- Anda Farrusco,
vamos acordar as ovelhas.
O cão, enorme, abentesma
naquela quase escuridão, do tamanho de um homem bem medido, nem se
mexeu. Ou antes, entreabriu o olho direito, o que estava mais próximo do dono e
olhou-o desinteressadamente. Voltou à posição estática, de estátua marmórea.
A modorra das cinzas ainda
quentes, espalhadas na lareira, a parecerem larvas incandescentes de um vulcão
apagado – que faz as funções de fogão – meio mortiças, mal aqueciam o casebre
de pedra granítica, tipologia daqueles lugares.
Ficar esquecido o mais que
pudesse, era intenção do animal. Todos os dias pensava nisto, e nunca se
realizava essa ambição. Um cão pastor não tem domingos nem folgas.
Uma enxerga, que com muito
boa vontade poderá imaginar-se cama, uma mesa bamba, um par de cadeiras, um
escano junto ao lugar do fogo e um pouco mais de nadas, são os adereços de
cena. Não há candeeiros, só lâmpadas cheias, envoltas de pó, às camadas, tantas
que fazem vezes de abajures.
No piso de baixo, a loja, os
animais recolhem à noite e em dias de invernia rija quando o manto de neve
cobre as ervas, os arvoredos, e quem por aí ande, seja animal, de homem
ou ruminante tresmalhado. Em dias normais sirigaitam, comandados
pelo pastor e pelo Farrusco, por serras e vales, pelos caminhos e
pelas veredas, eficientes cortadores-comedores das relvas, limpadores
ecológicos das matas abandonadas.
Estas almas, habitantes
quase espectrais numa aldeia sem outra gente ou bestas, perdida nas geografias,
flanam sem novidade nem monotonia: caminham somente, e comem. Têm uma vida
simples, sem rastos, sem sulcos no chão, somente passam, ao de leve pelos
lugares e não-lugares, sendo difícil de destrinçar uns dos outros, porque são
ambos espectrais.
Em entretantos do passeio,
conversam entre si nos seus dizeres particulares. Há relatos de que se
entendem, o homem, o canídeo, os componentes do rebanho. As ovelhas e as cabras
não se queixam, o Farrusco é cão de poucas confianças e o pastor fala para
dentro, com personagens suficientes para entreter uma mão cheia de palração
constante, ele não consegue fechar a torneira dos pensamentos, sempre a
pingarem.
Cumprem os ciclos da
natureza, não há maior paganismo, a primeira das fés. Eles são seres livres do
tempo porque o cumprem.
Instalada a noite, os
humanos e aparentados – o pastor e o farrusco- aquietam os cansaços
com o olhar suspenso no jogo de luzes do crepitar da lenha, o espectáculo
privado a que assistem diariamente, sempre diferente. As bestas deixam-se
quedas a ruminar na vacuidade: a sorte que lhes coube de não terem pensamentos,
coisa por provar.
Por vezes, interrompendo o
quase silêncio da ruminação, os animais bezoam, berregam, balem, tudo a dizer o
mesmo: a forma do seu dizer, desvalorizada àquelas horas pelos habitantes do
andar de cima, que o que querem é repousar das suas intermináveis caminhadas.
Espampara-se a porta do novo
dia e o Ti Manel veste as calças por cima das ceroulas, que fazem a vez de
pijama, camadas sobre camadas. Salpica os olhos na água gélida de uma bacia ao
lado da cama, e atiça o lume para aquecer a chicória, que ao café
verdadeiro chega-se pouco, em dias festivos, quando vai à feira, na vila que
dista para cima dos dedos juntos, todos contados de duas mãos de léguas, para
negociar a produção de queijos amanteigados. Poucos, mas de vénia,
de pôr as papilas gustativas num frenesim de prazeres.
O Farrusco toma o
pequeno-almoço - se assim se quiser chamar - com o patrão, porque este animal,
é como se fosse homem: falta-lhe falar e fumar, já que de beber ponham-lhe à
frente umas sopas de vinho e pão, e é um consolo vê-lo comer. Sorve
a chicória e partilha o pão besuntado com banha, para dar sabor e consistência
ao conduto.
O Ti Manel atavia o alforge
com um naco de pão barrado, uma bota de vinho tinto, um par de maçãs e, os dois
– o cão ainda renitente - descem para soltar os animais, irrequietos também
pelos apetites da fome e fartos de estarem juntos, naquele espaço bafiento e
confinado.
O dia mal esboça
ténues luminosidades na linha do horizonte, que da aldeia fantasma não se
alcança, porque está cercada pela serra, e porque à frente desta outra há, e a
seguir outra se segue, e assim o que se vê à frente ou atrás, nada mais são do
que serras, e o que é certo e para se dizer a verdade sem enganos para ninguém,
é que a linha do horizonte é impossível de alcançar. Nunca ninguém o conseguiu.
Existe inclusivamente, numa
grande biblioteca de livros raros, um cartapácio
pesadíssimo, que regista os homens que tentaram a proeza, heróis só por
se terem lembrado disso. E esse registo existe, para lembrar aos outros – a maioria
– que apesar de haver coisas impossíveis de atingir, vale a pena tentar, pelo
simples facto de que é melhor do que ficar em casa a remoer arrependimentos.
Horizonte é o longe, muito
longe e o Ti Manel a essa lonjura nem em imaginação. A essa linha imaginária,
não se chega com as pernas, pelo que e apesar de andarilho, o pastor está
impossibilitado por lei de chegar aos confins da linha do mundo.
Outros melhor apetrechados
de viaturas velozes, também não conseguem lá chegar. Quando se está quase, a
linha escapa-se para mais longe, e assim sucessivamente, num jogo de apanhada
em que nunca se apanha.
Relativamente ao Farrusco
não se sabe se tem pensamentos filosóficos ou poéticos. Pensa-se que sim,
porque a forma como por vezes olha para as ovelhas, dá a sensação de grande
interioridade, e transparece melancolia, sinal óbvio de ser filosoficamente
pensador.
Sendo um cão competente, e
este é dos melhores, guiar ovelhas é tarefa fácil. Ele junta, conduz, reconduz
alguma tresmalhada, e ao homem cabe apoiar-se no cajado e congeminar
histórias e falatório interior, para tricotar o tempo. Assim que levam
todos uma santa vida, comer, dormir, passear. Não há maior riqueza nos estados
de alma de águas paradas.
Se alguém lhe perguntasse -
se alguém de humano houvesse caído de trambolhões serra abaixo e aterrando nos
pés do pastor- o que é que o Ti Manel tinha a dizer da beleza das folhas
acobreadas que caiem das árvores ou das flores que renascem em mil cores, ou do
verde da erva dos campos que em viçosa, parece que entra pelos olhos
adentro, ele simplesmente diria que não tinha nada a dizer sobre essas coisas.
Porque isso não acrescenta nada à sua felicidade. Isso é a sua felicidade
natural e simples, não a pensa, pelo que não poetisa.
A poesia é um fenómeno
natural, como os nabos e as batatas doces, que cresce um pouco por todo o lado,
dentro e fora dele, pelo que está bem.
E mais: não conhecendo
outros lugares – mais longínquos que essas léguas até à Vila - havendo a
impossibilidade de uma comparação com o que nunca foi visto, nem se sabe
existir, o lugar onde se vive , não é bom nem mau, nem bonito nem feio, é
o único. É o nosso lugar.
A grandiosidade das
serranias é suficiente para o Ti Manel, dormir sem insónias, porque de dia é
para ter os olhos abertos e de noite tê-los fechados com as luzes da
cabeça devidamente desligadas, para não incomodar o sono e poupar na energia
dos pensamentos, que são bem-vindos, quando à luz do sol se apoia no
cajado.
Aberta a porta do curral, as
ovelhas saem aos atropelos por essa estreiteza, e espertas que são – apesar de
andarem sempre encarreiradas - seguem o caminho da direita. Seguem sempre esse
caminho, e voltam sempre a casa pelo da esquerda, dêem as voltas que derem ao
dia. Convencimentos dos animais, que não se discutem.
Aquela hora o tráfego ovino
entope a aldeia, o único momento estridente e desassossegado da jornada. Depois a tensão
baixa, e suporta-se.
Nunca se altera a rotina nem há novos planos. Vai-se ao sabor do pé que puxa pelo outro pé, e do cheiro da erva fresca. Quando o estômago reclama, o Ti Manel encosta-se a uma árvore se as houver por perto, e come descansadamente, intercala o pão com golos de vinho, em todo o momento com o olhar no nada.
Homens solitários alimentam-se de
olhar para o nada. O cão, que na hora de trabalho não se distrai, aproveita o
intervalo para espairecer, tem a mania que é um cão de caça, mais do que
um sonho, é uma mania sua. Podia ser pior.
O pastor, por compaixão não
lhe diz a verdade: com aquele peso e corpanzil, as lebres tomam-no por tonto,
rabeiam-no, e à noite nos covis contam aos filhotes deliciados com
as histórias, como puseram o tonto do cão com a língua de fora, a esgotar-se
que nem um louco atrás delas. Há dias em que ele quase consegue apanhar uma, e
apesar de nunca a abocanhar, regressa feliz e inchado, para junto do dono.
Deita-se a seus pés e olha-o num relance. Parece estar a dizer que poderia ter
sido ser um excelente cão de caça.
Se o tempo está simpático –
adjectivo que no campo não tem sentido - o pastor deita-se e olha para o céu.
Olhos escancarados, absorvedouros de cor, cores com que depois forra as paredes
da alma.
Não é inusual quando se deixa assim ficar de aspirador, que o farrusco cansado de ser parvo, armado em farejador, desperte o patrão com uma lambidela farta.
Desperta-o e leva um pontapé, que umas vezes acerta e outras não, mas
está-se em crer que o objectivo é mesmo não acertar. Está na natureza daquele
homem ser impulsivo e bruto, mas isso é tudo uma representação, ele é boa
pessoa.
Com isto e pouco mais se
passa o dia, a trupe volta a casa noite posta, agora sem conversas,
silenciosa, com vontade de descanso.
Estacionam o gado, atiça-se novamente o fogo, Manel descalça as botas malcheirosas que não faz diferença, não há ninguém nas redondezas para se queixar, o farrusco não se descalça porque anda sempre de pé feito. Começa para eles a hora de fiar os linhos da memória, histórias reais e outras sonhadas inventadas que emergem à superfície, passadas, repassadas, no pente fino do silêncio.
Recordações do passado, dos bailaricos na aldeia, das moças trigueiras e
cheias, das festas e romarias, dos filhos, da sua ausência nas terras de um Norte
muito ao Norte – doutores uns, que foram ao ganha-pão - da mulher que
partiu quando estava a dormir (parece que já estava preparada de véspera:
fenecer deitada, já esticada, para facilitar o trabalho às vizinhas, foi só
enfiar o vestido pela cabeça e apertar os botões nas costas, rígidas, frias,
mortas), lembrar com amargura a partida dos últimos habitantes.
Remói-se o álbum de
fotogramas a sépia até que chega o sono. O farrusco leva vantagem, ressona
desde que se instalou rente ao fogo, não tem que fazer contas com a vida, pode
adormecer mais cedo.
“Mais um dia passou, e
amanhã, se Deus Nosso Senhor quiser, continuo a olhar para o céu que ainda me
falta azul para forrar uma das paredes.”
II
Indiferentes – passam a vida
nisto: fingem que não se veem - o ti Manel e o farrusco ancorados no mesmo
sítio, cada um no croché dos seus pensamentos íntimos, ao calor das brasas da
lareira.
Terminaram o dia e as suas
obrigações. Os acontecimentos, os actores e os espectadores deixaram vazias as
cadeiras na plateia e saíram de palco. Apagaram-se os holofotes, os arrumadores
limparam os sedimentos da poeira, recolheram-se.
O pano da noite cobre as
pessoas e outros seres.
O ajeitar das madeiras e
outros materiais, interrompem a espaços a escuridão do silêncio, começa o turno
dos fantasmas reais, dos imaginários e dos mundos dos outros mundos. É o
horário das almas penadas, das fadas, dos gnomos, da trupe dos elfos e as suas
traquinices.
Fios de ideias esvoaçantes
entram pelas janelas abertas, enfunam-se os cortinados, pisca a luz nos pavios
das velas acesas, há correntes de ar que circulam nos interstícios das
prateleiras dos arquivos pessoais.
“Onde andam os meus? O meu
neto Manel, o meu nome, não lhe vi feições, saindo ao pai é parecido comigo.
Pudesse eu mergulhar estes olhos, momentaneamente autorizados pelas cataras, a
ver os seus contornos. Era uma felicidade”
“A esta hora já deve estar a
dormir, amanhã tem escola. Lá é sempre mais tarde, e escuro, dias que não são
dias, são noites constantemente.”
“Falta tanto para o próximo
verão, falta tanto no que sobra de minutos. De nada me vale o tanto que não
posso descontar em cruzes nos dias do calendário: este ano como nos passados
não vêm para as festas da aldeia, aldeia manca de gente.”
“Não sou de meiguices, mas apetecia
um bom abraço do meu Joaquim, com palmadas nas costas! Contentava-me vê-lo; e
do Manelito estontear-me com as suas correrias inesgotáveis de criança.
“Estou a ficar velho, dá-me uma
melancolia peganhenta.”
Era mais ou menos isto que o
Manel pensava, com palavras mais suas, menos polidas.
O farrusco não tem
descendentes emigrados, a sua família é o dono. Não rumina saudades – é um cão,
não rumina - sem razão de as ter – o que é bom para a saúde – é um cão sem
restrições na liberdade podendo roncar profundamente, que é o que faz.
Estas duas almas são a
alegria deste cemitério de casas que não são mausoléus porque estão desabitadas
de vivos ou mortos.
Só o vento trespassa os
interstícios dos corpos e das pedras, nada mais que vento frio, reumático.
Depois destas evidências
menos edificantes da velhice – a pieguice - o ti Manel, às portas do sono,
deixa-se cair na enxerga, iniciando o despique sonoro com o fiel companheiro,
que nenhum deles se ouve ao outro, pelo que todas as noites neste casebre perdido
numa aldeia abandonada da serra, uma orquestra a duas vozes executa uma
sinfonia privada para surdos.
Do outro lado das paredes,
no exterior, os passaritos, muitos, estão entretidos no seu chilrear habitual,
não ouvem nem querem saber da obra-prima que está a ser executada pelo pastor e
o seu fidelíssimo cão, frustrado de caçador incompetente.
Nem o gado a descansar na
loja os ouve, que seria a maior e a única audiência. Até hoje não se soube de
um comentário de agrado ou desagrado sobre a qualidade das récitas, o que
impossibilita uma crítica distanciada.
Essa ideia muito legítima de
querer conhecer o neto, ficou a fazer pingue-pongue na sua cabeça, que nos dias
seguintes, não fosse o cuidado e profissionalismo do cão, o gado ter-se-ia
tresmalhado, inexistente o seu querer ao trabalho, pouco ou nenhum,
revirando-se apenas nos pensamentos obsessivos da saudade.
Decidiu-se por uma atitude,
para sair do impasse, que é sempre uma paragem forçada e esgotante.
Ganhou-se de coragem e
começou por ensaiar mentalmente a escrita de uma carta, a construção das
palavras para quem delas não é pedreiro, não faz paredes direitas. É necessário
pensar muito seriamente antes de se arriscar a pegar na caneta. No entanto,
arriscou, ele é um homem corajoso e não se lhe pegam os medos.
O texto simples dizia: “Meu
querido filho, quando vens a ver-me? Quando te vejo eu a ti? Quero conhecer o
meu neto tocando-o, que só assim se conhecem os seres. Dá-me notícias, e uma
alegria. Teu pai”.
Ficou-se parco, por aí, foi
mais do que suficiente. Dizia tudo, tudo o que há para dizer quando se choram
saudades.
Numa ida à feira da vila,
vender queijos dos bons e soltar a rédea às conversas engarrafadas e acumuladas
de não ter ninguém com quem falar, pediu a um conhecido que pusesse a carta no
correio.
Bebeu bagaço, a intercalar
os convívios breves com conhecidos, cansou-se rapidamente do espalhafato da
urbe. Muito barulho, muito movimento, é melhor o silêncio.
Voltou às rotinas da
pastorícia e assim seguiram os fios dos dias nas conjugações de cores que
escolhem, continuando o ti Manel nos seus afazeres profissionais, com o
farrusco mergulhado em preocupações porque o dono não tirava os olhos turvos da
ponta das botas. Estava a deixar de olhar para o horizonte. De noite pelo
contrário, revirava-os para as telhas do tecto: parecia que rezava. Deve ser da
velhice, recomeça-se a rezar quando se aproxima a prestação das contas.
A notícia que ele esperava,
a razão dessa sua espécie de desvario contido na apatia, não se anunciava.
Sendo o lugar da aldeia
póstumo de gentes, o carteiro aparecia pouco e mais por consideração ao Manel,
que indo na direcção de outros ermos, em calhar, fazia uma paragem técnica para
partilhar um copo de aguardente com figos secos, a fazer lastro para o destino
seguinte e dar dois dedos de discurso, um ânimo para os dois que se gostavam
genuinamente como amigos de toda a vida.
Nos dias que se seguiram ao
envio da carta para o filho, o pastor perscrutava insidiosamente o carreiro que
faz a bissetriz do casario bafiento, com os cotovelos repousados no beiral do
casebre, esperançado pela vinda do amigo.
E ele que tardava!
..........
Os relógios deram as voltas
que tinham que dar até o António dos CTT estacionar com estrondo a sua famel
(o melhor e único investimento da sua vida), em paralelo com a parede da
casa do Manel, encostada portanto e a apontar para a saída, que há saída não
lhe conviria grandes manobras. A direito, e mesmo assim quase de certeza
ziguezagueando, para não haver incidentes.
Anunciou-se buzinando.
O cão ladrou competentemente
– grande cão este - e o dono deu nota do acontecimento abrindo a porta com os
nervos em rendilhado.
O António tira da ilharga da
motorizada um pacote.
-Aqui tens Manel, uma
encomenda da França.
-Achega-te homem deixa ver.
Tremia-se todo, por dentro e
por fora, tentando não mostrar fraquezas, inevitáveis fraquezas estas quando se
ama tanto e não se pode abraçar logo ali.
Conteve-se em esforços de
esperar que o companheiro se sentasse no escano ao lado do fogo, foi pela
garrafa de aguardente, íntima dos dois, serviu, tomou pose do embrulho,
levantaram os copos e emborcaram de uma vez. Serviu segundos, e abriu a
encomenda.
Uma caixa negra, mais ou
menos quadrada com um papel branco colado com fita-cola que dizia (depois de
passar o escrito para as mãos do António):
“Olá meu pai,
Estimo que te encontres bem,
nós por cá, indo. Peça por favor ao António para ler esta carta, que tem
prática de ler os endereços nos envelopes e é um entendido nas letras.
Ele explica-lhe tudo.”
O farrusco não deu opinião,
caladíssimo.
Dizia a carta:
“ Meu pai, a vida
nem cá nem em parte nenhuma é fácil, trabalhamos muito, mas é tão cara, que não
se chega a juntar. E quando se arrecadam uns trocos, logo aparece uma nova
despesa, que leva o tudo tão pouco que se tem.
Ainda não é desta que
o vamos visitar. As coisas estão a ficar difíceis. Os de cá nunca gostaram de
nós, aceitaram-nos para fazer os trabalhos que eles não queriam e agora
cospem-nos na cara e dizem coisas racistas. Deixam-nos ir ficando, sabe lá até quando
e como.
Trespassam-nos (que quer
dizer que nos cortam a alma como se nos espetassem uma faca) com olhares frios,
virando a cara, como se fossemos seres desprezíveis, inconsistentes.
Agora que também lhes começa
a faltar o emprego, eles descarregam os seus remordimentos em nós, nos
emigrantes.
Não posso mesmo ir, se me
ausento do trabalho um único dia, no seguinte já o perdi”.
Ti Manel ouvia a leitura
feita pelo António, com os olhos num crucifixo pendurado, deslocado, numa
parede imensa e vazia. (E o cão a pensar que o dono estava a ficar religioso
por maluqueira).
“Senhor António, essa
encomenda que envio ao meu pai, é um computador, já devem ter ouvido falar
dessas máquinas, servem para tudo.
É fácil de ligar, mas se for
necessário ajude-o”.
O Manel vai no terceiro,
copo.
O carteiro, que se tem em
conta de ser um profissional das letras, pequena, grande, fina, grossa,
rabiscada, formal - um decifrador de todas – rapidamente entendeu a maneira de
dar vida à máquina.
-Vamos ligar, que isto é
parecido com as televisões.
A caixa depois de aberta
está cheia de botões, seguidos uns aos outros em filas, todos pretos. Sem
desenhos, bonecos, letras ou números. Nada, só preto. A tampa é lisa e
igualmente negra.
Um autocolante branco com
uma seta a apontar para uma tecla. No autocolante está escrito: “AQUI”. António
pressiona-o.
Dá-se uma estridência de
piscares e sons. O farrusco ficou com os pelos desfrisados, ladra
histericamente.
E depois, faz-se luz:
Aparece um miúdo de olhos
profundos e fixos, com um cabelo em caracóis revoltosos e um sorriso imenso de
vida que inunda a sua cara de ainda muito miúdo.
Ti Manel não o reconheceu à
primeira mas encontrou parecença. Chorou, desarmou-se de homem em frente do
amigo e chorou pela primeira vez em público.
A criança ou o boneco de
criança projectado a cores no ecrã, respeitou a emoção e esperou que o avô
acalmasse. Falou:
-Posso sair daqui e
sentar-me no teu colo?
Entrou-se numa outra
dimensão, sem nome, não conhecida. Um fantástico, uma irrealidade, um mundo
paralelo, uma inverosimilhança. No entanto foi assim que aconteceu, nesta
história verdadeira. E teve como testemunhas aquelas três almas que estavam
presentes no momento da teletransportação do neto para o
colo do avô: uma das cenas mais emocionantes que estes três viveram nas suas
vidas simples e sossegadas.
O velho, feito pasmo disse:
“salta que eu agarro-te” e abriu os braços fortes enquanto o miúdo se lança no
ares em voo picado de um universo a duas dimensões para este que tem pelo menos
mais uma.
-Hoje não tenho escola,
tenho o dia todo para estar contigo.
-Como se chama o teu cão?
-É o farrusco.
-É maior que eu.
-Pois é.
-Morde?
-Não sei, pergunta-lhe.
O miúdo estendeu-lhe a mão e
o animal, ainda não refeito dessa experiência mística, procurou cheiros, e pôs
o focinho ao jeito de uma festa, e mais, todas as que o miúdo quisesse.
-Vamos passear avô, leva-me
a ver os teus lugares. Tens mais animais?
-Muitos.
-Vamos soltá-los para nos
fazerem companhia.
-Vamos.
O Manel pôs a criança às
costas, deixando o António atónito a olhar para os dois com o copo na mão, e
desceram as escadas seguidos do familiar.
Hoje refresca porque são
inícios de Outono e o avô assegurou-se que o catraio estava confortável.
Ocorreu-lhe nesse gesto simples quase imerecido de referência,
que há muito tempo não protegia ninguém. Sentiu-se bem.
No borbulhar incessável dos
pensamentos, emergiu uma lembrança antiga, em que outra criança, num
daguerreótipo a sépia, veste uma samarra e um homem jovem se curva para lhe
ajeitar a gola de pele de raposa. Reconheceu-se a si como filho, reconheceu o
seu pai, e nada disso existe agora, materialmente, a não ser nas feições
de uma fotografia antiga.
-Tens tantos animais aqui
fechados. Como se chamam?
-Ovelhas.
-Todas?
-Só ovelhas. Não têm mais nomes.
-Para que servem?
-Para darem leite para os
queijos, e lã para fazer camisolas quentes.
-Posso tocar?
-Podes
Abriram a cancela da loja e
os bichos foram saindo, o miúdo com o braço a fazer de portagem foi-lhes
tocando enquanto saiam na sua lentidão ovina habitual, enfadonhas que são as
ovelhas.
O cão comanda a procissão,
fecha-a o velho, com o neto às costas, cordeiro de deus.
Caminharam-se serra acima, e
foram pondo a conversa em dia: os seus atrasos, as novidades e as curiosidades.
Houve histórias contadas de avô para neto, e outras intimidades.
Embrulharam-se, distraíram-se, gozaram-se, na troca das palavras.
Caminharam sem conta dos
passos que deram, distraidíssimos do passar do tempo e regressaram naturalmente
para casa quando teve que ser.
-Estou cansado avô.
Apetece-me dormir.
-Queres ficar na minha cama?
Ponho mais uma manta? Está fresco.
-Não posso avô, eu só estou
na tua imaginação que ao veres-me na imagem do computador, reinventaste todo o
dia que passou.
-Isso não é possível, acabo
de te tirar das cavalitas, ajudaste-me a pôr o gado no curral! Dizes que não te
toquei se eu te sinto?
-Não me tocaste avô, mas
sim, é verdade que me sentiste.
-Não te preocupes, amanhã se
quiseres voltamos a passear juntos, e se me deixares, desta vez, levo eu o
cajado na mão.
-Agora carrega nesse
botão e vamos dormir”.
-Até amanhã avô”.
-Boa noite meu filho, dorme
bem.
III
“Agosto é o melhor mês do
ano.
Gosto de todos, mas este,
para mim, é o mais bonito dos nomes com que baptizamos as fatias do tempo.
Agosto é o mês dos campos
posto em sossego, da família que nos visita, das festas em honra da nossa
padroeira.
O Farrusco e eu andamos
desvairados nos preparativos das festas da aldeia. O Farrusco é cão, mas é o
meu familiar mais próximo. Os outros estão lá fora (porque raio se diz lá
fora?), e é por essa razão que a comissão organizadora das festas da minha
aldeia só tem dois elementos.
Não há mais habitantes, e
com os fantasmas não se conta, que eles para mexerem um dedo, está quieto! Só
estorvam.
É uma trabalheira doida, só
uma pessoa e outra que é metade de pessoa, mas a vontade é muita e somos
profissionais nos festejos, sentimentais portanto.
Este casario é mais um
lugarejo acanhado do que uma aldeia, mas tem igreja e escola, o que é
fundamental para a sua dignidade de aldeia, apesar de não terem uso.
Como somos poucos, o
farrusco e eu – mas precavidos - antes de pôr mão na obra, discutimos
longamente em sede de assembleia, a estratégia do alindamento dos exteriores, o
alinhamento das cerimónias religiosas e a contratação dos artistas, tudo com
tempo, haja a necessidade de rectificativos de última hora, antes da chegada
dos convidados.
Decidiu-se que no que
respeita aos confeti para engalanar a rua principal, eu penduro-os e
o farrusco lambe a cola (tem andando com um olhar vago nos últimos dias, mas
não deve ser nada!)
Quanto às roupinhas da
santa, está tudo controlado. Ela não é de grandes exigências, pelo que vai com
o manto rosa pálido das últimas vinte e três procissões. Não estamos em tempos
de esbanjamentos. Limpinha e honrada, o povo aceita.
Como estamos parcos no
orçamento, as despesas sempre maiores que as receitas - soubesse eu escrever
números num papel e dava a volta à coisa, mas assim de cabeça é natural que
falhe - este ano não temos banda para o bailarico.
Não há problema: o António
dos CTT ajeita-se na concertina e faz o concerto de graça (nunca é de graça
porque ele tem muitas securas e desforra-se na aguardente).
Tenho por aí um bode velho,
é um cabrão de um bode – Deus me perdoe – que está destinado às bifanas.
Tivesse sido simpático que assistia aos festejos, assim vai fazer parte dos
festejos fatiado no pão.
E acho que está tudo
tratado. Estamos prontos para receber as nossas famílias.
Espero que venham a caminho.
O farrusco parece mais
nervoso que eu (e ainda por cima com a língua colada no palato).
Tenho quatro foguetes
guardados da última festa (vai para três anos), que estavam cheios de verdete,
humidades acumuladas na loja de estarem ao lado das batatas. Pus ao sol ontem,
pode ser que sequem.
Amanhã, quando os meus
chegarem, vão ser recebidos a foguetório com o meu assistente a uivar, raio do
cão, se fosse aos concursos podia ter sido cantor!
Será que eles vêm?
Puta de vida esta, que os
obrigou a partir!”
IV
Estava todo farruscas. O cão
assustou-se claro – os pelos ficaram híspidos – e ladroou sem pedir autorização
aos pulmões.
- Sou eu farrusco – disse o
ti Manel.
O bicho reconheceu a voz do
dono e acalmou o pranto. Quanto aos preparos em que este se apresentava não
chegaria lá sem explicações mais convincentes. E ele era um canídeo
inteligente.
O estouvado do pastor –
dera-lhe para ali – cobria-se com uma saca de serapilheira a fazer de casaca,
cravejada a castanhas e nozes, com apontamentos de folhas vermelhas. Enfiada na
cabeça, uma carapuça da mesma cor.
Cada vez que ele meneava a
cabeça, com um guizo a fazer de berloque no carapuço - a dar e dar - a barba,
já de si branca, soltava uma espécie de poeira nívea.
O sacana (cogitações do cão)
tinha a cara e as mãos chamuscadas de preto. Preto?
- Farrusco, estou de Pai
Natal.
O cão, que era o único
indivíduo naquela casa que não se chegava ao bagaço, compreendeu o personagem
que o dono estava a encarnar. Agora em preto, nunca tinha visto!
Como viviam num sítio ermo
era possível que estivesse desactualizado, e guardou essa estranheza só para
si.
- Hoje é a noite mais bonita
do ano.
- E vamos comemorar como
manda a tradição: em família.
O cão que apesar de ter
nascido na condição de cão, tinha o seu tino próprio, ficou com dúvidas relativamente
aquela afirmação.
A família eram os dois, não
vislumbrava portanto motivos mais fortes para que a noite fosse diferente de
todas as outras que o ano desfia, já que a companhia era sempre a mesma.
- É uma noite especial, em
que a paz e a harmonia baixa ao mundo, a noite do verdadeiro amor - o velho
parecia um filósofo.
A rotina desse dia foi a
receita habitual: madrugar, pastar o rebanho e os sonhos, e voltar para casa
para a companhia do braseiro.
Foi tudo igual mas era
possível que o dono, para estar com esta conversa, tivesse abusado na dose do
costume. Ou então, outros sentimentos que desconhecia por ser um animal quase
irracional, causavam aquela atitude desconforme ao normal procedimento do
correr dos dias numa aldeia do abandono.
- Convidei o Zé da mula, que
também está casado com a solidão, para a janta.
-Este ano vai ser uma
alegria nesta casa.
Agora que olhava melhor, o
farrusco viu que a casa estava num preparo diferente. Na lareira - um de cada
lado - pendurados dois peúgos velhos, com buracos. A mesa estava posta – com
garfos e tudo - e um coto de vela enfiado no gargalo de uma garrafa bojuda e
verde, a fazer de marco geodésico.
O Zé da mula vivia do outro
lado da serra – mais de uma hora em bom andar – e era um homem - como todos os solitários
- contido nos discursos: não lhes dá uso no dia a dia. Quanto ao resto o Zé era
igual aos habitantes daqueles lugares: resistente e sorumbático.
Caído o pano da noite, veio
acompanhado da dita. O farrusco foi fazendo as honras da casa, rodeando e
cheirando insistentemente a híbrida, pondo-se a jeito aos humores instáveis da
mula que era um ser de carácter retorcido. Teve sorte porque ela também estava
imbuída no espirito da data, e não lhe passou “cartão”.
Ao Zé que via as coisas com
uma espécie de nevoeiro permanente em frente dos olhos, pelo que não era
esquisito nas apreciações, não lhe passou desapercebida a diferença e não
deixou de comentar a indumentária excêntrica do amigo:
- Oh Manel pareces o
Baltazar, o rei mago.
- O Baltazar? Porque dizes
isso?
- Porque estás disfarçado de
preto.
- Então não sou o Pai Natal?
- E porque é que havias de
ser o Pai Natal se estás pintado de preto?
- Não era a cor dele?
- Não, essa era a cor do tal
do Baltazar. E o Pai Natal não tem nada a ver com essa história, é um gajo do
Norte, enquanto o menino Jesus e os personagens todos do presépio, viviam lá
para baixo, no deserto.
- Estás a mofar comigo.
- Não estou nada. O pai
Natal é um gajo gordo e tem um carro puxado por renas e faz a entrega das
prendas. O Jesus, nasceu numa manjedoura- ou parecido – e recebeu a visita dos
reis magos, o branco, o amarelo e o preto.
- Onde raio terei ido buscar
essa ideia? Olha que se dane! O Natal é como um homem quiser e eu quero que
seja assim.
- Até ficas bem.
- Vamos mas é limpar o
canal, preparar o estômago para as rabas e o bacalhau.
- Boa ideia Manel, venha daí
um brinde.
E começaram nisto, que não
se sabe onde acaba, mas sendo dia de festa é de esperar prolongamento.
O farrusco já habituado a
ver o dono assim vestido, deixou-se dormitar ao lado da lareira.
…
- Meu amigo, a comida está
pronta, vamos jantar. Tu também farrusco, hoje comes connosco.
- Oh Manel, o que é aquela
caixa preta pousada no canto da mesa?
- É o meu neto
-O teu neto? Não o vejo.
- Mas vais ver.
O ti Manel serviu o bacalhau
com as couves e as rabas, numa pirâmide a extravasar dos pratos. Comeram
calados como fazem as pessoas que estão compenetradas na comida e não têm
assunto.
Terminado o repasto, disse o
Manel:
- Agora vamos falar com o
Manelinho que está na França.
- Como se não tens telefone?
- Ele está dentro da caixa
preta. Foi o meu filho Joaquim, que me mandou pelo correio. Já experimentámos e
funcionou. Levanta-se esta tampa, carregamos neste botão e o catraio começa a
palrar.
- E podemos fazer perguntas
e tudo?
- Não, diz sempre a mesma
coisa. Mas não faz mal, é bom na mesma.
O Zé da mula desconfiou.
Olhou para o cão deitado aos pés da mesa, e este confirmou.
- Estou vestido assim para
lhe fazer a surpresa. Os miúdos acreditam nestas coisas.
Por magias que as há, ou
outros mistérios por conhecer, apareceu-lhes em cima da mesa um miúdo pleno de
vida, aos pinotes e tropelias num jardim enorme com uma estranha torre de ferro
cheia de arrebites por cima da sua cabecita.
Fartou-se de falar, e o avô,
nas patetices apimentadas de sentimento, que quase todos os avós fazem para os
netos, abanou o guizo pendente do carapuço, soprou o pó branco das barbas,
ensinou os enfeites na saca de serapilheira.
Estava feliz, era uma grande
noite de Natal.
O Zé da mula, perdido de
família de pequeno, entrou na brincadeira e divertiu-se à grande. Fartou-se de
dizer adeus e desejar as Boas festas.
O cão farrusco, não apanhou
nada: estava estacionado nas traseiras da máquina e só via um quadrado preto
pelo que desistiu de ser solidário.
Quando por artes a imagem
desapareceu, os dois velhos sentaram-se de novo e encheram um último copo de
aguardente.
Depois disso o Manel ficou
melancólico e ressonou. O Zé ficou embriagado e ressonou.
No dia seguinte voltaram à
sua vida. Tinha terminado o Natal numa aldeia remota e deserta de gentes.
Boas Festas vos festejem!
V
Passou mais um ano, o tempo
não dá tréguas, casmurro e embestado, sempre em frente sem paragens para ganhar
fôlego.
Enlameado até a décima
quinta casa, se não for mais, o pastor e dono do cão farrusco, por lá continuam
serrania acima, serrania abaixo, pastoreando o seu rebanho de cabras e ovelhas.
O farrusco, cada vez mais
velho - a vida de cão-pastor obriga a exigências do corpo - no seu papel de
cão, segue fielmente o dono, apesar de guardar cada vez menos seja que
propriedade móvel (o rebanho e o patrão), seja que imóvel (a casa na aldeia)
forem. Deseja que o deixem em paz, um despegamento generalizado nos cães
velhos. Ainda assim continua com aquela mania que não lhe sai da cabeça, sendo
um mastim, que é um excelente cão de caça. Também já não vale a pena chamá-lo à
razão.
António o carteiro, aquele
que tem uma Famel quase tão velha
quanto ele, continua a distribuir cartas, agora raríssimas, desconsiderando-se
para a contagem, as dos bancos e as das contas para pagar. António continua a
gostar bastante de aguardente, e como em cada paragem nas raras casas ainda
habitadas por espectros-gente solitários, assume para si o ritual da aceitação
do vinho como sangue de cristo, agora transformado em aguardente, não recusa convite para molhar o bico, acabando o dia em
percursos de gincana com a motorizada. Mas esta tem poderes, parece ser gente,
quase que se conduz a si própria, e leva em segurança o dono para casa.
Tudo neste pequeno mundo, se
encontra num momento de normalidade, tudo menos as árvores que cada vez há
menos. Este verão mais uma razia. Daria até pena ao pastor olhar para as serras
e vê-las despidas, anémicas terras cinza-acastanhadas. Daria pena se ele a
tivesse, mas não é homem para sentimentos nem emoções à flor da pele.
Pode dar-lhe uma volta ao
estômago ao ver o estado das coisas, mas fica arrumada a revolta abafada até a
próxima vez que olhar, muito provavelmente amanhã, não tem outra paisagem
para pousar a atenção, a não ser as interiores, que são monótonas e repetidas.
Aproxima-se o Natal. O tempo
é um estonteado de sucedimentos: começa um ano e já se está no final desse com
os pés virados para o seguinte, para aqueles que não se ficam
no que acaba e ganham direito de passagem a mais um ciclo a juntar às suas
biografias.
Este Natal, como os
anteriores, esperava-se cenhudo, passado a custo, a olhar para o
borralho, mudo, não fosse este ano a novidade de a aldeia ter novos habitantes.
Tantas e tantas vezes que o
pastor já tinha pensado nisto, e não era demógrafo nem sociólogo. Se há tanta
casa vazia não fazia sentido não serem ocupadas com sorrisos e choros e calores
de gente viva. Pensava-o encostado de costados a um granito ou com os queixos
suavemente pousados no cajado, perscrutando esses assuntos, a dactilografar
para si um jornal imaginário da vida inexistente da sua aldeia e das cercanias
que compõem toda a lonjura conhecida do seu mundo.
Foi desta. Uns senhores da
capital, que ele nunca virá a conhecer a menos que haja uma desgraça
e eles venham lá de tantos quilómetros longe, dar-lhe um abraço e dizer-lhe
coisas que não entende, e ele ao lado deles enquanto outras pessoas também
estranhas seguram microfones nas mãos e filmam os senhores e o pastor crédulo e
bovinamente pacífico, apesar de se
lhe ter abatido uma desgraça, que não se espera aconteça.
Decidiram os senhores de
Lisboa enviar com alarido e foguetório duas famílias de refugiados. Daí o circo
de gente com fastio em bons carros novinhos em folha, e o regimento de
captadores de notícia por medida. Um teatro que acontecerá muito em breve que
ele nem sonha.
Quando o António carteiro
lhe deu em primeira mão a notícia (sendo carteiro sabe tudo primeiro do que os
outros), ele não sabia o que queria dizer a palavra “refugiados”, mas não o
referiu para não dar parte de fraco.
Guardou a palavra na cabeça
e quando o filho emigrado lhe telefonou, perguntou o seu significado. Ficou ao
mesmo tempo contente e preocupado.
Contente porque ia passar a
ter alguém a quem pelo dar os bons dias e as boas noites quando atravessasse a
aldeia com o rebanho e o cão travesti (pastor-caçador, caçador-pastor);
preocupado, porque o filho lhe disse que os refugiados não são gente de
confiar. Vêm de cara baixa, olhos no chão, é tudo falinhas mansas e bons
comportamentos, ensaiam as primeiras linguagens gestuais, e quando as pessoas
descontraem a acharem que têm novos amigos, tomam conta de tudo e praticam o
mal.
O velho pastor habituado à
sua liberdade de caminhante em estado permanente, nunca teve a necessidade de
ter posse de terra, considera-a toda sua, porque a pisa. E esta também é
dos outros que lhe dão outras utilizações, e desde que não haja muros e
as possa atravessar usufruindo da liberdade dos passeios, está garantida a sua
sensação de posse. É essa a aproximação mais fina do seu entendimento sobre
“ser senhor do mundo” sem ter nada à sua conta.
A pensar assim, acha ele,
não havia motivos para desconfiança: havia muita terra e muita casa livre, dava
à vontade para todos.
Quanto ao fazerem mal, era
uma coisa estapafúrdia: gente que foge ao mal com falta de paz não vai fazer
mal a quem disponibiliza um abraço caloroso. A menos que sejam malucos, mas os
senhores de Lisboa que sabem tudo muito bem, com certeza que lhes farão todos
os testes de maluqueira antes de os enviarem para qualquer lado.
Pelo sim, pelo não, o
Pastor convocou para uma assembleia municipal o António da Famel, a
mão mal cheia dos espectros viventes nas redondezas, e incumbiu o
farrusco como olheiro, para discutirem e votarem um plano de acção para a vinda
dos tais refugiados.
Na casa dele, amanhã na hora
da janta. Vamos ver se o António ainda chega em condições de entender o teor da
assembleia, vamos ver no que no que vai dar o decisivo camarário.
Entretanto o pastor desceu à loja da sua casa, para ver os níveis da pipa de aguardente e encher um par de garrafas. A noite de amanhã iria ser longa. O farrusco ficou esparramado em frente do fogo quentinho da lareira, a sonhar com perdizes.
Vamos ver no que isto vai dar. Os da cidade têm cada ideia! Para ele é
uma coisa boa, vai ter companhia para o Natal.
Será que eles gostam de
bacalhau?
VI
Na aldeia não faltam
casas devolutas, são praticamente todas. Decidiram dar a uma família a casa e a
horta do João Abrenúncio, falecido sem descendência conhecida, há cinco anos.
Para os outros ia a casa da Maria das Dores, a eterna pastorinha (como tinha
sido trigueira e metediça aquela rapariga, lembrava-se bem o Manuel), que
morreu farta de homens mas estéril.
Para além de todos
terem o seu quinhão de terras para subsistirem, o Manel resolveu que dois dias
na semana o seu rebanho seria pastoreado pelos sírios. Alguém lhe disse, ou
ouviu, que nos desertos onde eles vivem a sua principal actividade é andar com
gado de um lado para o outro, sem parança, nómadas a vida toda. Vamos ver no
que dá. Se eles derem conta do recado o Manel vai aproveitar esses dois dias de
descanso para não fazer nada. Pode ser que goste e se habitue.
VII
Chegam hoje.
O Farrusco, velhinho
que anda, reumático, só abana a cabeça, da direita para a esquerda e depois o
contrário, seguindo os murmúrios do dono, que também anda de um lado para o
outro, no espaço reduzido da casa que partilham. Abana a cabeça o cão para ver
uma sombra, um espectro, separado ele do dono pelas cataratas, um
distanciamento dos olhos, dos olhos velhos, a que é alheio e não queria.
- Chegam hoje Farrusco,
os da Síria. Ouvi dizer que obedecem a um deus diferente. Sempre quero ver se
vão frequentar a missa do padre Jerónimo!
O cão, que do longo
convívio de anos com o pastor já lhe aprendeu a língua e as suas semânticas,
não valoriza. Ele é um bom homem. São incertezas e medos. Ele vai dar-se bem
com os emigrantes. É um coração mole.
-E como os vamos
entender? Eu não percebo a língua deles, eles não percebem a minha, e tu, surdo
como as mulas, de pouco proveito como tradutor, como vai ser?
O cão, a ficar cansado
da conversa, já nem a cabeça mexe. Deixa-se em posicionamento estático, frente
ao fogo acolhedor da braseira, embalado pelo som do crepitar dos galhos de
madeira perfumada que ardem no seu vagar. É o seu momento meditativo.
- ouvi dizer que são
bons pastores. Menos mal. Mas as cabras e as ovelhas não são as mesmas. São de
nacionalidades diferentes. Vamos ver. Tenho dúvidas.
- e se os animais não
os entendem?
-tenho dúvidas e tu,
meu malandro, não acrescentas opinião. Julgas que eles vão trazer um cão com
eles? Os cães, na miséria que é aquela guerra, comeram-nos. Deixaram de ter
cães, e gatos e galinhas. Só ficaram com os ratos, os cabrões mais espertos
deste mundo. Resistem a tudo, não se deixam ensinar para lhes darmos uma
utilidade que seja. Estão aqui para ocupar espeço. São como são: oportunistas.
O Farrusco ouviu falar
de ratos e automaticamente pôs as orelhas em estado de alerta, ou seja:
empinou-as, mais uma vez a fazer-se de cão caçador, a grande frustração da sua
vida. Logo percebeu que era uma conversa, monólogos do dono, e regressou à sua
atitude contemplativa.
O pastor enquanto
presidente da junta de freguesia tinha a obrigação institucional de receber os
refugiados, o que obedece a um regulamento próprio, com as suas regras e
preceitos. Acontece que era a primeira vez que os recebia e ele não conhecia
esses preceitos.
Sendo tecnicamente
analfabeto e presidente de uma junta deserta de gente, não sabia dos
procedimentos de acolhimento oficial. Nunca os leu, ou seja, nem podia, quem o
devia fazer e com explicações, era o carteiro, o da famel, seu correligionário de partido e intérprete oficial do Manel
em todos os assuntos que envolvessem as escritas e os escritos.
Acontece que o António
carteiro foi acometido de um achaque inesperado e começou, de um dia para o
outro, sem aviso o que é pior, a tremer das mãos. Ele há cada coisa! Um homem
saudável, mexido, sempre de um lado para o outro, de motorizada, a apanhar bons
ares, convenientemente hidratado, dar-lhe uma doença. Ainda por cima mecânica.
Há injustiças que não têm explicação.
Nem de motorizada pode
andar, com as tremuras estaria sempre a acelerar. Um perigo.
Essa sua recente
incapacidade de estar sossegado com as mãos, dificulta a leitura de textos,
sejam eles quais forem. Nem textos nem coisas comesinhas, como levar o copo à
boca, gesto fundamental. O homem tem feito as suas tentativas em casa, mas a
coisa não vai de feição. Ler nessas condições adversas, levam a que o homem
salte as linhas. Não que queira mas os olhos também ficaram em pingue-pongue. Lê
uns farrapos de frase numa linha e completa com outros da linha seguinte.
Saltita. De uma linha para outra. E quanto mais nervoso fica com a
inverosimilhança do que acaba de dizer lido em alternância de linhas do
documento em que está concentrado, mais desinquietado fica, lendo por sua vez pior
que a anterior. Chega a criar histórias estapafúrdias, coisas que acontecem
aleatoriamente, ainda assim maldades que não se fazem a um homem que dedicou
toda a sua vida ao transporte das palavras, de um lado para o outro. Este homem
devia ser devidamente respeitado, mas não, transformou-se num transmissor de
equívocos. E os equívocos por vezes, são pior que os boatos.
Certo é que já não está
em condições de desempenhar as funções de carteiro. Reforma é que era, mas se
se fecha em casa é um pavio. Vai desta para melhor num estantinho, e o grande problema é que ele tem dúvidas que se vá
desta para melhor. E se for para pior? Certo é que se se fechar em casa, entra-lhe
a humidade da tristeza, de tudo e de nada, e mirra-se de um dia para o outro.
O Manel sente-lhe a
falta, são grandes amigos, como irmãos. São os melhores comparsas da bebida. E
não se pense que isso não é assunto sério e importante, saber escolher os
companheiros da bebida.
-só se pedir ao Zé da
Mula, mas o gajo é surdo como o camandro.
Só para perceber uma palavra minha leva meia-hora a apanhar-lhe jeito. Fora o
tempo que depois perde a repetir, em eco, para se assegurar que ouviu bem.
-a ler ainda é pior.
Faz perder a paciência a um santo. Parece que junta as letras com cola. Até
dizer uma palavra completa e uma frase que faça sentido, um gajo adormece.
- Farrusco, temos de ir
à vila, pedir ajuda ao senhor Presidente.
O cão deprimiu logo
ali. Ir à vila era um mal que lhe faziam. Não se entendia com esses cães, todos
janotas, a passearem-se à trela ao lado das donas, a sentarem-se no café a
babarem por um doce, uma migalha. Olham para ele de soslaio, arrogantes. Havia
de os ver no campo, uma camélias, a saltarem, em bicos de patas, incomodados
com as asperezas do terreno. Nunca viram à frente uma ovelha na vida. Havia de
ser lindo, cruzarem-se com um boi.
Hoje
vou fingir-me de morto, a ver se ele não me leva.
Manel bem insistiu mas
o cão fez-se de peso morto e ele não o conseguiu arrancar de casa.
Foi sozinho. Trouxe
decorados os preceitos que lhe deu o senhor Presidente do Concelho, homem das
políticas, com assento na Assembleia da Nação. Amigo tu-cá, tu-lá , dos
poderosos deste país e como tal grande tribuno, paleio não lhe escasseia. À
mais pequena oportunidade, desata numa catarata de palavreado, até dá a
sensação de algum possuimento momentâneo por um espirito atormentado que ande
por aí (eles andam no ar, nós é que não os vemos), desfiguram-se-lhe as faces,
o olhar vidrado, retorcidos de boca. Até chega a assustar, não o conhecesse
Manel de pequenos, da pouca escola que fizeram juntos, ainda o senhor
Presidente tinha um nome próprio e era tratado por tu e era pobre como todos os
outros, e por isso, humilde.
VIII
Entidades oficiais nem
uma. Tinha rebentado uma crise em Lisboa – os bancos, nada de novo - e os refugiados já
não davam audiências. Na viagem foram acompanhados por uma assistente social de
Lisboa que fez o curso como terceira opção e felizmente, menos mal, conseguiu
um emprego na função pública, um emprego para a vida. Veio também um jovem
jornalista do jornal da região. Sapatilhas brancas e calças brancas. Se para o
campo se vem nesses preparos!
Das entidades locais marcaram
presença o Manel, Presidente da junta, com a gravata do casamento num laço mal
amanhado, um bacalhau que lhe ocupava o espaço do peito, a cair como um lençol
na proeminência da barriga; o António com as mãos nos bolsos para não se
denunciar, enquanto representante das forças vivas produtivas da edilidade,
assistente operacional dos correios, assim se chamam agora; e o Zé da Mula,
desempregado de longa duração, de nascença, mas de bem com a vida porque o que
lhe dá a paz é o ar fresco do campo e os cheiros das faunas viçosas, que não
perde uma oportunidade de convívio, homem muito sofredor dos males da solidão
forçada. O pároco, dizem que está rico,veio benzer e aspergir a cerimónia, mais
interessado na recepção gastronómica do que na recepção de refugiados, ainda
por cima hereges, adoradores de outro deus: febras e couratos e tinto com
fartura, não sabendo ainda nenhum deles que os sírios, adoradores de Maomé, não
tocam nessas iguarias.
Os sírios vieram numa
camioneta e foram despejados no largo da aldeia. Gente seca, assustadiça,
marcados pelos acontecimentos, envelhecidos, comidos. A assistente social veio
apresentar-se ao Manel. Trazia um dossier com formulários debaixo do braço. As
assistentes sociais para todo o lado onde vão levam um dossier com formulários.
Disse ao Manel que enquanto representante da autoridade autártica devia assinar
este e este, assinalando os respectivos. O Manel, tremido, lá conseguiu.
Manel tinha discurso. Na
semana que antecedeu o acontecimento, leu e releu vezes incontáveis a pedir
anuência do Farrusco, que lhe ouviu palavras que nem conhecida e como tal, só
pode estar de acordo. Desde que os sírios gostassem de cães.
Como já tinha visto,
improvisou um estrado com umas paletes sem uso. Um discurso projecta-se mais
longe se proferido nas alturas e Manel que não é um homem alto, considera que a
ocasião – o acontecimento mais importante na aldeia, desde os festejos de verão
– exige um sentido de Estado. Elevado portanto.
Apura a voz, limpa os cantos da boca com um
lenço amarfanhado que tirou do bolso traseiro das calças para onde regressa e
discursa:
Senhoras
e senhores,
somos
um povo de braços abertos, fraterno (que raio significará isso? O Presidente
põe-me a ler cada coisa!).Damo-nos bem com todos desde que venham por bem
(via-se que o discurso tinha a mão do tribuno). Também nos receberam da mesma
maneira quando partimos à descoberta do mundo novo. Não queremos deixar dívidas
por pagar e hoje vamos acolher-vos nas nossas casas. Aqui vão ter paz e um
clima agradável. As pessoas não são violentas e tudo se resolve com boas falas,
desde que conversem tudo se leva a entendimento. Desejamos as boas-vindas e que
sejam felizes. Comam e bebam, que é o que se leva da vida.
Veio-lhe uma lágrima ao
olho. Agora andava assim. Qualquer coisinha, lágrima. O discurso foi pequeno
mas significativo. Cuspiu para o chão e acamou pivoteando o pé direito. Calçava
os botins que levaria no caixão, a maior caminhada da sua vida. Neste caso, da
sua morte. Apertavam-lhe os joanetes, mas depois de morto não o incomodariam
com certeza. As cerimónias oficiais obrigam a sacrifícios. Para ele, são o
calçado, todo o aperta.
O Zé aplaudiu como se
não houvesse amanhã, a arfar para o cigarro no canto da boca a ver se ele se
acendia sozinho, andava sempre nisto, a tentar coisas impossíveis. O António
gritou “vivas” para não dar parte de fraco, mantendo as mãos no resguardo dos
bolsos, parece que tinha a doença dos nervos, todos descontrolados, disse-lhe a
senhora doutora, a que vai ao centro de saúde da Lapa. O padre Joaquim,
irrequieto para fazer o brinde do sangue de Cristo transformado em vinho e
tinto de preferência, na expectativa de finda a cerimónia para se agarrar ao
copo, benzeu enviesado a audiência e salpicou-os, um por um, de água benta,
dando-os por certificação própria por purificados, prontos a recomeçarem a
vida, do zero, limpos e sem pecados.
Os refugiados, não perceberam
nada do que foi dito, nem falaram. As mulheres estiveram todo o tempo com a
cara tapada e o Manel desconfiou que aquilo era do frio. Se vieram do deserto e
o deserto segundo lhe disseram é um local sem sinais de vida nem flores onde o
sol bate de chapa dias intermináveis a fio, o clima da serra para eles deve ser
agreste. Logo se habituam.
Terminada a cerimónia,
locais e forasteiros dão início ao repasto. Os sírios não se mexeram de onde
estavam, encostados a nada, porque além das suas figuras de fantasma, nada
traziam consigo. Apesar da insistência dos anfitriões e mesmo com uma tentativa
em bom latim antigo do padre Joaquim argumentando que eles vinham de um país
muito antigo, dos berços de toda a humanidade, não os tirou de onde estavam. Ou
também não entendiam o latim antigo, ou então eram tímidos.
A coisa não estava de
feição, eles não deram sinais de entender o latim e o padre tinha esgotado as
línguas que conhecia. Nestas circunstâncias, a assistente social foi reler um
pequeno regulamento, que fazia o preâmbulo do dossier, a ver se dizia alguma
coisa acerca das línguas. Se eles tinham que assinar nalgum sitio. Não havia
nada que indicasse que eles deviam assinar. O sistema por vezes é omisso, ou
esquecido. Tinha-se esquecido neste caso de considerar no regulamento uma
alínea sobre as línguas e o correspondente formulário em que o signatário
assumisse a sua responsabilidade cível sobre a omissão do entendimento pelo
confronto de línguas estranhas.
A assistente
resolveu-se por abordar a febra, ou seja, tinham saído muito cedo de Lisboa e
estava cheia de apetites em atraso.
Animados pela dita e o
jorrar freso e revigorante da fonte de vida que pingava da pipa, a tarde
amaciou, e os convidados estranhos acabaram por comer alguma coisa. Batatas,
azeitonas com fartura, pão e água. O Manel ficou de olho neles.
E terminou o dia. Os
novos habitantes da aldeia foram alojados em casas há muito vazias de gente e
outros seres. O padre Joaquim deu boleia ao António e o Zé da Mula,
animadíssimo disparou serra acima a cantar cantigas brejeiras. Disparou não foi
bem assim: ziguezagueou. Traçando a bissetriz de um ponto ao outro e ficando-se
nessa intenção, já que para chegar ao destino levou o dobro do tempo da vinda,
mas agora era a subir.
Quando chegou a casa,
Manel estranhou não ser recebido pelo Farrusco. Estava velho. Caiu em si: ele
também estava velho. Invadiu-se de uma profunda melancolia, tirou as botas e
deitou-se no chão abraçado ao cão. Este, nos indícios de sentimentos que os
cães têm talvez idênticos aos nossos, sentiu felicidade. Adormeceram.
IX
O tempo passa sem se
dar por ele, mesmo nestes sítios ermos, esquecidos de deus e do diabo, onde os
poucos habitantes ainda assim vivem os mesmos ciclos de nascimento e morte de
toda a humanidade, exigindo para si menos e governando-se com pouco.
Manel, Zé e António
estão sentados no largo da igreja, o eixo daquele mundo em miniatura. Passam
ali os dias, falam muito pouco. Nos anos que levam juntos já se disseram o
suficiente, não precisam de mais. Basta olharem uns para os outros para se
entenderem Estão ali, calados, observadores, a tomar nota da vida, dos outros e
da natureza que os rodeia. Crianças pequenas algazarram nas suas brincadeiras e
jogos. Jogam a bola, jogam os berlindes, saltam a corda, jogam a apanhada. Nestes
momentos de eternidade que são a infância das crianças, os velhos participam
com gosto. Apesar de mudos a aparentados a estátuas eles fazem parte da
harmonia destes momentos, sem eles, só as crianças, o largo não estaria
completo.
A aldeia renasceu com a
vinda dos refugiados. Aquelas crianças, algumas nascidas na aldeia, não poderiam
pertencer a outro lugar. Os pais delas que um dia foram apátridas, almas
errantes, aprenderam a acariciar aquela terra negra e muito fértil. Aprenderam
a falar com as ovelhas e as cabras e o restante gado, entendem-se entre si.
Também os pais não poderiam ser de outro lugar, apesar dos nomes que têm
estranhos e uma religião que afinal é quase a dos cristãos, com poucas
diferenças, rituais, pouco mais do que isso, elementos acessórios. Os velhos da
aldeia aprenderam a pronunciar os seus nomes difíceis, inventaram-lhes alcunhas,
sinais de intimidade e partilha.
A aldeia renasceu e não
há absolutamente mais nada a contar dela, senão deixá-los em paz, no seu mundo,
imitação pequena do cosmos inteiro. Deixemo-los nessa quietude e beleza, não incomodemos,
nós somos os estranhos.
Farrusco foi para o
Céu, a abrir caminho. Manel para lá caminha, está só a aproveitar os últimos
raios de sol e que prazer esse. Tem saudades do seu companheiro, não pode estar
sem ele, e no paraíso, Farrusco que apesar de não ter sido cão perdigueiro, é
esperto até mais não, já se pôs de acordo com os anjos do lugar: quando o
pastor Manel chegar, vão morar numa casa com telheiro virado para a mansão do
Espirito Santo.
A sua fé é pagã, com a
pomba entendem-se bem.
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