Ao dia sexagésimo e uns tantos acrescentados, dou por terminado
o que tenho a dizer sobre a vida que observo do prédio em frente. Terá muito
mais moradores dos que conheci e sobre os quais falei. Ou não aparecem à
janela, ou aparecem em tempos diferentes dos meus, ou são sombras que circulam
no interior dos apartamentos que não se conseguem ver nem distinguir, porque não
são tocados pela luz.
Captei o homem desistido que fuma, a menina que brinca e faz-se
pessoa, com as figuras em cartolinas coloridas dos animais coladas na sua
janela, o homem que janta sozinho à luz de velas na companhia de um lugar vago,
do gato acrobata e meditabundo e finalmente de um pássaro muito especial.
Ficamos sempre com uma ideia das coisas, nada mais do que isso.
Neste prédio já viveram outras pessoas, reais, e conheci
algumas. Relacionei-me com umas tantas, num passado, quando entrei no círculo da
existência e comecei a caminhar. Pessoas do meu tempo, seja ele qual tenha sido
ou venha ainda a ser. As que o habitam hoje não as conheço a não ser pelas
observações que faço no parapeito da minha janela. Amanhã, quando isto acabar, virão
outros, com outras histórias e tudo começa de novo. Provavelmente já não
estarei à janela para os ver. Haverá com certeza alguém, que repetirá de uma
forma parecida ou não os meus gestos e a minha curiosidade de olheiro da vida,
e, debruçando-se sobre esta ou outra janela, mimetizará aquilo que eu fui, sem
nunca me ter conhecido.
Círculos, círculos, tudo volta ao princípio e recomeça
repetindo-se até ao desconhecido. O grande desconhecido que é o amanhã.
Neste momento não tenho mais histórias dos habitantes deste
prédio anónimo para vos contar. Ninguém sabe o nome da rua, da cidade, onde se
localiza, a não ser eu e eles, que não imaginam que os observei durante mais de
sessenta dias e inventei-lhes narrativas, para me entreter do tédio e do medo.
Houve momentos que custou a passar, o silêncio atingiu
proporções estridentes, insuportáveis. Mas também houve acalmia, muita paz.
Levo para a vida - o que me restar dela - um novo amigo, um
melro. O melro que todos os dias do meu recolhimento me visitou pousado no
beiral do telhado do prédio em frente, altivo e pássaro de si, e conversámos
bastante. Pode não ter sido sempre o mesmo melro. Não faz mal que fossem muitos
e diferentes, ficámos amigos e é o que se leva disto tudo: um bom punhado de
conversas sobre coisas sérias e outras leves. Sobretudo falamos da liberdade, a
sua de poder voar sem limites nem barreiras, a minha de poder sonhar
excentricamente aventureiro todos os sonhos possíveis.
Não é isso, também, a felicidade?
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