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O TANGO DA MORTE

 


Fazia um frio intraduzível. As pequenas acções celulares rotineiras que trazem a vida do mais pequeno microscópico à complexidade de um ser completo, estavam praticamente paralisadas. O desconforto prolongado provoca lentidão na vida. Atrasa todas as funções. Resumimo-nos a isso, esperar.

 O dia é cinzento como foram os de ontem. Não há futuro, pelo que não se pensa na cor que define os dias que não vão existir. Talvez para os que estejam participantes, mas neste mundo, agora, nenhum de nós chegará a esse momento. Os outros mundos que existem lá fora, esquecemos, já não sabemos como são.

Estamos inertes parados no descampado. Uma forma de tortura, conhecemos todas. Um muro simbólico e letal de arame farpado electrificado limita o nosso pequeno universo. Para nós, a Via Láctea ficou um passo atrás do portão de via única: só se entra. Não conhecemos dos nossos quem tenha saído.

Não se ouve nenhum ruído vivo a não ser o som cortante faca de gume afiado, da dor que pinga dentro de cada um de nós. É isso, o que se ouve com irritação, o pingar.

Fechamos um círculo, quarenta devemos ser. Que importância têm os números, nada tem importância. Vemo-nos uns aos outros, mas já não olhamos, somos iguais, vestimos as mesmas roupas, e perdemos o interesse. Olhar não tem valor nenhum. Nada do que façamos tem valor.

Ele olha-nos e é impossível não o sentir, mesmo de costas para ele. Não nos vê como humanos, antes uma massa, uma amálgama, de carnes, corpos mirrados, baços, podridão que se associa ao fedor da morte. Aqui nunca ouve primavera.

Ele tem uma postura serena, pode-se dizer que é um homem atraente, diabolicamente atraente. A sua pose transmite a ideia de tranquilidade, paz pode-se dizer sem sujar a palavra. Manda-nos tocar. Naquele frio de laje mortuária, obriga-nos a tocar. O maestro marca mecanicamente o compasso, a sua mão livre não é capaz de sinalar a emoção da música, que não sente e não consegue nestas condições passar a uma orquestra póstuma. Que sentido faz as musicas serem belas?

Estamos a tocar há algum tempo. Rokita, o homem do olhar sereno e da fala pausada, quase coerente, e sabendo-se que era uma acção eminente, dá um tiro na cabeça do maestro que cai hirto, como um parafuso em desequilíbrio, no meio do círculo de terra salpicada com fiapos de neve suja e feia. Obriga-nos a continuar. A música não avança. Repetimos o mesmo compasso. O homem caveira mantem-se impávido e executa-nos um por um. O último som perceptível que se ouve é o do rufar de um tambor, um som marcial e rude. O tambor cai no chão e rola como uma roda até que para pela inércia.

Ao longe, começa-se a ouvir um ruído, primeiro algo difuso, depois mais claramente, o ruido de lagartas de tanques que se aproximam. Os vermelhos vêm libertar os últimos residentes do gueto de Lviv, um punhado de ratos-homens, mortos-vivos, sem alma.

Rokita sorri, fuma um cigarro, entra no carro preto e desaparece da história. 

Para memória futura.



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