A
herança familiar
O que importa trazer para aqui os instantâneos
de outras vidas, para fazerem mais cristalino o vislumbre da vida de
Tertuliano, o homem que viveu o mar?
Valem muito. Todas as biografias são
enriquecidas pelas marcas dos outros. Uma vida conta-se pelo seu álbum de
fotografias e neste não só se colam os auto-retratos, como também fotografias
com mais rostos, Ora sorrindo, ora sérios, em pose ou descontraídos, paisagens
também, e casas mais ou menos significantes e grandiosas. Uma vida também se
conta por um ou outro acontecimento passado para a memória dos que ficam a
aguardar a sua ordem de viagem.
Mas o que foi o íntimo de cada um, a essência
individual, nunca se conhece verdadeiramente. São os monólogos interiores, à
porta fechada.; as perguntas e respostas feitas e dadas pelo próprio; os pensamentos
fundamentais ou irrisórios. Isso não se vem a saber. Isso é o que é a pessoa. O
que sobra são rotinas, encenações e conveniências.
Como afinal os outros contam, conta apresentar Florinda
que faz parte da história de Tertuliano e é irmã de Custódia. Ela tinha um olho
de vidro mas nem por isso deixa, com o outro, de ver pelos dois.
Uma revolucionária. sem saber da existência
desse conceito. O perfil completo de uma revolucionária: lutadora voluntária, não remunerada, de
causas justas sem solução. Ao sentir o mínimo alerta no seu código pessoal de
justiça, não deixa por dizer, com ou sem conveniência, no sítio certo ou
errado. Para ela não existem essas dicotomias. Injustiça é injustiça, e custe
como custar é para ser denunciada. E, se necessário for, pega-se no que vem à
mão e é arma de arremesso. Vá-se a saber porquê, Florinda tem bastante jeito
para acertar nos alvos dos seus arremessos.
A raiva da feiura que medra
nos jardins das injustiças da vida, por vezes agiganta as pessoas, noutras
amesquinha. Não foi o caso dela, que tendo um coração mole - o melhor para si é
o melhor dos outros, e mesmo rezingona deixou saudade. Nalgum livro de
memórias, uma analfabeta, escreveu um capítulo cheio de poesia bem rimada nas
métricas certas.
Florinda é aprendiza nos
armazéns do vinho, secção de rolharia e sorte teve em arranjar emprego. Há
geografias no mundo, onde os tempos são sempre maus. Quase tudo para um
punhado, quase nada para os que sobram, quase todos. Esta geografia padece
cronicamente desta doença, a doença do egoísmo dos homens.
Na monótona cadência dos movimentos repetidos,
ela e as companheiras, finalizam e calibram rolhas de cortiça.
Muito se deve à rolha e tão
pouco se liga. Deveria ser um dos símbolos nacionais, porque a árvore que a
produz, vive com pouco alimento e não se queixa, tal e qual o povo que busca a
sua sombra nos dias de calor.
A mulher que faz rolhas
ganha mal e tem um trabalho monótono, arrasta-se a nunca mais chegar ao fim,
para levar tostões para casa.
No seu local de trabalho,
as mulheres (é quase tudo mulheres) para irem à casa banho, têm de pedir
autorização e o tempo da sua necessidade, é controlado e descontado na paga da
jorna. Vá-se lá saber quanto tempo leva a necessidade a ser feita.
Esta estatística só será
apurada para efeitos de lucros empresariais quarenta anos depois, com as
máquinas de código binário: zero-um, um-zero, que entre outras coisas de
utilidade, vieram ajudar os gestores a medir os compassos inúteis de cagar, na
produtividade final das empresas.
Ao meio dia as operárias
fazem um pequeno intervalo de meia hora, o tempo é escasso e o almoço toma-se
sem que saiam do seu posto. Pousam as ferramentas, desligam as máquinas,
desfazem os nós do pano que embrulha o farnel, com a marmita ainda quente,
improvisando mesa posta na bancada de trabalho. Pão e restos de qualquer coisa,
enganos dos sabores. As mais afortunadas, comem uma malga de sopa, ou sobras do
dia de ontem. O que não falta é vinho, oferta da casa, cumprindo a máxima de
que não faltando este e mais o pão, o povo não passa fome e não fica sem razão.
Antes de pegar ao serviço,
as mulheres descontraem falando sobre os seus assuntos e sobre os homens; os
homens falam das mulheres, estas continuam a falar dos homens; eles
aborrecem-se – seres saltitantes - mudam para o futebol e vão invariavelmente
acabar em porcarias.
As operárias mais velhas,
judiciosas, vividas, muitas com sofrimentos, aconselham e ensinam as mais
jovens. Relembram falando em voz alta e quem sabe falando só para si mesmas, velhas
amalucadas, prejuízos da idade, relembram aventuras suas, já tão distantes,
quase apagadas.
As mais miúdas trocam com
pudores confidências, muitas sonham acordadas, muitos desses sonhos são utopias
do amor, irrealizáveis, mas de um grande romantismo. Porque é assim, as
mulheres têm essa capacidade única, invejável, de mesmo tendo os pés fincados
no chão, sonharem romantismos exaltantes, coisa que não é dos homens.
O que é para ambos é a
juventude, o melhor fogacho efémero da vida.
Os machos, de patilha farta,
bigodaça farfalhuda gabam-se entre si. De tudo se gabam, é da sua natureza, e
das hormonas.
Os capatazes, tão
analfabetos como os aprendizes, controlam ou deviam, o ritmo do trabalho, acabando
com as conversas, as distrações, impedindo as idas frequentes à casa de banho.
O espaço do armazém
organiza-se em corredores com as trabalhadoras sentadas de um lado e de outro
das bancadas que correm a todo o comprimento da nave. Nos caminhos do para trás
e para a frente, os capatazes-controladores , o que mais gostam mesmo de fazer,
uns a fingirem equívoco temporário, outros mais assertivos, é de se encostar
(certas partes, que já se entendeu) nas costas das trabalhadoras. Chegam a meter
as manápulas onde não são chamadas. São os pequenos poderes, abusos, assédio
que tem de ser consentido. São as regras e as leis dos tempos.: o homem faz e
dita, a mulher submete-se.
Mas umas deixam, e as que se
deixam ir mais longe, julgam que vão ter compensações no trabalho. Enganam-se,
assinam sem saberem assinar, a liberdade pouca que já tinham de pelo menos
dizerem convencidamente não. Algumas pagam o dízimo numa esquina ou num vão de
escada escuro, sujo, à saída da fábrica. Sexo apressado, sem jeito, sem prazer.
Sexo animal, besta.
Quem não deixa a mão arreganhar por aí acima
(ou abaixo), por ser feia ou arisca ou por não haver mão que a queira ou porque
se reserve o direito de escolher quem a arreganhe, trabalha mais horas, sem
receber mais. Se protesta, mais tarde ou mais cedo o capataz acaba por
convencer a gerência a correr com ela, que não se querem revolucionários para
contaminar a harmonia do sistema fabril
A Florinda, antiga zarolha,
Não se pode dizer que seja
feia. É desinteressada no arranjo da cara e pingona no vestir, o que não ajuda
a que se olhe para ela., mas como todas as irmãs e já se viu isso na Custódia,
quando sorri, pacifica o desenho menos nobre do seu rosto, cativa
quem recebe o seu sorriso. Antes de ter o olho
de vidro não levantava a cabeça da calçada portuguesa. Com o novo morador,
devidamente encaixado, começou a arregalá-los para tudo o que mexe, atrasada de
recuperar visões perdidas. Nos primeiros dias, quem a conhecia, chegou a
comentar que a rapariga devia andar possuída, um olhar arregalado, muito
aberto, vítreo, mas era do olho novo e elas habituaram-se.
Esse facto, essa novidade,
foi o mote. Olhando-os a eles, também eles, no armazém deram conta da sua existência
e dai até ser assediada, foi um fósforo.
No dia em apreço uma mão
peluda e fedendo experimentou, mas não chegou ao destino final.
A meio caminho, o usufrutuário
da mesma, já se assoa sangues, o que pode ser de alguma maleita pulmonar, mas o
mais correcto é afirmar ser o efeito de uma valente morraça, com estilo,
potência e encaixe, certeiramente dirigida em tempo útil ao mandante da excrescência
com dedos.
O
homem ficou momentaneamente sem saber como se chamava e por muito que se tente,
não há melhor imagem que a dos passarinhos a piarem à volta da cabeça, para
ilustrar o seu estado transitório de consciência alterada.
As colegas que presenciaram
a ocorrência riam descontroladas, animando a Florinda e troçando do imbecil E
foi nesse momento que se deu o fenómeno da propagação em cadeia: cochichando
umas com as outras, as que tinham assistido a contar como foi, o riso a
espalhar-se, ecoar no armazém, a ser
captado pelas que estavam mais longe, percebendo que alguma coisa de importante
estava a acontecer, a porem-se de pé, a ver se viam.
Um grande gozo tomou conta
da fábrica.
Os machos por solidariedade
atávica, desataram a distribuir estaladas a torto e a direito, ofendidos com a
ofensa ao companheiro, feridos de honra.
Começa o filme.
O protesto foi colectivo.
Novas, um bocadinho menos, feias, boas, magras e gordas, todas se revoltaram em
crescendo, respondendo às chapadas com o que tinham à mão.
Esgotadas de repressão que
não dá folgas. Saltou a tampa da hipotética panela. E os ogres seja onde for,
não têm a clarividência do entendimento das coisas.
Na grande nave dá-se início
a uma batalha campal: mulheres contra homens, batalha de sexos. E a festa não
está com aspecto que esteja para terminar, muito pelo contrário, neste momento
o conflito generaliza-se. Dançam objectos pelos ares. Um tonel atingido por um
míssil metálico, verte o precioso líquido num fio a imitir uma catarata, neste
caso de cor vermelho escuro. Há quem se ponha de joelhos, cabeça para trás e
boca bem aberta para recolher o néctar, outros, como se fosse água, põem a
cabeça por baixo, para refrescar ideias e tranquilizar os neurónios depois de
uma marretada bem assente. Escorrega-se. Cai-se, executam-se gestos de estilos
de natação, numa piscina a fingir. E luta-se, muito e bem, ganham as mulheres.
Os homens já não têm os bigodes revirados. Descaíram.
A situação está fora de
controlo. Alguém se dirige à gerência, noutro edifício. Ouvida a parte
ofegante, a gerência atónita, mas sem desarmar perante a ralé que implora
ajuda, dá ordens à menina do PBX , esperando que não se engane (não é de fiar) a
colocar o pino na entrada certa. Uma chamada urgente para os senhores da
segurança do Estado.
Pede-se apoio rápido para debelar a rebelião. A
menina do PBX dos senhores da segurança do Estado, funcionário público com
trinta anos de carreira, conecta o gabinete certo. Reúne-se o piquete de emergência
da segurança nacional. O Inspector de serviço ( pode ser Joaquim) dá ordem à
Guarda para actuar utilizando os meios necessários e adequados à
proporcionalidade do conflito. A cavalaria que se ponha a caminho, que está
mais perto do local. Os inspectores ainda têm que ajeitar as gravatas negras e
dar um toque no cabelo, vão com o seu vagar, os inssurrectos, talvez
comunistas, não hão de fugir.
Novamente a partir do PBX
(esta funcionária é mesmo lesta de mãos e sabe de cor os orifícios todos da
central da Direcção Geral de Segurança) põe o oficial de dia no quartel de
Braço de Prata ao corrente da situação. O Corneteiro de serviço – não sem antes
ajeitar a gravata e ver se as botas têm lustro - dá ordem de toque a reunir na
parada, e como tem a mania que é artista floreia os sons do toque. Até
entenderem que era o toque a reunir, ainda levaram uns bons dez minutos. Os
soldados que já tinha almoçado e que destilam nas camaratas, aparelham os
cavalos e perfilam, meio trôpegos.
Comandados pelo tenente
José da Silva, sai um pelotão, a galope, dada a urgência em apagar o fogacho de
uma rebelião eminente.
Desembestados que vão mal conseguem travar a
tempo e nem se dão ao trabalho de estacionarem primeiro à porta e mandarem o
cabo Malaquias ver se a rebelião já tinha acabado ou se era assunto para durar.
Não senhor, aproveitando o balanço do galope, que do quartel ao armazém é
sempre a descer, uma carga montada da GNR, em estilo triunfante – não é todos
os dias que se faz uma carga, aproveita-se a oportunidade - desemboca, qual
investida aos castelhanos, de cacetes em punho e levando tudo o que apanha pela
frente. Garbos cavaleiros anafados, de capacete reluzente com uma ponteira de
unicórnio nos cocurutos; homens com penicos enfiados na cabeça; figuras da
autoridade do regime.
O cenário descreve-se assim:
rolhas espalhadas pelo chão, garrafas partidas, mulheres de pernas para o ar a
verem-se partes a descoberto, outras agarradas às cabeças tingidas não se sabe
se da fuga do tonel se de uma contusão, algumas escondidas ,de baixo das mesas,
e uma, a Joana D’Arc de Xabregas, de pé, serena e gigante na sua pequenez, a
distribuir murros aos cavalos e a puxar pelos fundilhos dos calções dos agentes
balofos, mais incomodados pela interrupção do descanso, a ver se eles caiem. Derrubou
contados três, e pôs o nariz a pingar, de constipado, a outros tantos.
A rebelião não foi fácil de
conter, vieram reforços. Por fim a razão da força vence a força da razão, dito
comum, mas que não há outro para arrematar a história.
Resumo da ocorrência após
os acontecimentos, ainda a quente, feita pelo tenente, aos senhores de fato
preto, na via pública, enquanto os cavalos cagavam e os Guardas limpavam as
nódoas de vinho, misturadas com o sangue das quedas das bestas. Algumas, já se
disse, causadas pelos derrubes furiosos da zarolha e seus sacrifúculos – todas mulheres
-, devido ao estado escorregadio do terreno, pela ruptura involuntária de uma
pipa de grande calibre:
“Queiram Vossas Excelências saber, que
dominamos a situação das grevistas sem baixas a reportar da nossa parte. Temos
a certeza que estão arrependidas e vão voltar ao trabalho com mais vontade do
que antes. Prendemos uma que está mais nervosa, talvez por estar sempre a
respirar estes vapores, que não faram nada bem à saúde. Devo reportar que
alguns cavalos também estavam com um andar esquisito, viu-se-lhes olhares meio
revirados”.
“A
cidadã em causa segue para interrogatório mais apurado, a menos que Vossas
Excelências pretendam tomar o caso em mãos.”
Relatório da autoridade
para o gabinete do ministro, que foi informado nesse mesmo dia, telefonicamente,
uma vez pela eficiente funcionária do PBX, que leu o seguinte comunicado
oficial:
“Uma
cidadã revolucionária foi detida para interrogatório. Desconfia-se do seu
envolvimento em rede criminosa organizada com intenção de abalar o Estado de
Direito e a Graça de Deus. A cidadã em causa veio há pouco tempo de uma aldeia
obscura e miserável, o que indicia que se dirigiu para a capital com o intuito
deliberado de exercer actividades subversivas. Os nossos serviços detiveram-na
e após rigoroso e detalhado interrogatório em que foi necessário o uso de
instrumentos de persuasão - como ensinam as práticas de uma polícia moderna -
deu-se por verdadeira a veracidade dos factos indiciados. A cidadã será
submetida a vigilância apertada no sentido de nos levar à captura de outros
membros desta rede comunista criminosa, pelo que este corpo de segurança, aconselha
a que para já não se detenha a insurrecta, com a intenção de ser utilizada como
isco”.
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