III
Custódia
cantava fado,
Eram todas, à sua maneira, a maneira dos olhos
que as viam, bonitas. Mesmo a que tinha um olho de vidro no lugar de um olho
que viu regaladamente o mundo até ser vazado por um gato, sem culpa deste.
Lindas, nas perspectivas e ângulos em que foram vistas e algumas vezes
admiradas, nos seus anos de glória e infinito, que todos têm, até que se
esgotam. Elas, os olhos que as olham, e o tempo sempre a passar. Era a Maria, a
Florinda, a Silvina e a Custódia, a fadista desta história.
O que é o fado?
A ópera das pessoas anónimas, a que ninguém
assiste formalmente sentado nos camarotes confortáveis dos teatros. Os que
assistem não o fazem nessa condição, são eles também participantes, actores da
vida real, encostados num balcão sujo de um tasco obscuro, com as paredes
degradadas e escorrerem melancolia, num pingar constante, um jorro que nunca estanca.
Humidades que adoecem os ossos e as almas que os habitam.
Tristeza-prazer, lágrima-sorriso. E está
explicada, concisamente, a vida, pelo fado. E se ficarem dúvidas na explicação,
o som da guitarra que geme, dá o mote final a todas as respostas que se
colocam.
Cústodia ,azeviche – o cabelo – e morena – uma
pele curtida pelo sol – trabalho -, mas aveludada, disse-o quem a acariciou. Tem porte de fadista. O que é isso? A postura irredutível
do corpo em tensão teatral, a fazer-se toureiro, à intempérie dos sentimentos.
Corpo jovem, enfaixado em negro, quase um manto, uma religiosidade pagã, que
ora a Deus, pedindo os impossíveis para amaciar a vida dos que na terra sofrem
as maldades do inatingível. Impossíveis esses que são obras de si mesmas, as
gentes, as pessoas. Querem a perfeição, mas isso é ser deus. Corpos e cabeças
imperfeitos, tão perto e tão longe de o serem.
Uma cara séria que olha sem medo, para as
amarguras da vida, porque as canta e as espanta. Chorando mais, que menos, é isso
o fado.
Tertuliano apaixonou-se perdidamente pela
Custódia num domingo, parece que é o seu dia, o dos acontecimentos únicos. Apaixonou-se
perdidamente é uma repetição escusada: quando se diz uma, diz-se a outra, andam
juntas. Não vale anunciar as duas palavras, uma só são ambas.
Tertuliano apaixonou-se com os cotovelos
derramados sobre um desses balcões, algures num sítio qualquer, tendo como
testemunha um copo de vinho escuro e espesso e fumando um cigarro oblíquo, o
fumo, que dá essa sensação ao desprender-se do cigarro, para o alto. Não é
homem de grandes bebidas, não é homem de se afogar. Assegura-se que foi genuína
a paixão, desde o primeiríssimo momento que se instalou em si.
As paixões actuam como os vírus, têm um período
desenfreado em que tomam conta dos corpos, depois vão esmorecendo, decaindo, os
anticorpos naturais, começam a ganhar a batalha da sua erradicação, e acabam
por os expulsar, dando de novo a possibilidade aos corpos de atingirem à
harmonia natural, o estado certo e monótono das coisas no quotidiano
obrigatório.
Cústodia cantava um fado de arrepiar e reparou totalmente
nele, tomou conta que os olhos de Tertuliano entendiam o sentido das suas
palavras, fenómeno que escassamente acontece nas vezes, inúmeras, que os desconhecidos
se cruzam. Quando pescam essa atenção a
essência dos outros, sequestram e fazem muito bem, as pessoas que se cruzam.
A escória essa, só reclama e queixa, bebe para
se apagar, acrescenta misérias sobre
misérias, é a vida dos descuidados de deus, que cantam preces e baboseiras
vernáculas a esgotarem-lhe o nome, culpam-no de tudo e querem milagres.
E ainda, não respeitam quem canta o fado, porque
não silenciam os remordimentos que trazem consigo, que murmuram ruminando uma
ladainha, pegajosos nesses balcões execráveis das tabernas.
Custódia que na descrição aparenta uma dureza
empedernida, não é nada isso. É pessoa de uma doçura imperceptível, e doce. Quando
sorri desarma-se, e quem é atingido por esse manancial de luz pura, desarmado
fica.
São todas, à sua maneira, a maneira dos olhos
que as veem, bonitas.
Maria, formiguinha, na figura, e como podem ser
belas as formiguinhas, todas as criaturas; Florinda que tem um olho de vidro
emprestado definitivamente a ocupar o espaço onde residia um que via. Vê o
vizinho a dobrar, tomou a tarefa de ver tudo para si; a Silvina, quase a não se
dar por ela, a mais velha, tomou para si os pecados do mundo, anulou-se, soprou
ânimo nas irmãs; e a Custódia, a fadista da história.
Na verdade, nunca cantou um fado, porque
parecendo curioso, o facto é que não se cantam fados: a voz e a guitarra são
veículos involuntários e transmissores, somente, de uma certa - desconfiando-se
que existe - língua da alma. Nestas transmissões tipo radiofónicas, enviam-se
mensagens, que são em verso, e no falar da alma, são o que pode ser dito.
O que fica de mistério, por dizer ou
compreender, secretíssimo, vai ser utilizado como um fertilizante do sonho. Estrume uma bonita palavra feia.
Custódia e Tertuliano, arranjaram-se para se
amarem um ao outro para sempre, que será o limite do tempo permitido para o
amor dos dois. Antes, agora, treinam uma paixão desenfreada, o prazer
inigualável da aceitação sem filtros nem reclamações. O momento mais glorioso e
irrepetível da existência humana, libertina-se
na paixão. Depois, começa a eternidade a prazo do dia comum.
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