«Se este não é o mais alquímico dos Amores, o que é o Amor?
Abdico-me para me dar a Ti. Que melhor justificação tenho para a dádiva mais
absoluta que faço a deus de todo o meu ser: pôr ao seu dispor, já que é ele que
me alenta, o seu hálito é a minha vida, o meu corpo e a minha alma. Dar-me na
totalidade de mim, tomar essa decisão por todas as células e seres ocultos,
mínimos, que me constituem, e em uníssono, dizermos que somos Teus.
Ser mártir é a minha realização na terra. Passaporte para a
eternidade, o bilhete de entrada, “Very Important Person”, no paraíso. Todas as
virgens que me esperam e as que me são devidas por este acto de entrega, são um
prémio merecido, a recompensa justa, e não é por elas que me realizo quando me
fizer explodir, é para cumprir a lei do meu Deus: punir os infiéis, os sujos,
manchados, uma nódoa que impregna e que temos que limpar da face da terra.
É essa a sua palavra, a palavra ditada pelos homens que se dizem
detentores da palavra Dele, assim o afirmam, assim acreditamos.
Não me apequena matar um homem, mil, são todos infiéis da minha
causa, repugnam-me, não são homens como eu. Sem o saberem é um favor que lhes
faço de terem sido paridos, e ao mundo que os pariu, que o limpo desse lixo
tóxico. O meu deus é o único, o verdadeiro, o Profeta, não aceito a ideia de
outro, que são falsos deuses, invenções e mentiras, debilidades de espíritos
menores, baratas rastejantes.
Só há uma religião, a minha e a dos meus irmãos.
Fui escolhido para executar a justiça divina, com as minhas próprias
mãos, o instrumento mais fiel da cabeça dos homens. E por esse serviço, um
préstimo meu ao divino, serei levado em glória, à Sua presença. Todos
conhecerão o meu nome, todos falarão de mim.
Serei conhecido, logo existi.
Até há pouco tempo nem sabia de Deus, negava-o, andava afastado do
seu conselho sábio, enredado nas coisinhas comezinhas dos dias. Era um miúdo do
bairro, a única geografia que eu conhecia.
Para ser sincero não me lembro de alguma vez ter sido religioso,
era um desconectado. É isso mesmo: antes não tinha um objectivo na vida. Todos
os dias eram iguais, passados na rua com os meus brothers, sem fazer nada, não era nada, um zero, um olhar pedrado
para o tempo, e para as pessoas que estão dentro dele.
Foi a palavra deles, as palavras podem ser poderosas.
Ligaram-me todos os interruptores.
Iluminaram-me.
Todo esse encadeamento súbito obrigou-me a ver a luz.
Iluminei-me.
Agora que a minha cabeça abriu a pontapé os cadeados da porta do
meu coração, empunho a espada indestrutível da fé, poderes inabaláveis, que nos
dão invencibilidade.
Sei de cor algumas partes do Livro dos livros, aprendi tão bem
sem saber praticamente que sabia ler, coisa que uso pouco, e não fosse ter que
me fazer explodir, decorava-o do inicio ao fim. Gosto do som monocórdio das
ladainhas. Tranquilizam-me. Não tenho tempo para isso agora, porque tenho uma
missão a cumprir, mas no jardim de todas as delícias terei a eternidade para o
ler, nem será preciso, terei o privilégio de apreciar a companhia do Seu autor,
ouvir os Seus ditames, rodeado de todos os que O amam sem condições, aceitando Dele
todas as condições, somos mártires em nome do Profeta.»
……
«Fazia as suas asneiras, os miúdos são todos assim, mas era um
bom rapaz. Passava os dias na rua, andava com os outros, por aí. Já se sabe,
faz um faz outro, não querem ficar atrás. Eram bons miúdos, qual é a mãe que
diz o contrário? Uma mãe que ama o filho perdoa-lhe tudo.
Não estudou, enervava-se muito. Também, como se pode interessar
uma criança com coisas que não servem para nada? É um castigo o que lhes
ensinam nas escolas. Isso é que é uma pena. Todos os que lá estão, estão por
obrigação, das contínuas aos professores. Eu nem sei explicar, nunca estudei,
as poucas letras que sei não lhes vejo utilidade, não compreendo nada das
coisas que estão escritas nos livros da escola. Que uso têm? Ensina-os a serem
homens? Dá-lhes uma profissão? Profissões têm os filhos dos doutores, que
doutores são, e não foi por estudarem que têm profissão, é por que são
importantes. O meu andou por lá a gastar tempo, contrariado, incomodado a
incomodar os outros, coitadinho, quando nasceu todos sabíamos que ia ser um
esquecido de deus e escondemos-lhe sempre essa verdade, para não o ver sofrer,
enquanto crescia iludido.
Só a obrigação de ter que lá ir todos os dias, dava-lhe nervos,
eu bem sei, que bem via o estado em que ficava. Uma violência. Era um rapaz
muito nervoso.
Somos pobres desde o ser que expulsou da placenta pela primeira
vez alguém de quem somos aparentados, dos sangues.
Não sabemos ser outra coisa que pobres, é o que é, e há coisas
piores. Pobre e coxo, um exemplo. Graças ao Pastor (está sempre a dizer isso de
olhos fechados e mãos viradas ao alto), somos fortes porque crentes do Senhor.
Aleluia.
Desconhecemos a cor ao dinheiro, pardo, migalhas. Nesse particular
devo dizer que ele nunca pediu, arranjava-se, sempre bem arranjado: ténis de
boas marcas, bonés garridos, coisas dos jovens. Nunca lhe perguntei onde as arranjava.
Se calhar davam-lhe.
Problemas com a polícia? Era muito orgulhoso, não gostava deles,
e eles têm pouca paciência, não se dão com a nossa cor. Nós e os ciganos – eu
também não gosto dos ciganos, mas não sei porquê – somos sempre os maus. Eles
têm a mão leve, sempre a malhar, um miúdo faz uma burricada e é logo de pistola
na mão, a trazerem a morte para a conversa. Esteve preso duas ou três vezes,
coisas pequenas, não era de andar por aí a matar pessoas. As juízas também não
têm paciência nenhuma, nem olham na cara das pessoas. É preto ou cigano, é
culpado.
As vezes enervava-se e como tinha um corpo de se olhar – saiu ao
avô, alto, largo de ombros – não media a força, transformava-se num demónio,
não ouvia ninguém nem eu me podia aproximar. Levava tudo em frente até se
cansar de bater. Era muito forte, o meu filho, e bonito, era o meu filho.
Depois, ficava um triste parado. Desistente e triste. Deixava-se
ficar a um canto, dó e mágoa vê-lo assim desiludido de viver. Tudo é uma pena.
Aleluia.
O problema é que os polícias não o compreendiam, também
carregados de nuvens. Sabiam que ele era assim, porque se atravessavam no seu
caminho? Provocações gratuitas.
Agora, todos dão palpites. Todos sabem, todos julgam que o
conhecem como eu, mas só as mães podem revindicar essa intimidade. Os vizinhos
inventam coisas para os jornalistas, querem ser filmados, a fama inebria mais
do que o dinheiro.
Os jornalistas são uns sugadores, não descansam, não nos deixam
em paz. Se já se esgotou a história, porque deve continuar a haver história? na
profissão de fazer as perguntas certas (estudaram para isso), a insistirem sem
tino nas erradas. O que é que eles aprendem nas universidades?
Dizem que tinha armas em casa. Não sei, não vi, ele trancava a
porta do quarto a cadeado, nunca entrei lá dentro. Só depois de ter saído de
casa e termos consumido meses na espera de notícias, os amigos deixaram de o
ver de um dia para o outro – não fosse vermos a cara dele na televisão (a cara
não, que a tinha tapada, foi pela voz que o reconhecemos), com uma arma
apontada a um desgraçado vestido de cor-de-laranja, de joelhos no meio de um
deserto ou parecia que era. Nesse dia forçámos o cadeado e entrámos no quarto.
Era a desarrumação normal dos miúdos desta idade (desta e de
todas) não vimos nada de especial. Tinha roupa boa que nunca mais acabava, a
colecção de bonés, então, onde foi ele desencantar tanto chapéu? O que mais nos
estranhou foram os livros. Nunca o tinha visto com livros. Pareciam todos
iguais, uns desenhos que não sabemos o que eram se eram letras, rabiscos
estranhos. Que interesse tinha ele naquela porcaria? Mal sabia ler na nossa
língua. Que esteja a ver, agora que penso nisso, não me lembro de alguma vez o
ver sequer a ler. Nem os jornais da bola, que ele só ia aos jogos para a farra,
naqueles grupos dos cânticos.
Estou convencida que foram os livros que lhe fizeram mal,
deram-lhe a volta à cabeça, nunca conheci ninguém que lesse livros que fosse
bom da caixa, também nunca conheci ninguém que lesse livros, é uma desculpa que
acabo de inventar, para meu consolo. Quando perdemos um filho temos que estar
sempre a inventar, para continuar a sobreviver.
Descobrimos também um bom colar, parece ouro, estava dentro de
umas sapatilhas, embrulhado em meias. Onde é que o rapaz terá arranjado aquilo?
Alguma prenda? Davam-lhe assim tanta coisa?»
…
«Sou um revoltado. Vivi esta vida curta ausente de cor. Cinzento
para mim não é cor, é esta fuligem que borra as casas e as pessoas. Tudo igual,
tudo feio. E o que é que o cinzento tem a ver com ser revoltado? Tudo, um
revoltado só pode ser cinzento. Um verde ou um amarelo, não encaixam, são
demasiado alegres para se revoltarem. Cores de cabrões apinocados.
Família? Um bando de parasitas a viverem à custa uns dos outros.
Aceitam tudo, são escravos desde que os trouxeram nas caravelas e ainda
agradecem, com as marcas das correntes nos pulsos e nos tornozelos, quinhentos
anos depois. Alguma vez eu era capaz de ter uma vida assim! Sou tão de aqui
como os outros, caras pálidas. Esta é a minha terra.
A minha mãe nunca fez nada da vida que se merecesse. Trabalho e
miséria. Aos tropeções a consumir as fichas todas para não ter a chatice de um
futuro. Está aqui há uma data de anos e continua a falar uma língua só dela,
não se entende uma palavra. Veio de uma sanita que deve ser uma boa merda, para
ser escrava que é o que ela é. Conheceu o meu pai e foderam-se. Cá estou, nem
branco nem preto, um preto com os hábitos de um branco.
O meu pai bate na minha mãe, o que é normal num homem, e
saca-lhe o dinheiro: para beber. Gostamos das coisas boas!
Desde a crise que são as únicas coisas onde o vejo gastar o
tempo: beber e dar-lhe grandes cargas de porrada, ela aguenta.
Deixaram de construir estradas- eles devem saber porquê, mas o
pessoal andava entretido, havia trabalho e os centros comerciais estavam mais cheios
- e o gajo ficou sem trabalho. Arrasta-se por aí, nas tascas a tentar emborcar
todas as mines do mundo. Ele a tentar
e eles a encherem ainda mais garrafas, na fábrica. Não o vai conseguir nunca.
Vai morrer afogado em mines.
Está cada vez mais deprimido por não ter trabalho, a hidratação
e a cachaporra fazem-lhe bem, deita cá para fora as más energias. Para ela mais
pontapé menos pontapé, é igual.
Nem os posso ver, ela passa o dia naquelas merdas das limpezas,
cruzamo-nos pouco. O gajo, se o vejo é logo para o mandar para a indivídua que
o colocou aqui, não lhe dou mais confianças.
Com estes exemplos só se fosse parvo é que ainda ia trabalhar.
Para quê, se roubar é muito mais simples. Desde puto que me oriento. Inventei o
meu manual de sobrevivência. Quero umas sapatilhas da moda, é escolher,
tirá-las da prateleira e bazar. O meu sucesso é ser bom corredor – treinei em
puto a arte da fuga -, não me apanham facilmente.»
…..
«É uma família sinalizada pela Acção Social. Fazemos um
acompanhamento atento, à distância claro, profissional, eficaz e discreto, é
uma pena a falta de meios.
Disfuncional? De risco? Quem não é? Vimos cada caso que se fosse
para contar, estaríamos aqui a tarde toda.
Eles não são os piores.
O miúdo fazia as suas asneiras, nada de muito grave, e nós
intervimos um par de vezes a mando do Tribunal de Menores.
Os recursos são poucos e não devíamos estar a dizer isto, mas há
muita burocracia.
Ele fez trabalho comunitário e chegou a estar internado duas
vezes, mas não os podemos ter para sempre, cada vez há mais nessas condições, necessitados
de intervenção. Nós respondemos como vamos podendo. Poucos recursos, sabe.
Violência doméstica? Pai-mãe? Sim, a polícia conhece-os bem, foi
lá algumas vezes, o problema é que nem mesmo para a polícia é fácil entrar no
bairro.
A mãe é uma boa mulher. Coitada, olhos negros e umas nódoas
negras, o costume, os patrões nem notam, nunca devem ter olhado para ela.
Também não é por aí, e depois só se os apanhamos no acto da agressão é que
podemos agir. Vamos lá saber quando vai ser o acto de agressão? Eles não avisam
com antecedência.
Há tantos casos destes – até nas boas famílias – que era preciso
uma Assistente Social e uma Psicóloga para cada um. O Ministério não tem essa
capacidade mas trabalha bem. Já temos uma linha directa vinte e quatro horas
por dia, em conformidade com as directivas europeias, agora vem tudo decidido
de fora. O senhor ministro da tutela anunciou que vamos lançar brevemente um
sitio na internet para esclarecimentos e informações aos utentes. Bem pensado. Será
anunciado na comunicação social.
Esforçamo-nos e depois os males do mundo ficam todos para a
Segurança Social resolver. Não temos meios e quando digo meios refiro-me também
às nossas condições. Soubéssemos hoje o que seria a realidade e muitos teríamos
escolhido outras saídas. Antes íamos para o convento, já nem há conventos (as
mais feias e isso), hoje o nosso ministério é a acção social e a psicologia.
Voltando ao assunto que perguntam, nunca pensámos que a história
tivesse este desfecho: de delinquente a terrorista, vai uma grande distância. É
que nem nos passa pela cabeça, termos terroristas que sejam nossos. Um povo
tranquilo, amigo do seu amigo, solidário com os outros. Ainda custa a
acreditar.
Estamos sempre a aprender e mais, não estávamos preparadas para
isto, nunca tivemos casos destes, a culpa não é nossa, estamos atentos,
controlamos as situações, à distância claro, agora terroristas, não se pode
saber tudo. Aguardamos indicações superiores. O ministério ainda não nos deu
indicações.
Aguarda-se a constituição de uma comissão de trabalho, para
constituir um trabalho com base na experiência dos nossos parceiros europeus
sobre este assunto, que é novo para nós. Como serão os novos formulários, as
regras de preenchimento? Se a moda do terrorismo pega por cá, mais dia menos
dia o ministério vai ter que criar um novo Instituto. A bem da nação.»
…..
«Eles já me tinham abordado uma ou duas vezes. Eram uns gajos
estranhos, só falavam de Deus. Não era malta do gamanço, nem das pastilhas,
eram brothers, do nosso sangue. Nas
primeiras conversas convidavam-nos para ir à NET ver umas coisas cool.
Cenas de tiros e espancamentos, tipo filmes, estás a ver? Todos heróis, peito
feito, imortais. Gostei. Eles diziam que era a guerra santa, acreditei.
Já andava farto de bater nos mesmos, os polícias não dão pica
nenhuma, panhonhas. Como não tinha nada para fazer, fui para a guerra santa.
Cenas fixes. Matas e consideram-te, não é como cá, não te respeitam mais por
isso.
Foi tão fácil chegar lá, levados ao colo, parecia uma excursão
do liceu. Não conto como foi para não revelar o modo como a coisa funciona, mas
é mesmo debaixo da “cueca” deles. Andam ceguinhos.
Se dizem que o meu bairro não tem lei, haviam de ver aquilo. Destruição
total, não há um prédio de pé, uma janela intacta, uma porta com fechadura que
feche, ou abra. Um caos completo. O poder somos nós. Somos os polícias, os
ladrões, os violadores, tudo. Treinamos a fazer tiro ao alvo à cabeça dos
desgraçados que tiveram o azar de cair nas nossas mãos vivos. Os mais valiosos
são os jornalistas. Fazemos vídeos com eles a mendigaram perdão e divulgamos. É
a nossa propaganda. Se não nos pagam dinheiro que se veja para os libertarmos,
estouramos as suas cabeças. Parecem abóboras flácidas. Há jornalistas a mais,
tanta informação só polui.
Fiz o que tinha a fazer, as coisas começaram a complicar-se para
nós, e deram-me uma nova missão, a minha derradeira missão. Voltar à minha
terra, e dar testemunho ao mundo, no mundo onde nasci, que a dádiva de um
mártir ao oferecer o seu corpo e a sua alma ao seu Senhor, é o mais intenso dos
amores, o verdadeiro.»
….
«Não tenho nada a dizer, não sei, não vi, mas já que a senhora
me pergunta e é para a televisão, posso dizer-lhe que o achava um bom rapaz.
Custa-me a acreditar no que dizem. Nunca o vi fazer mal a ninguém. Diziam isto
e aquilo, mas era fora do bairro, cá dentro sempre foi respeitador. Pacato até.
Todos os dias passava aqui pela porta do estabelecimento, ensimesmado com as
suas coisas, o gorro da camisola enfiado na cabeça – andam todos assim, é moda
-, olhos postos no chão. Nunca o vi com raparigas. De vez em quando tomava uma
cereja, comprava cigarros – comecei a fumar com doze anos, como posso negar
vender-lhes cigarros! É como o álcool, uma cerveja faz mal a alguém? Nunca ficou
a dever, nota em cima do balcão. Isso para mim é um bom sinal. Boa gente!»
«A menina pergunta bem mas mal me lembro da sua voz, não era de
discursos, nem sorrisos, não sei o que tomava ao pequeno almoço, desculpe.
Custa-me muito a acreditar que ele fosse desses. Isso é lá na
televisão e nesses países. Aqui podemos ter as nossas coisas, uma rixa de vez
em quando, mas é normal. Coisas da vida, menina.»
….
«Não podemos adiantar nada mais senão que estamos atentos e
vigilantes às movimentações dos potenciais terroristas em território nacional.
O nosso governo, o governo de todos nós, tem uma grande preocupação pelo
bem-estar e segurança dos seus cidadãos, seja no território pátrio, seja nos
cantos do mundo onde temos missões de muito prestígio. Bem vistos em todo o
lado. Podemos dizer que estamos concentrados e activos e temos uma excelente
colaboração e troca de informações actualizada com os nossos colegas de toda a
Europa. Os indivíduos que se dedicam a práticas de terrorismo estão sinalizados
e não há motivos para falsos alarmes no seio da sociedade.
Não é correcto dizer que o país serve como uma base de
retaguarda para células terroristas que se querem infiltrar e atingir alvos na
Europa. Felizmente, estamos longe de ter as preocupações dos nossos parceiros e
vizinhos. No entanto estamos atentos a movimentações estranhas que possam
acontecer no nosso espaço. E temos operacionais para actuar de imediato, se for
caso disso.
Os riscos estão referenciados e estamos preparados para planos
de contingência. Não há notícia, nem indícios que se estejam a preparar acções
terroristas no nosso território.»
….
«Os nossos jhiadistas
são jovens adultos filhos de emigrantes, alguns já na terceira geração,
oriundos de bairros suburbanos. Estes bairros, “problemáticos”, são incubadoras
de delinquentes. Abandonados pelos pais, esquecidos pela sociedade, que não tem
resposta para a solução de casos sociais complexos, estes jovens crescem em
comportamentos de risco, e acabam invariavelmente por cometerem crimes de
violência vária. Queremos, no entanto, tranquilizar a população, os nossos
níveis de criminalidade são dos mais baixos do mundo ocidental, como o
terrorismo é um fenómeno distante da nossa realidade quotidiana. Não há motivos
para alarmes desnecessários.
A Administração Interna aproveita para avisar a população que
deve continuar a fazer a sua vida normal e que não há qualquer perigo na
participação ou assistência ao desfile das Marchas Populares, que este ano, se
vão realizar como em todos os outros, em ambiente de festa e comunhão dos
cidadãos e dos turistas que recebemos carinhosamente nesta altura do ano.
Quanto aos carteiristas, não se pode fazer nada. Aconselhamos
que estejam atentos e não deixem as vossas carteiras principalmente nos bolsos
detrás das calças. Os carteiristas estão referenciados e são do leste.»
…..
«Fontes próximas do bairro onde tudo começou, informam-nos que
este jovem tinha sido vítima de abusos continuados – em pequeno – pelo pai,
indivíduo referenciado pelas autoridades devido à sua índole agressiva e
desviante.
Tentamos a confirmação desta notícia junto da mãe, mas por se
encontrar no seu horário de trabalho, a patroa não autorizou o contacto.
Ficamos a aguardar, a todo o momento, nova oportunidade para chegar à fala com
a progenitora.
Sempre que seja oportuno e relevante, faremos um directo.
Os vizinhos conheciam-no e gostavam dele. No entanto alguns referiram
que ultimamente parecia diferente. Poderia ser da barba. Estava diferente,
preparava algo. Não se sabe como se deu a conversão.»
…
«Vou explodir em glória e esplendor numa escola primária, no
bairro dos ricos, todos de uniforme. Verdinhos. Vou ser mártir e o meu nome
famoso.
Dizem, o meu mestre disse-me que ser mártir é a causa das
causas, dizem também que se sacrificares a vida de crianças puras e inocentes
elas vão directamente para o paraíso. É o que vou fazer. Eu e elas, juntos.
Ganho a medalha da imortalidade porque acredito em tudo o que o
meu mestre me diz, e se me diz que desintegrar crianças aos bocadinhos, é amor,
e eu acredito, levo-as comigo, inocentes e puras, para o paraíso, onde nos
espera o Profeta.»
…..
A vida para mim não tem sentido.
O meu sentido é o ódio, o amor negro.
As palavras que dizem do profeta, o som dessas palavras, que não
as entendo, provocam-me uma reacção que não sei explicar. O meu corpo vibra com
esse ódio, mas por dentro, no meu interior sinto-me banhado por um radioso bem-estar,
e isso só pode ser amor.
Nada mais importa. Não tenho medo, não tenho remorsos, nem
culpas, nem saudades de ninguém. Sou o homem mais livre que existe a pisar a
terra.
Quero morrer para viver no além.
Mato porque a minha vida é um vazio.
Mato porque vou ser herói. Não quero ser anónimo.
Mato porque me abriram a consciência com a palavra do Senhor, ditada pelos homens seus acólitos.
Mato para ganhar o paraíso, as virgens prometidas.
Não é o meu ódio a demonstração mais sublime de um amor
incondicional?
Já falta pouco, daqui a nada estarei à tua beira, juntos, para desfrutarmos,
juntos, a passagem inesgotável do tempo.»
É difícil chamar amor a esta estranheza que custa classificar.
Inclui-se com reservas. Que é uma entrega incondicional, não há dúvida. Zéfiro
fez-se explodir e desintegrou-se em pó num domingo, ás sete hores e vinte e
dois minutos da manhã. Não se sabe, mas julga-se que ter-se-á enganado no dia,
e a escola estava vazia. Por ser domingo, dia do Senhor e do descanso dos
homens, os jornalistas que fizeram a cobertura do evento, fizeram-no contra
vontade. As audiências dos jornais foram reduzidas.
Nesse dia específico, o último de todas as semanas, as pessoas
querem descansar, ou então esquecerem que existem, elas e o mundo, ou seja, a vida miserável que julgam
ter, porque se comparam mal com as outras ao seu redor, e porque as aparências
também enganam muito.
Ainda assim, há uma grande quantidade de pessoas felizes, que se
queixam pouco, que avançam, e é desses equilíbrios que se faz a desarmoniosa harmonia do mundo que
continua a ser um sítio de extrema beleza.
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