Santo.
Este Império situa-se na ilha terceira do vasto
oceano que empurrou há tempo passado, homens que só olhavam para o mar para
empatar o tempo, e fê-los argonautas de circunvoluções improváveis.
Todos os anos, um novo Imperador renovando
votos de fraternidade, repete os gestos e as intenções do seu sucessor,
prantando-se a olhar para o pequeno edifício rendilhado e colorido, local onde
se deposita a coroa, e o celeiro do pão, da carne e do vinho para distribuir ao
povo.
Ecumenismo pagão, ou igreja na sua formulação
simples, sem mácula, primordial: a ligação do homem sem intermediários a todos
os mundos existentes, espirituais, fantasiosos, oníricos, utópicos.
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