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DO AMOR INCONDICIONAL - 1-DO PODER







Nesta pluralidade que é a natureza, nesta obra dos acasos ou de causas superiores insondáveis, há seres cuja beleza cativa o mundo. A beleza é o argumento mais forte do poder. Dança à sua volta, danças do ventre, sensuais, húmidas, viciantes. Sabe rodeá-lo e tecer a sua teia invisível mas inquebrável, ata-o de mãos e pés, imobiliza, inteiramente hipnotizado.

Perante a força irracional que irrompe de uma obra sinfónica, para pôr um exemplo de beleza superior, o homem baixa as defesas, entrega a sua sorte no embalo da música, extasiando-se é levado por essa torrente de emoções.
Os efeitos dessa mistura explosiva, do casamento da beleza com o poder leva os seres a atitudes que não se alcança imaginar, coisas fora da lógica. Práticas do bem e o mal, sem noção, do bem e do mal, coisa subjectiva que leva por vezes a equilíbrios no fio da navalha.

O aparecimento fugaz de um tigre listrado, meio visto, meio escondido no restolho dos arbustos, hipnotiza quem o vê e olha, no simples vislumbre da sua perfeição, e mesmo sendo uma presa e sabendo logo que vai morrer, deixa-se ir porque é assim o seu destino, e um tigre listrado é um ser de uma beleza superior a quem não se pode negar nada.

Uma águia-real que plana sustida pelas suas asas enormes, negras, mas asas perfeitas, na antecipação da caçada que não é cruel por ser justa na índole da águia que o faz somente para se alimentar, e deixa estarrecidas em terra as alimárias, não por medo, mas pela admiração dessa beleza em estado puro, ondeando nas alturas de céus luminosos, esperando que em voo picado, esse ser alado vindo dos céus, um deus, se abata mortalmente sobre si.

Estando atentos, os olhos tropeçam em muitos exemplos destes, nos arrebatamentos do belo. E é necessário que haja um ser mais feio, menos completo, muitos assim, para que se possa admirar sem nenhuma condição prévia ou posterior, os seres que são a beleza no estado puro, os já ditos, e outros tantos que habitam a enciclopédia da natureza.

Como causa desses efeitos alucinogénios, o espanto, o fascínio, o enamoramento imediato, e como em todos os lugares nos planetas habitados em galáxias desconhecidas, é assim que as coisas são: os seres naturalmente belos dominam os menos vistosos, sendo exemplo maior de todos os anteriormente ilustrados, o pavão macho que ao espanar em glória a sua bela cauda em leque, deixa a fêmea e o mundo prostrados a seus pés.

É uma lei irrefutável, a dos seres perfeitos, por vezes feios de existir e de serem arbitrários, mas não as há justas, ou injustas, ou boas, ou más, são como são, porque existem fora dos seres tendo no entanto sido inventadas por eles.

Desconfia-se que na fila de espera dos portões celestiais, todos os dias e noites na romaria de gente imensa a aguardar recenseamento para entrada obrigatória na última morada, os mais belos ganham prioridades e mordomias. Nisto até os deuses são humanos, como os humanos. Como pode alguém resistir a um rosto perfeito?

Quem é assim, belo, anda pela vida endeusado, desfilando sem nunca vir a ter necessidade de se baixar para atacar os sapatos, tem sempre quem lho faça, agradecendo ainda o privilégio de poder prestar voluntariamente esse serviço, uma honra.

Menos simpático, é para os que não têm essa sorte, e não se conforma, uma moinha permanente, sempre a remoer o infortúnio, uma pequena inveja, às vezes enorme, de uma distribuição mal distribuída, a quem tocou o lado oposto na moeda do belo. Quem não lhe tocou tem pouca escolha: ou aceita – a maioria – ou tem a interessante possibilidade, em treinando com afinco, de vir a tornar-se num ser de grande manha, um inconformado, que se alimenta do fel da raiva gerada internamente, sua, companheira de noites de insónia, a orquestrar a vingança, um plano bem pensado de consolação futura, um dia, quando a ideia estiver convenientemente madura para se pôr em acção o golpe de misericórdia, dos desafortunados.

Uma das formas de sublimação é partir à conquista dos poderes na terra, conquistar a pulso e nem sempre honestidades de menino de coro. O poder é a maior das ambições, pode dominar tudo, pode mesmo transformar a rudeza dos ângulos de uma cara, porque pode.

Repulsivos, indignos, vis, indecorosos, torpes, abjectos, desprezíveis, sórdidos, é escolher o caminho.

Conta-se hoje a história de um deles, um ser que se transformou, que da sua insignificância, conseguiu o poder maior: a decisão de escolher sem nenhum impedimento, por uma ou outra das vitimas.

O mosquito, animal de fraca reputação, pouco amado, que não é dos mais bonitos e que junta à sua aparência um caracter de ética duvidosa, a fazer orelhas surdas – se as tem - ao que se dizem ser os sentimentos nobres.

Culicidae é o nome de família, em vernáculo corrente dão pelo nome de mosquitos e pernilongos. As suas fêmeas são melgas. Ambos têm um par de asas e um par de halteres. Pertencem à classe dos parasitas – sugadores do alheio -, o que de si não é uma apresentação agradável, mas alguém tem que representar esse papel, para haver lugar ao contraponto na diversidade das espécies.

Andam por cá há cento e setenta milhões de anos e cada vez há mais. Dizem os entendidos que sobreviverão aos futuros holocaustos na Terra, muito para além dos homens, os únicos seres conhecidos com capacidade de auto-destruição total e pelos vistos bastante empenhados nesse projecto.

Esta história aconteceu não há muito – medição que depende da paciência que cada um tem para o tempo -, para uns o tempo do piscar de um vaga-lume é uma eternidade, para outros é um instantâneo depreciado como tempo, um fogacho.

Diga-se que aconteceu quando já se contavam histórias, havia mitos,e a natureza estava composta e completa de todos os animais, do herbário que é dado admirar hoje e dos minerais que compõem as estruturas sólidas do planeta.

O cenário não é efectivamente dos mais bonitos. Ainda não começando a narração e a dar-se já a volta ao texto, retorcê-lo, criando ângulos, pô-lo inclinado. Mal na página primeira se enumera o belo, fala-se logo na feiura.

É assim, tinha que se dizer que o cenário é efectivamente de uma pestilência que não se pode ilustrar num livro, dada a incapacidade olfativa das palavras que se escrevem, que a serem bem ditas, aproximam como muito o pensamento do cheiro que se quer ilustrar, pouco mais longe vão, não tem plenas qualidades. Também as palavras são incompletas.

O cenário dispõe-se numa zona de terras pantanosas, a perder de vista. É um pântano, mas abastado de cores, com encadeamentos subtis de luz-penumbra. O sítio é habitado por animais grandes e pequenos e alguns irrelevantes que não se vão dizer. É, pois, um pequeno mundo repleto de uma quantidade suficiente de seres em diversidade bastante para comporem uma sociedade organizada.

Nos fins de dia, quando o sol se põe nas suas facécias de que vai desaparecer ou ainda não, nas diatribes conhecidas por lusco-fusco, ou nas solenidades de representar uma morte simbólica, os animais de grande porte dão-se a ver, aparecendo lentamente majestosos nas margens do pântano, regressados dos afazeres diurnos do sobreviver, que pode ter sido dormir o dia inteiro, protegidos dos calores e ganhando energia para as caçadas da noite, (que não são trabalhos, esses só para os homens) ávidos de saciarem as sedes, despreocupados por não terem perigos a quem cuidar atenção ou desconfiança. Podem beber à vontade sem serem incomodados por ninguém, menos pelo mosquito. Não sabem eles que está nos minúsculos, nos que nem se dá conta pela insignificância do tamanho, o poder absoluto da destruição.

Deixam-se assim ficar por ali, bebendo e banhando-se deliciadamente, porque estes animais de grande porte, apesar de selvagens também se deliciam. É a sua hora feliz. 

Exceptuando estes breves períodos em que é o local mais frequentado da selva, o pantanal é o habitáculo dos seres do pantanal, e está tudo dito, sabendo-se por associação de ideia automática que os seus habitantes são os répteis e os insectos, que se dão bem em territórios húmidos e dúbios. 

Não se contam para o recenseamento os seres mais pequenos que a cabeça de um dedo, que não figuram na estatística dos habitantes dos pântanos, nem têm papel atribuído numa história de amor.

Para se dizer com toda honestidade e que eles não estão aqui para ouvir, o pântano é uma zona de caos permanente, impregnada de vilanagem e golpes nas partes baixas. Numa escala oficial dos seres do universo – nunca actualizada -, os répteis e os insectos não são os melhores classificados quanto à nobreza de comportamentos, mas isso também pode ser um preconceito.

Diz-se que nas melhores posições estão os homens, não porque sejam os mais falsos, vis e podres, e que não tenham toda a depreciação que se possa imaginar. Estão no pódio porque são os únicos que têm a possibilidade do arrependimento das culpas - uma clarividência fugaz que volta a alinhar alguns no caminho da temperança - sempre a limparem as nódoas da camisa para não deixar marca.

Uns praticam actos de contrição, outros prestam contas com a sua consciência. Poucos chegam a santos – não se querem santos, querem-se homens - há pedestais por ocupar nos altares das igrejas. A maioria não quer saber, nem da contrição nem da consciência, só quer viver que é o que têm mais à mão, para se distraírem de si mesmos.

Os outros animais não têm essa capacidade, da escolha, a merecerem-na de igual maneira, mas porque foram feitos por deus assim, inferiores na escala dos humanos, fica-lhes mais cómodo, desresponsabiliza-os dos actos de índole duvidosa, que se os praticarem tem desculpa imediata, por não serem conscientes do que fizeram, não tendo portando o dom, que é um dom, da culpa.

Centremo-nos na história: o dia-a-dia deste lugar decorre com episódios menos edificantes mas a população local está habituada, o seu universo continua a expandir-se sem dores de cabeça, seguindo levianamente ou não as directrizes recebidas no big-bang, o dia em que toda esta trapalhada começou.

Chega agora o momento da entrada do personagem principal, ele entra. Gosta de dar nas vistas. Entra em grande estilo. Quiseram atribuir-lhe um nome, mas sendo mosquito não se vê um nome adequado. Soaria ridículo um nome dado a um mosquito. Por conveniência fica conhecido como o Senhor mosquito, para ser distinguível dos outros, e dada a sua grande vontade e motivação pela elevação, como se verá de seguida, chamar-se Senhor é um bom começo de história.

Para facilitar o entendimento do desfecho, da derradeira palavra a ser dita nesta primeira narrativa do amor incondicional, é forçoso, com as desculpas de atrasar a curiosidade do andamento da narração, voltar atrás.

Quando ele nasceu era um ser naturalmente feio (só os pais das criaturas, e possivelmente também os avós, conseguem achar os seus filhos, netos, no momento imediato a serem paridos, como seres lindos.Roxos, enrugados, escamados, berrantes, mas lindos.) e assim continuou na infância e por aí fora, ninguém tinha culpa disso, era da linhagem. Desde esse primeiro dia em que abriu os olhos e foi o mundo que se assustou de o ver e não ele, não melhorou em nada a sua aparência. O que é bastante constrangedor: não melhorar em nada. Não era irrevogavelmente feio, era feio. Até porque irrevogável é um atributo que não se põe, porque o poder, põe-no no bolso e amarfanha-o enquanto o demo pestaneja.

Esta condição foi o ingrediente principal de uma revolta interior, contida em panela de pressão: a válvula sempre a chiar, libertando a quantidade necessária de energia para que a tampa não saltasse, mas sempre na expectatica de extravasar, e num repente de pressão descontrolada, vir a explodir num momento imprevisto. Sendo um indivíduo inteligente, disfarçou o seu mal-estar que era uma aparência, que era uma raiva, mas nunca desculpou os outros por serem mais belos do que ele – tivessem alguma culpa nisso -, por se sentir grotesco na imagem que recebia reflectida quando se confrontava com um espelho, objecto que veio cedo a abolir do convívio dos seus olhos.

Sendo, pois, em sofrimento feio, que rumo dar à vida? O que se pode ser, sendo feio? Pergunta a pedir mais nutrientes e argumentos do intelecto pensador, um aprofundamento do estudo filosófico, mais além, em comparação, lado a lado, da quase banal e demasiado repetida questão que incomoda alguns homens: porque sou?

Refugiar-se numa doença psicológica, começar a alimentá-la a partir do momento da revelação, entregando-se a esse facto incontornável, do asco de se ver ao espelho? Seria uma desculpa para ser um coitadinho, digno de pena, talvez conseguir assim e para toda a vida uma protecção, um colo amigo. Há quem vá por aí e não se dê mal.

Encerrar-se numa redoma criada por si, um castelo com paredes altas para se defender do lá fora, remoendo e apurando-se o tempo todo no cultivo proficiente e esmerado do ódio, da raiva ácida, da inveja? Destilando-os num alambique inventado por si?

Ou então e porque não, acreditar num papel redentor, escolher um tema para representar na vida, uma missão, e dedicar-se a ela a tempo inteiro, vir a sobressair em glória, uma saída em ombros, num mundo que nunca esteve à sua espera, que não se lembra de saber da sua existência, mas que ficará esmagado no dia em que ele pisar pela primeira vez a passadeira vermelha, nasceu um novo actor principal?

Os que são de índole psicótica (doentios e frouxos) são geralmente ser inofensivos e só causam danos a si próprios. Ou podem vir a causar grandes estragos. Os primeiros não se distinguem da população em geral, capaz esta de ser igual aos segundos em momentos de manipulação de massa, conseguidos por excelentes prestidigitadores, que aparecem no palco esporadicamente na história universal dos homens.

Diga-se que a manipulação é uma ciência bastante complicada, praticada por uma elite de muito poucos e que consegue resultados muito interessantes, que a sociologia e a antropologia , e a politologia, e tantas outras tentam explicar, não sem a ajuda indispensável da psicologia e outras ciências respeitados do comportamento. A manipulação, é como se vê uma actividade multidisciplinar.

Quando os psicóticos e os da redoma constituem-se dentro do mesmo ser, misturando-se em partes diferentes ou iguais, formam seres muito perigosos. Geralmente procuram riquezas, famas, faíscam pelo poder: o mais forte e adictivo afrodisíaco humano.

Que belas histórias se conhecem de ditadores antigos, de marechais, de grandes industriais e banqueiros (que neste pântano também há estas profissões, mas com outros nomes, que se chamam assim para facilitar), todos saídos desse cadinho da feiura, que lentamente os cozinhou, apaladou, até os servir com esplendor e brilho nas mais finas das baixelas.

O nosso Senhor mosquito foi dos que fez a opção de ter uma missão e tinha esse carácter misto atrás referido. Correr atrás de uma causa, agarrá-la, fazê-la sua, empunhar o dedo indicador para mudar o mundo, não é nobre, é de desmanchar em lágrimas qualquer um, embevecer todas as mães de todos os filhos que querem ser assim, o que aplaina no respeito e reverência todos os que os cercam, cercados que estão de um ser eleito.

O mosquito deste episódio, teve uma formação muito competente e de qualidade. Escolheu os melhores mestres, imbuiu-se de todos os ensinamentos sobre o poder, viu e reviu mil e uma vezes as histórias dos grandes e poderosos passados e presentes que foram os seus ídolos. E aprendeu a picar convictamente, como eles, a acertar nos alvos com boa pontaria, e a desenvolver uma capacidade de sucção totalmente eficaz, para bom aproveitamento dos sucos das suas involuntárias e incautas vítimas.

Não se pense que os mosquitos são seres promíscuos e por essa razão estapafúrdia contaminam os outros seres que parasitam. Pelo contrário, são cuidadosos na forma como executam a sua tarefa. O problema está em que, sendo ávidos e insaciáveis, saltam de presa em presa, sem tempo nem preocupação pela higienização do seu instrumento de trabalho, e transmitem assim todo o tipo de venenos virais que acabam por debilitar os sugados, mirrando-os de tudo, e vitalidade.

Não se sabe como, mas veio no código genético do Senhor mosquito a ordem para ser um indivíduo particularmente apetente pelos seres belos e aqui já se percebe o preâmbulo que se estava a pôr difícil. Ou seja e traduzindo, ele somente deposita a sua incisiva picadela sugadora nos seres portadores de beleza física evidente, sejam grandes ou pequenos (coisa devida aos achaques psicanalíticos que o acompanham de pequeno).

A sua vingança, a sua razão de ser, a obra que que o anima: destruir todos os belos.

Quando estas coisas são assim, estar condicionado a não se sabe que forças, um impulso, uma contingência da acção, ser obrigado a fazer sem justificação que se possa pôr na mesa, não há fugas ao destino – dos deterministas. Para os mais sonhadores é o fado, que aceita maior subjectividade - que prega partidas que não lembra ao simpático do demónio.

Se o mosquito carrega esse fardo, herança de um ascendente passado, problema seu, mesmo desconhecendo, ele pode alterar o rumo das suas decisões, porque tem a opção da escolha, está escrito nos manuais dos optimistas.

Acontece que este mosquito não é homem - não altera as coisas por vontade sua - e independentemente do destino, não é “flor a que se chegue o nariz” - como se diz.

Integrando o seu plano de vingança, ele procurou desde jovem a companhia e ensinamento de um grupo de interesses comuns: uma claque com propósitos. Havia outros como ele e acabou por encontrar o seu grupo. Por lá marinou desenvolvendo, aprendendo e treinando competências futuras de predador, inebriando do sentimento de posse, primeiro em pequenas doses, e na medida em que o hábito entranhou e começou a pedir mais, aumentando a dose até que todos os meios para atingir os fins dos prazeres efémeros que dão as alucinações de altas doses de poder, passaram a ser irrelevantes.

Esta colectividade altamente selectiva e fechada dedica-se somente a assuntos do poder, seja ele qual for. Eles treinam as suas competências para terem poder e exercê-lo de forma cada vez mais autoritária. E como conseguem isso? Picando certeiramente nos alvos, absorvendo os seus conteúdos para se alimentarem deles, e deixando uma marca: um veneno insidioso e lento que acaba por se difundir a todas as partes dos corpos vazando os conteúdos e as vontades das vidas dos hospedeiros.

Não há em todo o pântano, nem nas terras secas que o circundam, animal por mais poderoso que seja, no porte, no caminhar subtil ou estrondoso sobre a terra que pisa, no som cavernoso e grave que emite a marcar o território, a assustar os seus rivais sexuais, que não seja uma presa fácil, acabando todos por perecer vitimas destes minúsculos e repelentes seres, verdadeiros vampiros do sangue alheio.

Este mosquito em especial, o Senhor, é um exemplo maior para todos os seguidores e associados destes grupos de influências reais. De todos, é quem conseguiu ir mais longe.
Ele não quer só o governo absoluto, quer mais do que isso: quer o lugar dos deuses, ser deus, os únicos seres que lhe faltam dominar, e que ainda sonha, nesses ímpetos compulsivos poder vir a conseguir, e depois de ter conquistado tudo ser o rei sol da vastidão do pântano.

Este amor (é estranho chamar-lhe assim, é o primeiro nível de amor descrito neste livro. É um amor que não tem um fim, um ponto final. Quem se une por laços de amor ao poder, não se divorcia, pelo contrário, aprofunda cada vez mais a relação, quer mais e mais, sem limite, sem sossego.

É um amor incondicional, talvez o mais solitário de todos, já que se baseia numa ilusão, um inconseguimento, uma utopia irrealizável, nunca se vai conseguir o poder todo sobre todos, mas é precisamente esse desvario que alimenta ainda mais esse amor doentio, no entanto repita-se,incondicional.

Haverá sempre mais poder do que o poder que se pode ter e os seus servos sabem disso, daí estar explicado o estranho olhar vazio que emana dos seus olhos ausentes de calor, um olhar que não é olhar, senão a confirmação que não se pode esconder da sua impotência e frustração.

Não se conseguir ser mais do que senhor do mundo, é a mais cruel das desilusões.

“Não quero o mundo, quero vê-lo de joelhos.”

E depois, quando todos estiverem prostrados,na posição comprometedora e triste de rastejantes, o que se pode querer mais?

Palavra puxa a palavra, pede outra, vêm acompanhadas, num instante, é um rio rebelde delas, a passarem pelas pontes, e,

Diferenças? Não. Talvez o olhar. Tinha um olhar vago, é isso. Mas um olhar vago pode também ser melancolia, ou limitação. Será outro nome que agora não ocorre, vago não encaixa, é um mais do que ausente. Numa primeira apreciação descuidada era a única coisa que o distinguia, quase indelevelmente. Estando muito atento e olhando-o pormenorizadamente, percebia-se que os olhos estavam a dizer coisas diferentes do corpo – não era portanto ausente - este de uma rigidez adquirida, sob o comando de uma força de vontade inabalável, um comando interior a manter um ser codificado para não transparecer nada de relevante, que possa levar o interlocutor a vislumbrar uma emoção, um indício de alma, e com isso haver risco de ganhar alguma confiança para tentar uma aproximação, uma intimidade, gerando fraqueza, perda de poder sobre o outro, a situação.

Nada, os olhos dizem nada, impenetráveis e muito frios. Mas não é só isso. Um olhar vago não chega. Para nos dar essa pista tem que ser um olhar sugador, que seque a vida do olhado, tome posse dele sem ser convidado. Encantatório, hipnotizante. É o olhar da besta - um esgar - esse instante de olhar, em que a vítima viva, percebe nos olhos do carrasco que vai morrer às suas mãos.

É sempre no olhar que se percebe, se apanha, se entende toda a linguagem e todas as pequenas subtilezas que não se conseguem introduzir nas palavras que se dizem e se desenham nos papéis. O olhar é a janela dos pensamentos mais subtis, que escapam por aí sem terem que dizer nada. Nem prestarem contas à palavra. É o ponto de fuga dos pensamentos mais rebeldes, indomáveis, insubmissos, com o potencial de nos estilhaçarem em mil e uma fracções irrecuperáveis de já não nós.

A família é uma escravidão eterna, e o que tem a ver com esta conversa? Está fora da opção de escolha, acaba sempre por fazer valer os seus argumentos finais. Os homens mesmo passando toda a vida a contrariar os genes, a um momento dado transformam-se na imitação perfeita dos seus pais, penetram-se deles. É no dia e só nesse, que os pais morrem, que os filhos ganham apelido próprio, que se transmite o testemunho para os filhos, por aí a fora.

É uma inevitabilidade para o bem e para o mal. A patina, não passa de uma camada fina que desaparece facilmente com um sopro mais forte, não fica nada do que se queria ser, a não ser cumprir a contragosto ou não, as assinaturas apostas no bilhete de identidade.

Teve uma infância em berço de ouro, uma educação sem esquinas, arredondada, sem espaço para imprevistos, tudo seguiu o fluxo esperado, igual ao que tinha sido com os seus pais, os avós, os pais destes… reverência, respeito, aceitação.
A tradição nunca se questiona, cumpre-se.

Desta vez falamos de um homem, abandonámos o pântano.

Mas é um homem em todas as coisas igual ao senhor mosquito. A diferença está em que usa uma gravata todos os dias, escondida anemicamente por um fato cinzento, exemplarmente confecionado. Anémica que custa caro e tem uma marca.

Não há lembrança nem registos de um sorriso. Os músculos da face estiveram sempre vincados, tensão máxima. Nunca assumiu a paternidade de uma palavra sem a ter pensado apuradamente, deixada a marinar, filtrada e purificada vezes sem conta, antes de a dizer. Foi conscientemente avaro nos adjectivos. Dos muitos discursos nada se tira das palavras, muitas escritas pelos assessores, seguidores de imitação sua, querendo ser ele, como ele, sucessores, um dia, dele. Deserto, seco, sem sombras, num sol escaldante, impróprio. Infértil. Usou-as somente para acautelar as anteriormente ditas, colando-as com o cimento de pontuações formais. Construiu um muro de palavras. Também é possível. O mais rijo e forte de todos, não há balas que os derrubem.

Gastou os créditos da sua vida fincando-se no poder e a usar as palavras para se proteger dos danos das suas arbitrariedades.

Tecedor exemplar das teias que criam dívidas porque se fez um favor, enredou o mundo na dívida de si. E quando sentiu em intuição que todos estavam presos aos fios, tomou conta do mundo. Foi um ditador, mas em inteligência: foi um ditador democrata. A grande fraude-patranha que todos caem, julgando-se livres. Distraem-se nessas brincadeiras e abrem portas a uma prisão maior e mais vasta, ainda assim uma prisão.

Terminou a carreira em grande estilo, este tipo de homens terminam sempre em endeusamento, como o mosquito, dos pântanos.

Este por ser o primeiro na enumeração faz as honras do assunto, talvez não pelas melhores razões. É o amor da posse, um dos mais territoriais (o do colecionador também). É uma coisa, um impulso de quem não ama, o que não deixa de ser um amor, e dos fortes.


Do amor incondicional, do poder, é o primeiro deste índice, a partir de aqui vai em crescendo, rasgando mais o sulco, até ao episódio final, o mais glorioso de todos. Também o mais belo. 


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