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POEMA DA LIBERDADE

 



Sendo livres podemos inventar palavras e o mundo avança.

Se não as inventamos pomo-nos à espera, como os pescadores e elas acabam por morder o isco.

Sendo livres podemos correr como nos motivar a vontade, duma ponta à outra do mundo, ou se bem nos apetecer aos círculos e ziguezagues. Até mesmo nem sair de casa. Há quem tenha sido feliz dando voltas à sua cama, num quarto que até nem seria muito grande.

Sendo livres não voamos como os pássaros mas entendemos como eles voam, o mesmo se pode dizer sobre os peixes e todas as espécies animais.

Compreendemos as coisas.

Sendo livres contamos o tempo à nossa maneira e se nos perguntarem as horas, e se insistirem, inventamos as horas que nos apetecer.

Ninguém se zanga porque somos ingénuos e puros.

Sendo livres os dias são dias e as noites são noites, e antes também eram assim, mas não eram nossos.

Sendo livres até nos apetece cumprimentar e sorrir mais vezes e quando choramos é igual, não precisamos conter nada, é um cumprimento triste mas aceitável. Chorar pode ser bonito.

A alegria e a felicidade não são tão importantes quando somos livres, porque sendo livres como nós, andamos juntos e somos cúmplices.

Não se prestam contas.

Sendo livres somos crentes, ou não. Podemos escolher e os outros gostam de nós na mesma.

Os deuses gostam muito mais das pessoas livres do que das asfixiadas. Nós é que não sabemos isso e julgamos que gostam de todos por igual, o que não é verdade.

A liberdade prescinde de amarras apertadas, sejam as que forem. Por isso não há necessidade de ideologias e partidos políticos.

São ridículos alguns políticos, e desconversam.

E se o dissermos e formos livres e corajosos, eles envergonham-se e vão procurar empregos.

Ou não se envergonham, mas nós crescemos, inchamos o peito de razão, e fazemos frente às adversidades.

Sendo livres podemos passear dentro e fora das nossas cabeças, e colher flores.

Há tantas flores diversas que cada um pode escolher a sua. Ou então se escolhemos todas e partilhamos com amigos, somos ainda mais livres.

Os campos são muito mais belos do que as cidades, por isso os que são livres, vão viver para o campo e plantam hortas e passam dias inteiros a abraçar as árvores, que quando se habituam não querem outra coisa senão os nossos abraços.

As árvores são de uma gentileza sem comparações.

Ser livre é ser cidadão de todos os lugares do mundo, mesmo os menos bonitos, que merecem no entanto consideração.

Ser livre é piscar os olhos às miúdas giras e aos miúdos giros e não fingir que entrou um grão para o olho.

Ser livre é beijar e ser beijado, indecentemente, se for preciso chegar a tanto. E continuar.

Ser livre é dizer não ou sim, sem represálias.

Ser livre é parar de trabalhar para assistir a um majestoso pôr do sol. O mesmo é válido para as alvoradas, que quando são frescas e límpidas e as cores abrem os olhos sem filtros, ainda são mais bonitas.

Ser livre é caminhar descalço e ser-se tido em conta  tanto quanto andar com sapatos lustrosos de bem engraxados.

Ser livre é ainda muitas mais coisas, tantas, que se alguém tentar dizê-las, ou escrevê-las todas, não vai fazer outra coisa em liberdade senão continuar a dizer, e não tem tempo em vida para terminar. Há quem tenha tentado, há quem tenha dedicado a a vida, há quem tenha partido com a esperança que a eternidade lhe daria tempo para isso.

Ser livre é não dizer nada.

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