Para
se perceber melhor
Florinda casou com Jacques
e a dois, a vida foi-lhes um pouco melhor. Ela amansou dos nervos, os
comprimidos a partir de uma certa idade ajudam, deixou o trabalho do armazém,
tornou-se doméstica a tempo completo.
A polícia de Estado acabou
por se desinteressar do seu caso. Não detectaram mais ligações subversivas do
que as ligações de afecto com a sua família, mãe e irmãs, e as relações de
circunstância com os personagens mínimos exigidos no quotidiano de qualquer um:
vizinhos, o senhor da mercearia, o homem do talho, a peixeira, o taberneiro, o
do carvão, e pouco mais. E se as relações de família também podem ser
subversivas, são de uma outra ordem, não interessam ao Estado. Havendo tantos e
tantos para espiar, desistiram da Florinda.
O Jacques que tinha muita
conversa, apesar não falar francês, saiu da distribuição das botijas de gás, deixou
a sua moradia “senhorial”, no bairro do chinês, alugou uma casinha humilde, mas
de alvenaria e telhas verdadeiras, e fez-se vendedor de produtos de higiene e
perfumaria. Produtos Ach Brito.
Também tentava vender perfumes à família, sem grande sucesso. Tinha que os
oferecer no aniversário de algum parente.
Tirou a carta de condução,
comprou um carocha em segunda mão e nos três ou quatro anos em que foi o seu
proprietário, a única condução que praticou, foi avançar ou recuar o
posicionamento da viatura estacionada., todos os dias, um ou dois metros, para
a frente, para trás. Para dar uso ao motor e às rodas. Acabou por o vender e
continuou, como sempre fez, a utilizar o eléctrico e o autocarro. Muito melhor,
tinha motorista privado, ao número de passageiros que cabia no meio de
transporte em causa, e ainda podia ver as vistas e pensar nas coisas da vida.
Contas e esse tipo de tralha que faz parte da obrigação dos adultos responsáveis.
Foram os dois – ele e a sua
metade - meia dúzia de vezes à praia, ele molhou os pés, não mais, tinha medo
da água (diz-se que até da água do banho tinha medo). Florinda nunca saiu debaixo
do toldo de sol. Era uma mulher afogueada com problemas causados por uma
válvula das do coração.
Com o calor e a proximidade
da água salgada e a sua evaporação, o olho de vidro embaciava-se constantemente
e ela via ainda pior, quase nada, e preocupava-se cada rara vez que o marido ia
a banhos, de pés. Podia-lhe acontecer algum percalço, e ela não o vendo, não o
podia ajudar, como se pudesse. Dito isto, não gostava da praia.
Nos domingos de verão, faziam
grandes piqueniques familiares na mata dos Montes Claros. Sempre no mesmo
sítio. Em frente ao poste da paragem de autocarro.
Passavam os natais em
família, três dias, mais de vinte pessoas, os homens dormiam num quarto, as
mulheres noutro. Cada um levava o que podia, eles, licoroso e broas de mel. Distribuíam
pequenas lembranças, nos sapatinhos, colocados na chaminé da cozinha por ordem
de idades: os mais velhos à frente, as crianças atrás. Era mais pelas crianças,
a excitação das crianças, o natal é uma efeméride linda.
Depois disso tudo morreram,
como todos os que foram antes e os que vão a seguir, resumindo-se a sua
história a esses episódios e a umas quantas discussões pelo meio.
O
Arménio (é cada nome que lhes punham)
era o cunhado da parte da Maria, uma das irmãs
da Cústodia e da Florinda. Foi um miúdo
revoltado.
O Arménio é filho de António,
encarregado na fábrica de massas, quase ao lado do armazém dos vinhos. Joga
futebol e gosta da farra: patuscadas com amigos, idas aos toiros, feiras, passeios
em excursão.
É um mulherengo, não usa a
cabeça fisiologicamente mais adaptada ao acto de pensar. Sorte a sua não
existirem por esses sítios transvestidos – só nas grandes festas das vivendas
da Linha, onde meninos bem se suicidam em orgias de álcool e droga e sexos
misturados. Acontecimentos abafados.
Saiu de casa para ir à taberna encher
uma garrafa de vinho, e voltou cinco anos de depois. E foi preciso que o filho
mais velho o fosse buscar. Regressou como se estivesse a regressar da taberna
onde foi há cinco anos buscar vinho, pendurou o casaco no cabide, sentou-se na
mesa da cozinha e perguntou à mulher o que era o almoço.
Ela para não o perder de novo,
serviu o prato, serviu-o ainda de mais subserviências, sentou-se calada e assim
ficou nos quarenta anos seguintes, até que ele, vindo a falecer vítima de uma
paragem digestiva após uma patuscada com os amigos, a libertou do silêncio.
A partir daí foi uma carga de
trabalhos, o raio da mulher pondo as contas em dia com o tempo perdido, com
tanta palavra acumulada no palato e nas cavidades orais, e tudo quanto era
sítio nas entranhas, desatou a falar que nunca mais se calou, até as deitar
todas cá para fora quando exalou o seu suspiro final.
Morreu, igualmente como a
Florinda e o Jacques e os outros nomes todos.
Voltando
atrás
Arménio tem um irmão mais novo,
um ano de diferença, andam na escola primária para os filhos dos funcionários da
fábrica onde o pai finge que trabalha. Brincam os dois no pátio da escola. Arménio descalço, o irmão calçado. O mais
velho ficou com a mãe o outro com o pai. A diferença, de um pé nu a um pé
calçado fez do Arménio um revoltado. O irmão que vivia com o pai tinha tudo,
até brinquedos. Arménio que ficou com a mãe por ser um rapaz de princípios,
ficou no lado da fome.
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