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DO AMOR INCONDICIONAL - 8 - DO MÁRTIR









«Se este não é o mais alquímico dos Amores, o que é o Amor? 
Abdico-me para me dar a Ti. Que melhor justificação tenho para a dádiva mais absoluta que faço a deus de todo o meu ser: pôr ao seu dispor, já que é ele que me alenta, o seu hálito é a minha vida, o meu corpo e a minha alma. Dar-me na totalidade de mim, tomar essa decisão por todas as células e seres ocultos, mínimos, que me constituem, e em uníssono, dizermos que somos Teus.

Ser mártir é a minha realização na terra. Passaporte para a eternidade, o bilhete de entrada, “Very Important Person”, no paraíso. Todas as virgens que me esperam e as que me são devidas por este acto de entrega, são um prémio merecido, a recompensa justa, e não é por elas que me realizo quando me fizer explodir, é para cumprir a lei do meu Deus: punir os infiéis, os sujos, manchados, uma nódoa que impregna e que temos que limpar da face da terra.

É essa a sua palavra, a palavra ditada pelos homens que se dizem detentores da palavra Dele, assim o afirmam, assim acreditamos.

Não me apequena matar um homem, mil, são todos infiéis da minha causa, repugnam-me, não são homens como eu. Sem o saberem é um favor que lhes faço de terem sido paridos, e ao mundo que os pariu, que o limpo desse lixo tóxico. O meu deus é o único, o verdadeiro, o Profeta, não aceito a ideia de outro, que são falsos deuses, invenções e mentiras, debilidades de espíritos menores, baratas rastejantes.

Só há uma religião, a minha e a dos meus irmãos.

Fui escolhido para executar a justiça divina, com as minhas próprias mãos, o instrumento mais fiel da cabeça dos homens. E por esse serviço, um préstimo meu ao divino, serei levado em glória, à Sua presença. Todos conhecerão o meu nome, todos falarão de mim.

Serei conhecido, logo existi.

Até há pouco tempo nem sabia de Deus, negava-o, andava afastado do seu conselho sábio, enredado nas coisinhas comezinhas dos dias. Era um miúdo do bairro, a única geografia que eu conhecia.

Para ser sincero não me lembro de alguma vez ter sido religioso, era um desconectado. É isso mesmo: antes não tinha um objectivo na vida. Todos os dias eram iguais, passados na rua com os meus brothers, sem fazer nada, não era nada, um zero, um olhar pedrado para o tempo, e para as pessoas que estão dentro dele.

Foi a palavra deles, as palavras podem ser poderosas.

Ligaram-me todos os interruptores.

Iluminaram-me.

Todo esse encadeamento súbito obrigou-me a ver a luz.

Iluminei-me.

Agora que a minha cabeça abriu a pontapé os cadeados da porta do meu coração, empunho a espada indestrutível da fé, poderes inabaláveis, que nos dão invencibilidade.

Sei de cor algumas partes do Livro dos livros, aprendi tão bem sem saber praticamente que sabia ler, coisa que uso pouco, e não fosse ter que me fazer explodir, decorava-o do inicio ao fim. Gosto do som monocórdio das ladainhas. Tranquilizam-me. Não tenho tempo para isso agora, porque tenho uma missão a cumprir, mas no jardim de todas as delícias terei a eternidade para o ler, nem será preciso, terei o privilégio de apreciar a companhia do Seu autor, ouvir os Seus ditames, rodeado de todos os que O amam sem condições, aceitando Dele todas as condições, somos mártires em nome do Profeta.»
……

«Fazia as suas asneiras, os miúdos são todos assim, mas era um bom rapaz. Passava os dias na rua, andava com os outros, por aí. Já se sabe, faz um faz outro, não querem ficar atrás. Eram bons miúdos, qual é a mãe que diz o contrário? Uma mãe que ama o filho perdoa-lhe tudo.

Não estudou, enervava-se muito. Também, como se pode interessar uma criança com coisas que não servem para nada? É um castigo o que lhes ensinam nas escolas. Isso é que é uma pena. Todos os que lá estão, estão por obrigação, das contínuas aos professores. Eu nem sei explicar, nunca estudei, as poucas letras que sei não lhes vejo utilidade, não compreendo nada das coisas que estão escritas nos livros da escola. Que uso têm? Ensina-os a serem homens? Dá-lhes uma profissão? Profissões têm os filhos dos doutores, que doutores são, e não foi por estudarem que têm profissão, é por que são importantes. O meu andou por lá a gastar tempo, contrariado, incomodado a incomodar os outros, coitadinho, quando nasceu todos sabíamos que ia ser um esquecido de deus e escondemos-lhe sempre essa verdade, para não o ver sofrer, enquanto crescia iludido.

Só a obrigação de ter que lá ir todos os dias, dava-lhe nervos, eu bem sei, que bem via o estado em que ficava. Uma violência. Era um rapaz muito nervoso.

Somos pobres desde o ser que expulsou da placenta pela primeira vez alguém de quem somos aparentados, dos sangues.

Não sabemos ser outra coisa que pobres, é o que é, e há coisas piores. Pobre e coxo, um exemplo. Graças ao Pastor (está sempre a dizer isso de olhos fechados e mãos viradas ao alto), somos fortes porque crentes do Senhor. Aleluia.

Desconhecemos a cor ao dinheiro, pardo, migalhas. Nesse particular devo dizer que ele nunca pediu, arranjava-se, sempre bem arranjado: ténis de boas marcas, bonés garridos, coisas dos jovens. Nunca lhe perguntei onde as arranjava. Se calhar davam-lhe.

Problemas com a polícia? Era muito orgulhoso, não gostava deles, e eles têm pouca paciência, não se dão com a nossa cor. Nós e os ciganos – eu também não gosto dos ciganos, mas não sei porquê – somos sempre os maus. Eles têm a mão leve, sempre a malhar, um miúdo faz uma burricada e é logo de pistola na mão, a trazerem a morte para a conversa. Esteve preso duas ou três vezes, coisas pequenas, não era de andar por aí a matar pessoas. As juízas também não têm paciência nenhuma, nem olham na cara das pessoas. É preto ou cigano, é culpado.

As vezes enervava-se e como tinha um corpo de se olhar – saiu ao avô, alto, largo de ombros – não media a força, transformava-se num demónio, não ouvia ninguém nem eu me podia aproximar. Levava tudo em frente até se cansar de bater. Era muito forte, o meu filho, e bonito, era o meu filho.
Depois, ficava um triste parado. Desistente e triste. Deixava-se ficar a um canto, dó e mágoa vê-lo assim desiludido de viver. Tudo é uma pena. Aleluia.

O problema é que os polícias não o compreendiam, também carregados de nuvens. Sabiam que ele era assim, porque se atravessavam no seu caminho? Provocações gratuitas.
Agora, todos dão palpites. Todos sabem, todos julgam que o conhecem como eu, mas só as mães podem revindicar essa intimidade. Os vizinhos inventam coisas para os jornalistas, querem ser filmados, a fama inebria mais do que o dinheiro.

Os jornalistas são uns sugadores, não descansam, não nos deixam em paz. Se já se esgotou a história, porque deve continuar a haver história? na profissão de fazer as perguntas certas (estudaram para isso), a insistirem sem tino nas erradas. O que é que eles aprendem nas universidades?

Dizem que tinha armas em casa. Não sei, não vi, ele trancava a porta do quarto a cadeado, nunca entrei lá dentro. Só depois de ter saído de casa e termos consumido meses na espera de notícias, os amigos deixaram de o ver de um dia para o outro – não fosse vermos a cara dele na televisão (a cara não, que a tinha tapada, foi pela voz que o reconhecemos), com uma arma apontada a um desgraçado vestido de cor-de-laranja, de joelhos no meio de um deserto ou parecia que era. Nesse dia forçámos o cadeado e entrámos no quarto.

Era a desarrumação normal dos miúdos desta idade (desta e de todas) não vimos nada de especial. Tinha roupa boa que nunca mais acabava, a colecção de bonés, então, onde foi ele desencantar tanto chapéu? O que mais nos estranhou foram os livros. Nunca o tinha visto com livros. Pareciam todos iguais, uns desenhos que não sabemos o que eram se eram letras, rabiscos estranhos. Que interesse tinha ele naquela porcaria? Mal sabia ler na nossa língua. Que esteja a ver, agora que penso nisso, não me lembro de alguma vez o ver sequer a ler. Nem os jornais da bola, que ele só ia aos jogos para a farra, naqueles grupos dos cânticos.

Estou convencida que foram os livros que lhe fizeram mal, deram-lhe a volta à cabeça, nunca conheci ninguém que lesse livros que fosse bom da caixa, também nunca conheci ninguém que lesse livros, é uma desculpa que acabo de inventar, para meu consolo. Quando perdemos um filho temos que estar sempre a inventar, para continuar a sobreviver.

Descobrimos também um bom colar, parece ouro, estava dentro de umas sapatilhas, embrulhado em meias. Onde é que o rapaz terá arranjado aquilo? Alguma prenda? Davam-lhe assim tanta coisa?»


«Sou um revoltado. Vivi esta vida curta ausente de cor. Cinzento para mim não é cor, é esta fuligem que borra as casas e as pessoas. Tudo igual, tudo feio. E o que é que o cinzento tem a ver com ser revoltado? Tudo, um revoltado só pode ser cinzento. Um verde ou um amarelo, não encaixam, são demasiado alegres para se revoltarem. Cores de cabrões apinocados.

Família? Um bando de parasitas a viverem à custa uns dos outros. Aceitam tudo, são escravos desde que os trouxeram nas caravelas e ainda agradecem, com as marcas das correntes nos pulsos e nos tornozelos, quinhentos anos depois. Alguma vez eu era capaz de ter uma vida assim! Sou tão de aqui como os outros, caras pálidas. Esta é a minha terra.

A minha mãe nunca fez nada da vida que se merecesse. Trabalho e miséria. Aos tropeções a consumir as fichas todas para não ter a chatice de um futuro. Está aqui há uma data de anos e continua a falar uma língua só dela, não se entende uma palavra. Veio de uma sanita que deve ser uma boa merda, para ser escrava que é o que ela é. Conheceu o meu pai e foderam-se. Cá estou, nem branco nem preto, um preto com os hábitos de um branco.

O meu pai bate na minha mãe, o que é normal num homem, e saca-lhe o dinheiro: para beber. Gostamos das coisas boas!
Desde a crise que são as únicas coisas onde o vejo gastar o tempo: beber e dar-lhe grandes cargas de porrada, ela aguenta.

Deixaram de construir estradas- eles devem saber porquê, mas o pessoal andava entretido, havia trabalho e os centros comerciais estavam mais cheios - e o gajo ficou sem trabalho. Arrasta-se por aí, nas tascas a tentar emborcar todas as mines do mundo. Ele a tentar e eles a encherem ainda mais garrafas, na fábrica. Não o vai conseguir nunca. Vai morrer afogado em mines.

Está cada vez mais deprimido por não ter trabalho, a hidratação e a cachaporra fazem-lhe bem, deita cá para fora as más energias. Para ela mais pontapé menos pontapé, é igual.

Nem os posso ver, ela passa o dia naquelas merdas das limpezas, cruzamo-nos pouco. O gajo, se o vejo é logo para o mandar para a indivídua que o colocou aqui, não lhe dou mais confianças.

Com estes exemplos só se fosse parvo é que ainda ia trabalhar. Para quê, se roubar é muito mais simples. Desde puto que me oriento. Inventei o meu manual de sobrevivência. Quero umas sapatilhas da moda, é escolher, tirá-las da prateleira e bazar. O meu sucesso é ser bom corredor – treinei em puto a arte da fuga -, não me apanham facilmente.»

…..


«É uma família sinalizada pela Acção Social. Fazemos um acompanhamento atento, à distância claro, profissional, eficaz e discreto, é uma pena a falta de meios.

Disfuncional? De risco? Quem não é? Vimos cada caso que se fosse para contar, estaríamos aqui a tarde toda.
Eles não são os piores.

O miúdo fazia as suas asneiras, nada de muito grave, e nós intervimos um par de vezes a mando do Tribunal de Menores.

Os recursos são poucos e não devíamos estar a dizer isto, mas há muita burocracia.

Ele fez trabalho comunitário e chegou a estar internado duas vezes, mas não os podemos ter para sempre, cada vez há mais nessas condições, necessitados de intervenção. Nós respondemos como vamos podendo. Poucos recursos, sabe.
Violência doméstica? Pai-mãe? Sim, a polícia conhece-os bem, foi lá algumas vezes, o problema é que nem mesmo para a polícia é fácil entrar no bairro.

A mãe é uma boa mulher. Coitada, olhos negros e umas nódoas negras, o costume, os patrões nem notam, nunca devem ter olhado para ela. Também não é por aí, e depois só se os apanhamos no acto da agressão é que podemos agir. Vamos lá saber quando vai ser o acto de agressão? Eles não avisam com antecedência.

Há tantos casos destes – até nas boas famílias – que era preciso uma Assistente Social e uma Psicóloga para cada um. O Ministério não tem essa capacidade mas trabalha bem. Já temos uma linha directa vinte e quatro horas por dia, em conformidade com as directivas europeias, agora vem tudo decidido de fora. O senhor ministro da tutela anunciou que vamos lançar brevemente um sitio na internet para esclarecimentos e informações aos utentes. Bem pensado. Será anunciado na comunicação social.
 
Esforçamo-nos e depois os males do mundo ficam todos para a Segurança Social resolver. Não temos meios e quando digo meios refiro-me também às nossas condições. Soubéssemos hoje o que seria a realidade e muitos teríamos escolhido outras saídas. Antes íamos para o convento, já nem há conventos (as mais feias e isso), hoje o nosso ministério é a acção social e a psicologia.

Voltando ao assunto que perguntam, nunca pensámos que a história tivesse este desfecho: de delinquente a terrorista, vai uma grande distância. É que nem nos passa pela cabeça, termos terroristas que sejam nossos. Um povo tranquilo, amigo do seu amigo, solidário com os outros. Ainda custa a acreditar.

Estamos sempre a aprender e mais, não estávamos preparadas para isto, nunca tivemos casos destes, a culpa não é nossa, estamos atentos, controlamos as situações, à distância claro, agora terroristas, não se pode saber tudo. Aguardamos indicações superiores. O ministério ainda não nos deu indicações.

Aguarda-se a constituição de uma comissão de trabalho, para constituir um trabalho com base na experiência dos nossos parceiros europeus sobre este assunto, que é novo para nós. Como serão os novos formulários, as regras de preenchimento? Se a moda do terrorismo pega por cá, mais dia menos dia o ministério vai ter que criar um novo Instituto. A bem da nação.»

…..


«Eles já me tinham abordado uma ou duas vezes. Eram uns gajos estranhos, só falavam de Deus. Não era malta do gamanço, nem das pastilhas, eram brothers, do nosso sangue. Nas primeiras conversas convidavam-nos para ir à NET ver umas coisas cool. Cenas de tiros e espancamentos, tipo filmes, estás a ver? Todos heróis, peito feito, imortais. Gostei. Eles diziam que era a guerra santa, acreditei.

Já andava farto de bater nos mesmos, os polícias não dão pica nenhuma, panhonhas. Como não tinha nada para fazer, fui para a guerra santa. Cenas fixes. Matas e consideram-te, não é como cá, não te respeitam mais por isso.

Foi tão fácil chegar lá, levados ao colo, parecia uma excursão do liceu. Não conto como foi para não revelar o modo como a coisa funciona, mas é mesmo debaixo da “cueca” deles. Andam ceguinhos.

Se dizem que o meu bairro não tem lei, haviam de ver aquilo. Destruição total, não há um prédio de pé, uma janela intacta, uma porta com fechadura que feche, ou abra. Um caos completo. O poder somos nós. Somos os polícias, os ladrões, os violadores, tudo. Treinamos a fazer tiro ao alvo à cabeça dos desgraçados que tiveram o azar de cair nas nossas mãos vivos. Os mais valiosos são os jornalistas. Fazemos vídeos com eles a mendigaram perdão e divulgamos. É a nossa propaganda. Se não nos pagam dinheiro que se veja para os libertarmos, estouramos as suas cabeças. Parecem abóboras flácidas. Há jornalistas a mais, tanta informação só polui.

Fiz o que tinha a fazer, as coisas começaram a complicar-se para nós, e deram-me uma nova missão, a minha derradeira missão. Voltar à minha terra, e dar testemunho ao mundo, no mundo onde nasci, que a dádiva de um mártir ao oferecer o seu corpo e a sua alma ao seu Senhor, é o mais intenso dos amores, o verdadeiro.»

….


«Não tenho nada a dizer, não sei, não vi, mas já que a senhora me pergunta e é para a televisão, posso dizer-lhe que o achava um bom rapaz. Custa-me a acreditar no que dizem. Nunca o vi fazer mal a ninguém. Diziam isto e aquilo, mas era fora do bairro, cá dentro sempre foi respeitador. Pacato até. 

Todos os dias passava aqui pela porta do estabelecimento, ensimesmado com as suas coisas, o gorro da camisola enfiado na cabeça – andam todos assim, é moda -, olhos postos no chão. Nunca o vi com raparigas. De vez em quando tomava uma cereja, comprava cigarros – comecei a fumar com doze anos, como posso negar vender-lhes cigarros! É como o álcool, uma cerveja faz mal a alguém? Nunca ficou a dever, nota em cima do balcão. Isso para mim é um bom sinal. Boa gente!»

«A menina pergunta bem mas mal me lembro da sua voz, não era de discursos, nem sorrisos, não sei o que tomava ao pequeno almoço, desculpe.

Custa-me muito a acreditar que ele fosse desses. Isso é lá na televisão e nesses países. Aqui podemos ter as nossas coisas, uma rixa de vez em quando, mas é normal. Coisas da vida, menina.»

….


«Não podemos adiantar nada mais senão que estamos atentos e vigilantes às movimentações dos potenciais terroristas em território nacional. O nosso governo, o governo de todos nós, tem uma grande preocupação pelo bem-estar e segurança dos seus cidadãos, seja no território pátrio, seja nos cantos do mundo onde temos missões de muito prestígio. Bem vistos em todo o lado. Podemos dizer que estamos concentrados e activos e temos uma excelente colaboração e troca de informações actualizada com os nossos colegas de toda a Europa. Os indivíduos que se dedicam a práticas de terrorismo estão sinalizados e não há motivos para falsos alarmes no seio da sociedade.

Não é correcto dizer que o país serve como uma base de retaguarda para células terroristas que se querem infiltrar e atingir alvos na Europa. Felizmente, estamos longe de ter as preocupações dos nossos parceiros e vizinhos. No entanto estamos atentos a movimentações estranhas que possam acontecer no nosso espaço. E temos operacionais para actuar de imediato, se for caso disso.

Os riscos estão referenciados e estamos preparados para planos de contingência. Não há notícia, nem indícios que se estejam a preparar acções terroristas no nosso território.»

….


«Os nossos jhiadistas são jovens adultos filhos de emigrantes, alguns já na terceira geração, oriundos de bairros suburbanos. Estes bairros, “problemáticos”, são incubadoras de delinquentes. Abandonados pelos pais, esquecidos pela sociedade, que não tem resposta para a solução de casos sociais complexos, estes jovens crescem em comportamentos de risco, e acabam invariavelmente por cometerem crimes de violência vária. Queremos, no entanto, tranquilizar a população, os nossos níveis de criminalidade são dos mais baixos do mundo ocidental, como o terrorismo é um fenómeno distante da nossa realidade quotidiana. Não há motivos para alarmes desnecessários.

A Administração Interna aproveita para avisar a população que deve continuar a fazer a sua vida normal e que não há qualquer perigo na participação ou assistência ao desfile das Marchas Populares, que este ano, se vão realizar como em todos os outros, em ambiente de festa e comunhão dos cidadãos e dos turistas que recebemos carinhosamente nesta altura do ano.

Quanto aos carteiristas, não se pode fazer nada. Aconselhamos que estejam atentos e não deixem as vossas carteiras principalmente nos bolsos detrás das calças. Os carteiristas estão referenciados e são do leste.»


…..


«Fontes próximas do bairro onde tudo começou, informam-nos que este jovem tinha sido vítima de abusos continuados – em pequeno – pelo pai, indivíduo referenciado pelas autoridades devido à sua índole agressiva e desviante.

Tentamos a confirmação desta notícia junto da mãe, mas por se encontrar no seu horário de trabalho, a patroa não autorizou o contacto. Ficamos a aguardar, a todo o momento, nova oportunidade para chegar à fala com a progenitora.

Sempre que seja oportuno e relevante, faremos um directo.
Os vizinhos conheciam-no e gostavam dele. No entanto alguns referiram que ultimamente parecia diferente. Poderia ser da barba. Estava diferente, preparava algo. Não se sabe como se deu a conversão.»


«Vou explodir em glória e esplendor numa escola primária, no bairro dos ricos, todos de uniforme. Verdinhos. Vou ser mártir e o meu nome famoso.

Dizem, o meu mestre disse-me que ser mártir é a causa das causas, dizem também que se sacrificares a vida de crianças puras e inocentes elas vão directamente para o paraíso. É o que vou fazer. Eu e elas, juntos.

Ganho a medalha da imortalidade porque acredito em tudo o que o meu mestre me diz, e se me diz que desintegrar crianças aos bocadinhos, é amor, e eu acredito, levo-as comigo, inocentes e puras, para o paraíso, onde nos espera o Profeta.»

…..


A vida para mim não tem sentido.

O meu sentido é o ódio, o amor negro.

As palavras que dizem do profeta, o som dessas palavras, que não as entendo, provocam-me uma reacção que não sei explicar. O meu corpo vibra com esse ódio, mas por dentro, no meu interior sinto-me banhado por um radioso bem-estar, e isso só pode ser amor.

Nada mais importa. Não tenho medo, não tenho remorsos, nem culpas, nem saudades de ninguém. Sou o homem mais livre que existe a pisar a terra.

Quero morrer para viver no além.

Mato porque a minha vida é um vazio.

Mato porque vou ser herói. Não quero ser anónimo.

Mato porque me abriram a consciência com a palavra do Senhor, ditada pelos homens seus acólitos.

Mato para ganhar o paraíso, as virgens prometidas.

Não é o meu ódio a demonstração mais sublime de um amor incondicional?

Já falta pouco, daqui a nada estarei à tua beira, juntos, para desfrutarmos, juntos, a passagem inesgotável do tempo.»

É difícil chamar amor a esta estranheza que custa classificar. Inclui-se com reservas. Que é uma entrega incondicional, não há dúvida. Zéfiro fez-se explodir e desintegrou-se em pó num domingo, ás sete hores e vinte e dois minutos da manhã. Não se sabe, mas julga-se que ter-se-á enganado no dia, e a escola estava vazia. Por ser domingo, dia do Senhor e do descanso dos homens, os jornalistas que fizeram a cobertura do evento, fizeram-no contra vontade. As audiências dos jornais foram reduzidas.

Nesse dia específico, o último de todas as semanas, as pessoas querem descansar, ou então esquecerem que existem, elas e  o mundo, ou seja, a vida miserável que julgam ter, porque se comparam mal com as outras ao seu redor, e porque as aparências também enganam muito.

Ainda assim, há uma grande quantidade de pessoas felizes, que se queixam pouco, que avançam, e é desses equilíbrios que  se faz a desarmoniosa harmonia do mundo que continua a ser um sítio de extrema beleza.




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