III
Um
paquete de luxo, orgulho da nação de marinheiros e empregados dos serviços
terciários.
No dia 26 de Maio de 1944, arredondando por
volta da meia-noite, Tertuliano está na
ponte, a cumprir o primeiro quarto. É praticante de piloto, tem um chapéu de
pala, e um galão dourado no punho do casaco muito azul escuro e grosso. Fuma reflexivamente
um cachimbo, o seu companheiro intimo. Deixou de ser crédulo e uma “amélia”, é
um jovem homem respeitável, em início de carreira.
Parece-lhe já distante, a profissão de pastor e de marinheiro de águas doces que foi ontem,
mas não, é um intricado contínuo, tudo embrulhado
na mesma, em camadas, a vida é um mil-folhas.
Naquele momento à beira do meio da noite,
Tertuliano não pensa nessas coisas, observa a escuridão e as estrelas, está
concentrado por inteiro na condução segura do navio.
O céu despejado de nuvens e o mar meio
adormecido prenunciam uma noite calma. Tremeluzem milhões de estelas e o piloto
identifica algumas, uma paixão nova a astronomia. O paquete flui
despreocupadamente no mar Atlântico, destino a Filadélfia.
São anos difíceis, o mundo virou-se do avesso,
todos os locais são perigosos, mesmo o mar.
Está o oficial piloto a olhar para o céu quando
a pouco mais de uma milha da proa do barco, consubstanciada do nada, ou neste
caso deglutida pelas águas, uma luz pisca sinais morse. O técnico de comunicações avisa Tertuliano tratar-se de um
submergível alemão. Ordena que se parem as máquinas, vão fazer uma inspeção.
Tertuliano manda acordar o comandante, este
manda acordar toda a tripulação. Os passageiros dormem, ou dormem e sonham, ou
nenhuma das duas, ocupam-se noutras coisas. O que é relevante é que não dão por
nada.
Aborda o paquete uma lancha com uma mão cheia de
supostos arianos camuflados para se dissimularem melhor. As mãos que seguram as armas estão tensas.
Nem deram tempo ao comandante, para vestir as
calças por cima das ceroulas e arrumar melhor o cabelo, tem de os receber
descomposto, está desprevenido. O Imediato e Tertuliano, são levados para o
submarino conjuntamente com os documentos de identificação do navio.
Os
submarinos têm aquela forma de salsicha que só de se imaginar o que será viver
dentro de uma salsicha, soterrado ainda por cima debaixo de água, dá uma claustrofobia
mesmo pensando no assunto em céu aberto. Andam na água, dentro dela, mas não
são considerados barcos, são andróginos.
O piloto nunca tinha entrado em nenhum. Já os
tinha visto ao “Espadarte”, ao “Golfinho” e ao “Delfim”, não os peixes, estacionados
na base, movem-se pouco. Gostar de barcos é uma coisa bela e poética, agora achar
graça a caixões submergíveis está para além da sua imaginação.
Ao entrar sentiu de uma forma densa, quase material,
o ar estagnado - um fedor - contraste enorme com a brisa vivificante, livre, que
corre fora. O ambiente é soturno, cinzento, obscuro, em trevas. Os marinheiros todos
supostamente arianos, sem nenhum que se reconheça estar somente disfarçado de
ariano, estão tensos e suam, também porque está muito calor. Cheiram mal.
Os alemães retêm o Imediato e a documentação do
paquete e reenviam Tertuliano, sem explicações, para o destino de origem, acompanhado
desta vez de duas doses de germânicos mais fortemente armados do que os
anteriores, o que deixa perceber na fronte do Tertuliano, estivesse agora
alguém com atenção a isso, um franzir muito mais carregado, de preocupação,
talvez medo.
Fazem uma busca ruidosa ao navio. O comandante
na ponte, compondo-se ainda (a ponta branca das ceroulas desponta da bainha das
calças, para que conste e por ser verdade) dá ordem à tripulação para não
informar os passageiros de nada, o que não faz sentido nenhum - disse-o por
dizer - naquele momento ele já não é o comandante no comando, e uma busca, para
ser bem feita tem que buscar todos os pormenores, ou seja uma revista minuciosa
de todos os recantos do que se está a buscar.
Procura-se um cidadão britânico natural do
Canadá. Depois de esmiuçada a lista de passageiros, o Sr. William Blackhill,
passageiro de 2ª classe, camarote 35, estremunhado e em trajes impróprios para
quem vai sair, é algemado e levado sob ordem de prisão. Fica na memória dos
vivos, o olhar deste homem, para o alto, para o infinito, talvez para ele rever,
depois de morto, a beleza única, mesmo que apagada aquela hora, do céu que
rodeia a terra. Terá tempo de sobra para todas as revisões.
O Imediato é devolvido à procedência, com a notícia
que o paquete vai ser bombardeado e afundado. Em jeito de uma grande
perversidade e gozo, os arianos dão vinte minutos para a tripulação fazer o
transbordo dos passageiros para as barcaças salva-vidas.
Porquê? Não vale a pena a pergunta. Quando o
mundo fica assim, doença recorrente, não há palavras sensatas. Na falta delas, o
mal entranha todos os espaços livres, toma conta, destrói o potencial da vida.
Faz isto por libidinagem sádica.
A tripulação desperta os passageiros. Vive-se
momentos de pânico. Choros, gritos, rezas, todas manifestações de insegurança e
impotência,.
Os botes salva-vidas afastam-se o mais longe que
podem e esperam.
Cai sobre o cenário uma ausência absoluta de
som. Nada acontece num espaço do tempo que não se sabe se foi muito ou pouco.
Pode ser um ápice, ou horas. A cabeça das pessoas perde a noção, e como o tempo
está na sua cabeça, são elas, não se dando conta, que param o seu correr.
Nada.
Neste caso foi melhor uma omissão do que um
acontecimento. Os alemães desinteressam-se. Omitem as sombras que balançam em
cascas de nós no meio do oceano. São nada, existências que não existem.
Não fosse um sofrimento psicológico de grandeza,
e pareceria uma cena de drive in americana : os espectadores boquiabertos,
agarrados à cena, presos a ela, em carros que neste caso são barcos,
estacionados no alto mar. Faltam as pipocas para ser uma cena de diversão, que
não é.
O paquete, inúmeros pontos de luz que piscam das
suas escotilhas, é esse o filme que nesta noite está a ser projectado. É intenso, um drama, uma tragédia, em aberto
para o desfecho final.
Com a aurora, o comandante é “convidado” a
dirigir-se ao submarino onde o informam oficialmente que se aguarda de Berlim a
ordem de abate. Não se apoquente que está para acontecer (vai-se um homem
apoquentar por uma minudência destas!).
O capitão diz que não senhora, que não está
preocupado, são os nervos. No entanto e aproveitando a oportunidade, tenta
utilizar alguns argumentos, que devem ser tomados em conta. Um barco civil não
se afunda (com este nem ele próprio ficou convencido). Somos povos irmãos,
ficamos com o ouro dos dentes dos judeus, vendemos volfrâmio a bom preço, não
se despeitam dessa forma os amigos (sobre os dentes ninguém da parte dos
arianos comentou. Sobre o volfrâmio, um ou dois, já ouviram falar nisso).
Não sabemos se o comandante do III Reich
percebeu a retórica do capitão português, já que nenhum falava uma língua que fosse
de entendimento comum, era por sinalética, gestos e um que outro vocábulo
inglês. O português este disfarçava controlo mas estava bastante nervoso. Pirolitou abundantemente quando apresentou os seus argumentos.
Como dita o código de honra e glória dos
marinheiros, o comandante regressa à ponte do barco, e sozinho e pensativo, espera
pelo momento em que os dois irão conviver com os peixes e as outras espécies
aquáticas.
Espera interminável. Nada acontece.
No final de uma noite em branco, no dealbar de
um novo dia, depois de uma vigília sem velas acesas na mão, a torre do
submarino submerge, traçando um rasto de espuma no sentido contrário ao da sua
vinda. Os alemães foram à vida e não os torpedearam.
Insones e ressacados pela noite em branco
regressam ao navio. Oferece-se um pequeno almoço reforçado e festeja-se.
Sorrisos e abraços e beijos. A vida de cada um descongela, o tempo volta a ser
tempo e a desfiar-se. Os destinos voltam ao trabalho para levarem ao até fim do
que está marcado, o porvir de cada um dos actores deste episódio quase anónimo.
Essa noite não foi totalmente inócua, deixou
danos, uma mácula: o médico de bordo, um cozinheiro e uma criança de 16 meses,
no caos, no medo e na desorientação, caíram ao mar e desapareceram para sempre.
Foram esses os nossos mortos.
Porque Deus, por vezes, nos deixa de sonhar?
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