Em tudo era parecido com a vida. Na realidade, era a vida, também é assim. Não via senão o escuro, mas o escuro é o não ver. Faltava-lhe esse sentido para ser pleno de todos, e por isso dizia viver parecido com a vida. Mas não. Vivia. No conforto de um embalo, constante, quase ritmado e ouvia sons afastados, ainda não palavras mas eram palavras e ele não sabia. Não as tinha aprendido. Ouvia o que se dizia fora do escuro, e fora do escuro estava o mistério, para lá das paredes de matéria flexível e desconhecida que o envolvia, como um casulo. Uma gruta. Gostava dos sons assim como gostava dos sons que eram música, e mais uma vez, como não sabia, não os identificava com um nome, mas gostava. De todos, o som que mais ouvia, repetido inúmeras infinitas vezes era “filho”. Um chamamento longínquo, uma espécie de sussurro. Não o sabia, mas era de todos o que mais gostava de ouvir, e descansava, protegido, descansava profundamente e bem e feliz e satisfeito. As suas mãos, os seus dedos, numa escala tão pequena, por finalizar, tacteavam. Tacteavam na ausência de luz numa matéria líquida mas densa, envolvente,quente, promissora de vida. Era assim que ele ia descobrindo esse pequeno mundo, o seu, um ensaio de universo, ali, todo concentrado. Por ser tão bom, por se sentir tão bem, falhou propositadamente a chamada da porta que se abriu para ele passar, mais de uma vez falhou, um jorro concentrado e forte de uma luz que nunca tinha visto, muito clara, mal abria os olhos, a oposição ao escuro, que o assustou e ele não quis. Podia ser uma desconfiança. Mas não, não podia ser isso. Ele ainda não conhecia a confiança, para ter uma ideia firme do seu contrário. Negou e renegou. Não queria, mas era inevitável, teria de nascer. Esperava-o a contagem do tempo, uma ampulheta invisível que determina tudo: o antes, o durante, o depois. E que um dia deixará de contar, para si.
Ele não queria nascer, porque estava bem onde
estava, ele não sabia que nascer era igualmente outra realidade de viver. Nem
melhor, nem pior, inevitável, no seu caso pessoal. Tem-se sempre medo dos
princípios.
À terceira foi de vez, obrigado pela natureza, expulso.
Ultrapassou com todo o vagar a porta, deu de caras com o mundo. Na sua
intensidade para quem acaba de sair das trevas. Depois do susto inicial e
passadas todas as fases e experiências, fez-se um homem. Manteve sempre um
carinho muito especial pelas palavras, memórias vagas dos sons que o adormeciam
quando estava no útero de sua mãe.
Respeitou-as, deu-lhes novos usos e invenções. Chegou
a escrever palavras com intenção de usufruto de terceiros. Foi feliz, porque
esteve sempre atento e cristalino. Estabeleceu laços sociais, gerou filhos que
se assombraram quando se assomaram à porta, tal qual ele, que o fez no dia zero
mas já não se lembra. São memórias que logo se extinguem, cabeças de fósforo,
não vá dar-se o caso de a primeira experiência dar a querer voltar para dentro.
Uma impossibilidade técnica, mesmo que mãe e filho estivessem nisso de acordo.
Não se nasce em vão e ele, apesar de ter dias
menos conseguidos, não quer senão continuar a viver. Não há melhor coisa que
isso: uma luz que brilha intensamente e sempre.
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