No intervalo
entre a guerra que viria a
seguir, que os protagonistas, estes, não sabiam que viria – assim pula a fazer
futuro a história dos homens: guerra
sobre guerra, com intervalo entre duas para fumar um cigarro, ou simplesmente
respirar esperança – a Cústodia e o Tertuliano amigaram-se.
É correctamente
assim, e é muito mais bonito do que dizer “juntaram-se”, ou mesmo
“encostaram-se”, termo este que pode desencaminhar para outras interpretações,
e é rude.
“Amigado” conceito interessantíssimo, é uma não
figura do Direito civil, vista como pecado aos olhos castos dos vizinhos, todos
tão crentes, tempos de muita e boa fé, apesar de cada um à sua conta e número,
transpirar pelos porozinhos da pele, o seu viciozinho privado.
Levam a missa inteira de trás para a frente e no
sentido contrário, só porque a decoraram de tanto a dizer. A seguir a preceito
o que ela diz, é uma outra história. Um corropío constante, a toda a hora do
dia, de benzas a Deus, aos santos e às santinhas, arrenegando demónios,
excomungando tentações, exorcizando fraquezas. Gente temente e muito apreciada
de santos no feminino: a figura da mãezinha, exemplo maior da vida e do amor.
Casamento, é de igreja, com padre paramentado,
desfile simbólico, o ritual da entrega da virgem, pelo pai, ou o que estiver
mais à mão nessa responsabilidade, de braço dado, ao som da música adequada e
quase sempre a mesma, ainda assim emociona. E vestido branco, esse não pode
faltar, nem olhar a despesa.
Casar pelo civil, é um acto anedóctico,
desrespeito aos bons costumes., uma formalidade burocrática. Dito tudo isto e assim, que margem de
aceitação, compreensão, tolerância, sobra para os que optam pelo amigamento? Para não dizer que os que se amigam já vão de
barriga cheia de prazeres do corpo, conhecem de olhos fechados todos os
caminhos que vão dar à fonte.
Coisa de gente sem princípios, educação. Os
outros, os dos princípios e da educação, casam abençoados pelos homens e por
Deus, mesmo grávidos de oito meses, e vão para o altar virgens, como acabadinhos
de vir ao mundo. É um fenómeno, mas é assim. Nem tudo se explica.
Eles sabiam mas não quiseram saber, seguir com a
vida para a frente é que interessa. E levá-la bem, amando-se. Se há na história
das pessoas que vieram ao mundo, uma história de amor tão forte, tão intensa,
não é necessário rebuscar Pedro, nem Inês, deixá-los estar de mãos pétreas
dadas; nem viajar para as Itálias, atrás da Julieta e do
Romeu: temos a Custódia e o Tertuliano a vivê-la, os dois, numa casa de duas
assoalhadas, num bairro remediado na parte oriental da cidade.
Um amor sem filtros, amor em estado puro,
fortíssimo por isso. O amor, nenhum, pode ser consumido em doses homeopáticas.
Tem de ser consumido todas as horas, todos os momentos.
As condições não são muitas, no entanto
Tertuliano oficial piloto – agora nos barcos que fazem a carreira das Áfricas ,
o Pátria, misto carga passageiros, alugou
uma casa remediada com dois quartos (para o que der e o que tiver que vir,
nunca se sabe o que se espera: um rebento, ou uma sogra para sempre) uma sala,
uma cozinha pequenita, e um quarto de banho, com sanita e bidé e até uma
banheira. Foi como se diz usando um anglicismo, um “improvement”, ou seja, a vida começa a sorrir para os dois.
Merecem-no.
Custódia para além de ser o veículo transmissor de
uma bela límpida voz pungente, a mando de alguma potência evanescente
desconhecida, , e ter o perfil ideal de fadista, por ser precisamente límpida e
pungente, e a postura corporal que já se descreveu - que já não o teria se
fosse canção de revista, ou mesmo variedades - onde ganha a vida é a fazer
roupinha para bebés. O fado é onde espana os pós da alma, e como todas as
limpezas, basta uma vez por semana, no dia de descanso dos outros quotidianos
da vida.
As roupinhas, em malha. Um mimo. Branco, cor das
rosas e azuis clarinhos. A mesa da costura e dos acessórios está encostada à
janela da sala. Aí passa os dias, cosendo, cantando, olhando em distração
fantasiosa para os horizontes, os que são possíveis olhar, enquadrado o espaço
por uma janela, ver uma faixa de céu no recorte dos telhados dos prédios em
frente a si. Sabe que por detrás dos prédios está o mar dourado, onde o seu
marinheiro aprendeu a ser marinheiro, onde num dia quente em que passeavam os
dois, de mão dada, jurando juras de eternidade, ela compreendeu, e aceitou, que
o seu homem teria que o dividir por duas amantes: ela e o mar, nome masculino
por engano.
Fazendo os seus trabalhos de malha e intervalando
com esses olhares de devaneio, também conversa com algum vizinho que passa,
cumprimenta-os, alinhava frases de circunstância, repeniques das mesmas. Coisas
simples, nada de metafísico. Ela não precisa, está feliz com o seu amigamento,
é metafísica suficiente.
Durante o dia vive ela assim enquanto o seu
homem anda de porto em porto. Veem-se cada quinze dias, se não houver
contratempos nas máquinas do navio, que os obrigue a parar, ou algum
acontecimento meteorológico que os atrase. E quando ele chega, deixa-se ficar,
não faz mais nada senão olhar amantemente para ela, abraça-la a qualquer
pretexto, beijá-la muito porque apetece
muito, como se recuperasse os abraços e os beijos não dados pela ausência, como
se acumulasse uma reserva deles, e frescos, e bons, para a próxima viagem.
Viva-se o presente, que não se sabe do amanhã,
sempre a fugir das mãos e de tudo o que o queira agarrar. Por isso Cústodia e
Tertuliano não o perdem, o tempo, consomem-no incivilizadamente, abraçando-se,
beijando-se, fisicamente amando-se unindo os corpos, esgotando todas as
possibilidades ao dispor e à mão, de conversarem, construindo o seu muro
intransponível de intimidades. A sua protecção ao exterior, que é seja onde for
e quanto, um local perigoso e cheio de armadilhas inesperadas.
E espante-se, não há mais arranjada maneira, do
que dizer em poética sensação dos sentidos - dizer o amor - cantado um fado.
Afinal já se sabe o que é o fado.
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