Depois das aulas da manhã o Professor Abel almoça
no andar de cima da escola, a
sua casa, talvez a última. Deixou a família morrer e não a foi substituindo,
está sozinho. Não é que quisesse que toda morresse, mas sendo esse
acontecimento obrigatório, podia ter-se precavido aumentando-a. Não o fez. É um
homem de poucos convívios, não se lhe conhece o tempo do passado, de onde veio,
de perto ou longe, se já foi feliz, ou foi sempre assim, como parece ser: uma
pessoa desprendida, que cortou ou perdeu os fios-guia, que ligam a qualquer
coisa ou coisas.
Tem por companhia única um livro a quem ele dá
o braço, no pouco que sai, indo acompanhado desse livro sem título conhecido,
se é sempre o ou mesmo, ou muda, não se sabe onde vai com ele. Mas um livro
pode até ter vida, mas não é um ser vivente e como é natural nestes casos, e já
se estava mesmo à espera, as pessoas falam e imaginam coisas. São férteis as
imaginações.
No fim das aulas de uma manhã,
todas iguais, com a sacola suja, gasta, da ardósia e da sebenta a tiracolo,
Arménio – descalço - com a marmita da comida do professor na mão encaminha-se
para a taberna do Senhor Zé. Foi lhe dada, imposta, essa tarefa diária, por
tempo indeterminado, o tempo dele frequentar a escola.
O cardápio não é dos
mais animadores, tem poucas variações: pastéis de bacalhau, pataniscas de
bacalhau, bolos de bacalhau, chaputa ou faneca frita, arroz de tomate ou arroz
de grelos, vinho, pão. O que lhe sobra do almoço,
fica para o jantar, ou não come mais nada. segue em tudo na vida, uma natureza
frugal. Até na apreciação que faz das coisas, limita-se ao mínimo e essencial,
satisfaz-se com pouco.
O professor, na eventualidade de se ter feito ideia, preconceito, que é um ser metido com as suas coisas, afastado do
mundano, ainda não desligou completamente. E a sua ligação são precisamente os
seus alunos. Gosta de ensinar. Não é uma profissão, é um desígnio pessoal, um
compromisso que assumiu até que a morte o separe, sem nenhuma obrigação, pelo
contrário, uma escolha apaixonada. Ser professor é um acto de amor, portanto de
humanidade. Essa é a sua ligação mundana.
E falando em temas mundanos,
Abel tem andado ultimamente desconfiado que as doses dos almoços minguaram. Não
sabe porquê. Tem o Zé e a gordalhufa da sua mulher, por gente honesta, para que
o iam enganar?
Começou por perguntar ao miúdo.
- Arménio senta-te aí (no
degrau do estrado da sala de aula). Ele encostou-se ao bordo de uma daquelas
mesa de sala de aula desses tempos, que falha agora o nome delas.
- Estou desconfiado que o Zé anda a pôr menos
comida na minha marmita - Pergunta feita.
O miúdo por vezes tem uns
arranques bons. Não se engasga:
- Senhor Professor eu não sei,
não o vejo a servir, ele vai para a cozinha e a dona Pilar é que põe a comida
na marmita. Mas agora que pergunta, realmente a marmita anda mais leve.
-O que é
que tu sabes de pesos e medidas, para fazer esses cálculos? Mesmo com menos
pastéis, não é por isso que se percebe no peso, o pastel é como o algodão,
desfaz-se na boca e pesa pouco.
-Ou será que os contas para
saber que são menos?
-Senhor professor, juro pela
alma da minha santa mãe, que nunca faria uma coisa destas.
- Acalma-te rapaz. Não jures
com a alma dos outros, que nós não sabemos se eles querem.
O Abel explica-lhe que o
dinheiro não desaparece por artes de evaporação no caminho da escola para a
taberna e portanto chega o mesmo que saiu na origem, se é que chega, dando
assim para comprar a mesma quantidade de comida que sempre deu. Mais, nem a
marmita perde o seu peso natural, que será sempre o mesmo até que quando deixar
de ser usada pelos homens, a Mãe Natureza a reconverta de novo em matéria
informe.
O rapaz jura uma vez mais, agora sem nomear a
alma de ninguém, vermelhíssimo, que entrega o dinheiro ao taberneiro, e que já
que o Senhor Professor o está a dizer, também acredita que o peso da marmita
não sofra alterações de maior segundo as leis da Física, matérias de estudo que
ficam por aí e nunca mais, pelo menos os dois, virão a aprofundar.
Será uma intuição, mas não
ficou satisfeito com as respostas do catraio. No dia seguinte, vai à taberna
falar com o Zé galego, taberneiro e carvoeiro, e agiota implacável. É o maior
banco privado do bairro. Está riquíssimo, para deixar tudo ao filho, um
estroinas.
Tem a confirmar o testemunho,
repetindo em eco exactamente as mesmas palavras do marido, a sua esposa, mulher
de carnes excessivas, todas as que podem tentando escapar nas zonas expostas do
vestido, justíssimo, a rebentar, de propósito para conter toda aquela imensidão,
ou então para levar ao engano, das angulosidades que nunca teve. A mulher para
além de gorda tem um bigode de respeito, podia ser um guarda fiscal, ou mesmo
de um guarda noturno. Só aceitam homens
nas forças armadas e de segurança.
Alguma (não exagerada)
pilosidade naquele espaço entre o nariz e o lábio superior, é um atributo não
só dos homens como de muitas mulheres. O homem comum não retira créditos à
beleza feminina, só por esta ser fiel depositária de uma cofiada pilosidade nesta zona.
O professor Abel vai a casa da
Amélia, mãe de Arménio.
“Trús, trús” (som do bater
dos nós da mão numa porta de madeira).
-Oh menina Amélia, faz-me
vossemecê o favor de chegar aqui num instante? Sou o mestre-escola Abel - num
tom seco.
- Quem está aí (é quase sempre
a primeira resposta, que é pergunta)? Há é o senhor Professor Abel. Aconteceu
alguma coisa aos meus meninos?
-Não se aporrinhe Amélia. Queria
só fazer-lhes umas perguntas.
- Em sabendo responder, faça
senhor professor, faça.
-O seu homem tem-lhe faltado
com alguma coisa ultimamente?
-Nem me fale desse malandro que
não o quero ver nem morta (ela a dizer isto, e a sua consciência a comentar
consigo mesma: “está bem abelha! Se te
aparecesse à porta agorinha mesmo, até lhe punhas o xaile no chão, para Sua
Senhoria não sujar o sapatito engraxado!”).
- Não dá
nada para o sustento das crianças. Quero eu dizer: do meu Arménio. Até parece
que só tem um filho. Ao José dá tudo. Anda ali arranjadinho que parece que sai
de casa todos os dias para fazer a comunhão.
- O Arménio por ser o mais
velho e ter ficado comigo, está a pagar por isso. O pai despreza-o. Mas o meu
menino é como se já fosse o homem da casa. Tem o meu sangue, e não perdoa o que
o pai lhe fez.
-Cá em casa falta-vos a comida?
- agora num tom menos inquiridor.
- Graças a Deus ainda vamos
tendo. Arranjamo-nos e eu sou muito boa de mãos, já a minha mãezinha, Deus a
tenha em sossego, era uma cozinheira de respeito. Chegou a servir em casa de
senhores.
- Eu faço milagres senhor
professor. Multiplico as batatas e o peixe (“outra
com a mania que é demiurga”, a consciência).
- Sabe menina Amélia, Estou
convencido de que o seu Arménio anda a tirar-me comida da marmita todos os dias. Por isso vim falar consigo.
- Não me diga uma coisa dessas,
que vergonha, não pode ser.
-Eu já andava a desconfiar há
algum tempo, porque a marmita estava a esvaziar de dia para dia, e fui falar
com o Zé taberneiro, e ele garantiu-me pela alma de um parente distante que tem
lá na terra, que nunca faria uma desfeita dessas, a de roubar na comida do
professor.
- Da forma como ele falou e no
assentimento da mulher que se encontrava presente, sou levado a acreditar na
palavra deles.
-Ai senhor professor não me
desgrace. Não me diga uma coisa dessas. O meu filho não é rapaz para isso. Ele
nem é de comer muito, um pisco que para ali anda.
- Se é verdade o que diz,
senhor professor, ponho-o a pão e água durante uma semana, e com o rabo bem
encerado.
-Deixe o castigo por minha
conta. Para já finja que não sabe.
-Ele julga que eu não dei
conta, e vai tirando uns pastéis, só que nos últimos tempos tem abusado na
quantidade.
- Minha Virgem santíssima, se
eu pudesse devolvia-lhe todos os pasteis em falta, só que não sei como fazer
esse milagre. Pudesse eu comprar umas boas postas de bacalhau, e fazia-lhe os
melhores pastéis que o Senhor .Professor já alguma vez comeu!
-Não se preocupe, o que ele
comeu já lá vai. Não lhe diga nada que eu mesmo lhe dou a lição e de certeza
que tão cedo não se vai esquecer. Esteja descansada, que quando isso acontecer,
a menina Amélia vai saber no próprio dia.
-Obrigado Senhor Professor, que
é tão bonzinho. Deus o tenha por cá muitos e bons anos. É como um pai para o
meu filho. Pobre do rapaz que também não teve sorte nenhuma em lhe caber a
sorte de ficar descalço. Esta vida é uma lotaria. Vá-se lá adivinhar o número
que tem prémio!
-Passe um resto de boa tarde,
menina Amélia.
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