Avançar para o conteúdo principal

O HOMEM QUE VIVEU O MAR - O PECADO






O tempo passou,
naqueles saltos acrobáticos que por vezes se faz pródigo.

Arménio completou a quarta classe e foi para a escola Comercial. Qualquer coisa Prazeres. As escolas necessitam de um nome, e dá-se-lhes nomes de pessoas. Como a cães e gatos, moda. São geralmente nomes com história, que a maioria dos alunos esquecem rapidamente. A quem interessa esses nomes?

Andou dois anos a fingir que estudava. As disciplinas eram enfadonhas. Assuntos bocejantes, ainda por cima irrealistas. Uma escola comercial, como indica o seu propósito deve preparar os alunos para as áreas do comércio. Para isso existem as escolas comerciais, as industriais e os liceus (dos que vão para a universidade e depois mandarem nos que estudaram nas escolas dos dois primeiros tipos).  Existem para terem propósito, as escolas.

Os alunos desinteressados assistem às aulas de professores frustrados a debitarem abstrações inúteis, ou então nas cadeiras teóricas, histórias de passados esquecidos, mofas, versões pouco verdadeiras, relatos de actos de coragem, valentias, conquistas territoriais, subjugações, independências, matar usando as leis dos fortes, as suas, porque sim, que se quer serem assim,  histórias pátrias.

A única disciplina simpática, e soava bem, era uma espécie de aproximação à língua francesa. O francês dava-se ao respeito, a língua bem entendido, da cultura e da diplomacia. Tudo tem o seu fim, e nem sempre se sai em ombros. Agora é inglês

Arménio foi expulso da escola mas não fez de propósito, foi um acto de honestidade. A causa foi um panegírico escrito na prova de Religião e Moral , escrito em folhas de vinte e cinco linhas, com uma letra bonita, de caneta de aparo (o único objecto de valor que possuía).

O padre é que insistiu, para fazerem uma redacção sobre Deus. Se se tivesse cingido às perguntas habituais no manual da catequese, tudo teria acabado em bem e o Arménio - talvez um defeito, talvez uma virtude – apesar de reservado, se lhe davam ocasião de manifestar opinião, dizia o que tinha por dizer. Uma redacção pode ser um panfleto incendiário. Pode ser perigoso deixar correr a pena, no embalo da mão que escreve, num tempo em que se riscam em azul forte, as frases inconvenientes.

Ele disse-o desta forma:

 Deus fez o Homem e a Mulher. Deus fez com que este homem e esta mulher tivessem dois filhos. Foram os primeiros pais. Deus fez com que estes filhos tivessem filhos. Como só havia uma mulher até nascerem irmãs, Deus devia ter criado outras duas pelo menos, ou mais mulheres, para proverem à procriação dos seus filhos homens, para não estarem em pecado de incesto materno Não o fez e não se entende porquê.

A queda do paraíso não se deve a uma maçã, nem à sabedoria, que não interessa para nada, mas a actos repetidos e incestuosos de fornicação tribal A serpente, a maçã, são invenções para distrair.

 Deus quando quer tudo cria. Deus criou o sol, as flores, as cores do arco-íris, os animais. Deus criou os paralíticos, os leprosos, os com sífilis. Deus criou os meninos de leite e os medrosos. Os toureiros e os jogadores de futebol americano. 

Deus não deixa os padres casarem, mas Deus é bom porque criou os homens e algumas, poucas, mulheres. Deus criou a inteligência nos homens para estes saberem o que é o pecado, e poderem assim ganhar a salvação pelo arrependimento e a oração.

E também para procriarem e terem os prazeres do sexo. São todos filhos da mãe, da mesma, a primeira.

Deus criou a noite e o dia. Deus criou os ventos e as marés. Deus criou os terramotos, os fogos florestais e as inundações deste nosso rio e dos outros. Deus criou a guerra e a paz. Deus criou tudo e mais alguma coisa e ainda aquilo que não conhecemos e ainda não vimos porque só está no futuro, mas há de ser Deus que vai criar. Eu gosto muito de Deus porque é justo, ponderado e porque se farta de trabalhar. Nunca teve um dia de descanso.

Senão existisse Deus, como podiam os homens ter sentimento de culpa?”

O professor, padre e bom homem, mas um religioso rigoroso, embasbacou. Literalmente, foi isso, ficou embasbacado: situação de rigidez física e facial temporária, queixo decaído, olhar de espanto, quase terror.

Foi-se queixar ao reitor, este achou que havia matéria.

O caso não teve mais consequências disciplinares, por se tratar de um rapaz e o conselho directivo, após ponderação, considerar que aquele texto, anticlerical, ser fruto de uma imaginação turva e embotada,  de um boçal, apoucado em inteligência, que terá ouvido essas coisas de alguém, não podia vir da sua auto-recriação (palavra que se deixou de usar,  por ser gaguejante e não se explicar bem).

Foi o segundo acto falhado da sua vida: primeiro os pastelinhos de bacalhau, agora esta redacção. Foi para ajudante de vassoureiro. e não há mais nada a registar: esgotou-se nesses episódios. A partir daí foi uma lenta contagem  de dias sem história até que morreu...


Comentários

Mensagens populares deste blogue

AI DO QUE GOSTEI E DO QUE GOSTO

  Gostei da alcofa pousada na marquise onde entrava o sol com abundância e a minha avó costurava. Gostei do colo da minha avó.   Gostei que me afagasse os lençóis ao deitar.   Gostei de alguns tons escuros, os das noites, outros não.   Gostei do silêncio da noite, gostei em geral dos silêncios. Gostei de ouvir num radio a pilhas músicas que me fizeram sonhar sonhos bons. Gostei do cão Tôto, de caça, onde cavalguei no pátio, a imaginar-me cavaleiro. Gostei daquela casa onde só me lembro do parapeito da janela, onde presumo que aos fins de dia eu e a minha avó víamos as pessoas a passar na rua e nós, abeirados do beiral as cumprimentávamos. Gostei de odores que já não identifico. Gostei da tia Rosa, mulher ainda mais pobre que nós a quem dávamos de comer e ela, em troca, me dava todo o seu amor porque nunca teve ninguém seu. Era eu. Gostei do carro de bombeiros que o meu avô me ofereceu. Tinha uma sirene. Era único. Gostei do primeiro livro de quadradinhos, contava

BERLINDES

Eram berlindes e guelas, os primeiros mais pequenos, os outros, mais vistosos, abafavam os berlindes. Eram de vidro cheios de cor, muitas, com padrões que davam ao girar a sensação de movimento encantatório. Compravam-se nas papelarias de bairro, pequenas superfícies habitualmente familiares que vendiam de tudo de uma forma absolutamente eficaz e personalizada. Estabelecimentos, não superfícies, designações de um presente deselegante, um nome que soa estranho e é frio. Os proprietários e os empregados sabiam os nossos nomes. Podíamos levar e pagar depois, numa contabilidade honesta que se fazia no livro dos devedores, preenchido a lápis de carvão. Este calhamaço era uma história do negócio, onde se desfiavam listas de nomes e produtos e datas. Raramente era usado para lembrar os atrasos: ninguém queria estragar relações de boa vizinhança, num tempo em que a honra e a honestidade eram valores não transacionáveis. Uns buracos no chão com uma distância entre si, medi

COPOS E GAJAS BOAS, DE PREFERÊNCIA

De manhã se começa o dia, dizia a minha querida avó, mulher avisada, que vestia de preto, tinha um buço pronunciado e gostava da pinga às escondidas. Como quem sai aos seus, aos seus sai, já enfiei dois medronhos, para dar energia a enfrentar o dia que dá trabalho, e até chegar ao fim, é uma peregrinação quase religiosa ao botequim do chico. Pelo menos tenho fé em ir lá, é uma espécie de purificação do meu interior. Agora só bebo sininhos, estou em dieta alcoólica, só pequenas quantidades (de cada vez claro). Não se pode dizer que saia caro. Cada sininho são 30 cêntimos. Um copo de três, cinquenta cêntimos. Apesar de alguém desavisado poder estar em desacordo (está longe, não vê, está mal informado), sou uma pessoa poupada: só bebo um de cada vez. Se descontar de todos os que bebo, as ofertas, os brindes às efemérides de cada parceiro que frequenta o botequim, e os que o Chico se esquece de cobrar, gasto realmente muito pouco. Sou portanto no Sul, um dos homens mai

CAVALO-MARINHO

  Na distância do tempo que leva a vida a passar, as imagens mais antigas confundem-se, fundem-se mesmo, é difícil apurar certezas. Vejo-me a olhar fascinado e miúdo, a primeira vez, um cavalo-marinho. Ressequido, mas conservado, pousado na palma da minha mão. Se na altura conhecesse uma palavra mais pomposa do que renda, diria filigrana. Aconteceu quando estava de visita a uma casa liliputiana, de tios meus. A meu ver uma casa cheia de misteriosos e pequenos tesouros, que ia descobrindo na curiosidade de criança, abrindo gavetas e mexendo em prateleiras. Uma casa que tinha um olho de vidro da vista direita da minha tia, pousado no fundo de um copo cheio de água na mesa de cabeceira, a olhar para mim com um olhar espantado, esgazeado, e eu a olhar para ele, a princípio receoso,  depois a querer saber o que havia por trás de um olho, já que os vemos sempre colocados nas órbitras dos usufrutuários e não sabemos o que está por trás. Este olho de vidro é a prova óbvia que a minha tia ficou

DO AMOR INCONDICIONAL - 1-DO PODER

Nesta pluralidade que é a natureza, nesta obra dos acasos ou de causas superiores insondáveis, há seres cuja beleza cativa o mundo. A beleza é o argumento mais forte do poder. Dança à sua volta, danças do ventre, sensuais, húmidas, viciantes. Sabe rodeá-lo e tecer a sua teia invisível mas inquebrável, ata-o de mãos e pés, imobiliza, inteiramente hipnotizado. Perante a força irracional que irrompe de uma obra sinfónica, para pôr um exemplo de beleza superior, o homem baixa as defesas, entrega a sua sorte no embalo da música, extasiando-se é levado por essa torrente de emoções. Os efeitos dessa mistura explosiva, do casamento da beleza com o poder leva os seres a atitudes que não se alcança imaginar, coisas fora da lógica. Práticas do bem e o mal, sem noção, do bem e do mal, coisa subjectiva que leva por vezes a equilíbrios no fio da navalha. O aparecimento fugaz de um tigre listrado, meio visto, meio escondido no restolho dos arbustos, hipnotiza quem o vê e olha,