Nesta pluralidade que é a natureza, nesta obra dos acasos ou de
causas superiores insondáveis, há seres cuja beleza cativa o mundo. A beleza é
o argumento mais forte do poder. Dança à sua volta, danças do ventre, sensuais,
húmidas, viciantes. Sabe rodeá-lo e tecer a sua teia invisível mas inquebrável,
ata-o de mãos e pés, imobiliza, inteiramente hipnotizado.
Perante a força irracional que irrompe de uma obra sinfónica,
para pôr um exemplo de beleza superior, o homem baixa as defesas, entrega a sua
sorte no embalo da música, extasiando-se é levado por essa torrente de emoções.
Os efeitos dessa mistura explosiva, do casamento da beleza com o
poder leva os seres a atitudes que não se alcança imaginar, coisas fora da lógica.
Práticas do bem e o mal, sem noção, do bem e do mal, coisa subjectiva que leva
por vezes a equilíbrios no fio da navalha.
O aparecimento fugaz de um tigre listrado, meio visto, meio escondido
no restolho dos arbustos, hipnotiza quem o vê e olha, no simples vislumbre da
sua perfeição, e mesmo sendo uma presa e sabendo logo que vai morrer, deixa-se
ir porque é assim o seu destino, e um tigre listrado é um ser de uma beleza
superior a quem não se pode negar nada.
Uma águia-real que plana sustida pelas suas asas enormes,
negras, mas asas perfeitas, na antecipação da caçada que não é cruel por ser
justa na índole da águia que o faz somente para se alimentar, e deixa
estarrecidas em terra as alimárias, não por medo, mas pela admiração dessa
beleza em estado puro, ondeando nas alturas de céus luminosos, esperando que em
voo picado, esse ser alado vindo dos céus, um deus, se abata mortalmente sobre
si.
Estando atentos, os olhos tropeçam em muitos exemplos destes,
nos arrebatamentos do belo. E é necessário que haja um ser mais feio, menos
completo, muitos assim, para que se possa admirar sem nenhuma condição prévia
ou posterior, os seres que são a beleza no estado puro, os já ditos, e outros
tantos que habitam a enciclopédia da natureza.
Como causa desses efeitos alucinogénios, o espanto, o fascínio,
o enamoramento imediato, e como em todos os lugares nos planetas habitados em
galáxias desconhecidas, é assim que as coisas são: os seres naturalmente belos
dominam os menos vistosos, sendo exemplo maior de todos os anteriormente ilustrados,
o pavão macho que ao espanar em glória a sua bela cauda em leque, deixa a fêmea
e o mundo prostrados a seus pés.
É uma lei irrefutável, a dos seres perfeitos, por vezes feios de
existir e de serem arbitrários, mas não as há justas, ou injustas, ou boas, ou más,
são como são, porque existem fora dos seres tendo no entanto sido inventadas
por eles.
Desconfia-se que na fila de espera dos portões celestiais, todos
os dias e noites na romaria de gente imensa a aguardar recenseamento para
entrada obrigatória na última morada, os mais belos ganham prioridades e
mordomias. Nisto até os deuses são humanos, como os humanos. Como pode alguém
resistir a um rosto perfeito?
Quem é assim, belo, anda pela vida endeusado, desfilando sem
nunca vir a ter necessidade de se baixar para atacar os sapatos, tem sempre quem
lho faça, agradecendo ainda o privilégio de poder prestar voluntariamente esse
serviço, uma honra.
Menos simpático, é para os que não têm essa sorte, e não se
conforma, uma moinha permanente, sempre a remoer o infortúnio, uma pequena
inveja, às vezes enorme, de uma distribuição mal distribuída, a quem tocou o
lado oposto na moeda do belo. Quem não lhe tocou tem pouca escolha: ou aceita –
a maioria – ou tem a interessante possibilidade, em treinando com afinco, de
vir a tornar-se num ser de grande manha, um inconformado, que se alimenta do
fel da raiva gerada internamente, sua, companheira de noites de insónia, a
orquestrar a vingança, um plano bem pensado de consolação futura, um dia,
quando a ideia estiver convenientemente madura para se pôr em acção o golpe de
misericórdia, dos desafortunados.
Uma das formas de sublimação é partir à conquista dos poderes na
terra, conquistar a pulso e nem sempre honestidades de menino de coro. O poder
é a maior das ambições, pode dominar tudo, pode mesmo transformar a rudeza dos
ângulos de uma cara, porque pode.
Repulsivos, indignos, vis, indecorosos, torpes, abjectos,
desprezíveis, sórdidos, é escolher o caminho.
Conta-se hoje a história de um deles, um ser que se transformou,
que da sua insignificância, conseguiu o poder maior: a decisão de escolher sem nenhum
impedimento, por uma ou outra das vitimas.
O mosquito, animal de fraca reputação, pouco amado, que não é
dos mais bonitos e que junta à sua aparência um caracter de ética duvidosa, a
fazer orelhas surdas – se as tem - ao que se dizem ser os sentimentos nobres.
Culicidae é o nome
de família, em vernáculo corrente dão pelo nome de mosquitos e pernilongos. As
suas fêmeas são melgas. Ambos têm um par de asas e um par de halteres.
Pertencem à classe dos parasitas – sugadores do alheio -, o que de si não é uma
apresentação agradável, mas alguém tem que representar esse papel, para haver
lugar ao contraponto na diversidade das espécies.
Andam por cá há cento e setenta milhões de anos e cada vez há
mais. Dizem os entendidos que sobreviverão aos futuros holocaustos na Terra,
muito para além dos homens, os únicos seres conhecidos com capacidade de auto-destruição
total e pelos vistos bastante empenhados nesse projecto.
Esta história aconteceu não há muito – medição que depende da
paciência que cada um tem para o tempo -, para uns o tempo do piscar de um
vaga-lume é uma eternidade, para outros é um instantâneo depreciado como tempo,
um fogacho.
Diga-se que aconteceu quando já se contavam histórias, havia
mitos,e a natureza estava composta e completa de todos os animais, do herbário
que é dado admirar hoje e dos minerais que compõem as estruturas sólidas do
planeta.
O cenário não é efectivamente dos mais bonitos. Ainda não começando
a narração e a dar-se já a volta ao texto, retorcê-lo, criando ângulos, pô-lo
inclinado. Mal na página primeira se enumera o belo, fala-se logo na feiura.
É assim, tinha que se dizer que o cenário é efectivamente de uma
pestilência que não se pode ilustrar num livro, dada a incapacidade olfativa
das palavras que se escrevem, que a serem bem ditas, aproximam como muito o
pensamento do cheiro que se quer ilustrar, pouco mais longe vão, não tem plenas
qualidades. Também as palavras são incompletas.
O cenário dispõe-se numa zona de terras pantanosas, a perder de
vista. É um pântano, mas abastado de cores, com encadeamentos subtis de
luz-penumbra. O sítio é habitado por animais grandes e pequenos e alguns
irrelevantes que não se vão dizer. É, pois, um pequeno mundo repleto de uma
quantidade suficiente de seres em diversidade bastante para comporem uma
sociedade organizada.
Nos fins de dia, quando o sol se põe nas suas facécias de que
vai desaparecer ou ainda não, nas diatribes conhecidas por lusco-fusco, ou nas
solenidades de representar uma morte simbólica, os animais de grande porte
dão-se a ver, aparecendo lentamente majestosos nas margens do pântano,
regressados dos afazeres diurnos do sobreviver, que pode ter sido dormir o dia
inteiro, protegidos dos calores e ganhando energia para as caçadas da noite,
(que não são trabalhos, esses só para os homens) ávidos de saciarem as sedes,
despreocupados por não terem perigos a quem cuidar atenção ou desconfiança. Podem
beber à vontade sem serem incomodados por ninguém, menos pelo mosquito. Não
sabem eles que está nos minúsculos, nos que nem se dá conta pela
insignificância do tamanho, o poder absoluto da destruição.
Deixam-se assim ficar por ali, bebendo e banhando-se
deliciadamente, porque estes animais de grande porte, apesar de selvagens
também se deliciam. É a sua hora feliz.
Exceptuando estes breves períodos em
que é o local mais frequentado da selva, o pantanal é o habitáculo dos seres do
pantanal, e está tudo dito, sabendo-se por associação de ideia automática que
os seus habitantes são os répteis e os insectos, que se dão bem em territórios
húmidos e dúbios.
Não se contam para o recenseamento os seres mais pequenos que
a cabeça de um dedo, que não figuram na estatística dos habitantes dos
pântanos, nem têm papel atribuído numa história de amor.
Para se dizer com toda honestidade e que eles não estão aqui
para ouvir, o pântano é uma zona de caos permanente, impregnada de vilanagem e
golpes nas partes baixas. Numa escala oficial dos seres do universo – nunca
actualizada -, os répteis e os insectos não são os melhores classificados
quanto à nobreza de comportamentos, mas isso também pode ser um preconceito.
Diz-se que nas melhores posições estão os homens, não porque
sejam os mais falsos, vis e podres, e que não tenham toda a depreciação que se
possa imaginar. Estão no pódio porque são os únicos que têm a possibilidade do
arrependimento das culpas - uma clarividência fugaz que volta a alinhar alguns
no caminho da temperança - sempre a limparem as nódoas da camisa para não
deixar marca.
Uns praticam actos de contrição, outros prestam contas com a sua
consciência. Poucos chegam a santos – não se querem santos, querem-se homens -
há pedestais por ocupar nos altares das igrejas. A maioria não quer saber, nem
da contrição nem da consciência, só quer viver que é o que têm mais à mão, para
se distraírem de si mesmos.
Os outros animais não têm essa capacidade, da escolha, a
merecerem-na de igual maneira, mas porque foram feitos por deus assim,
inferiores na escala dos humanos, fica-lhes mais cómodo, desresponsabiliza-os
dos actos de índole duvidosa, que se os praticarem tem desculpa imediata, por não
serem conscientes do que fizeram, não tendo portando o dom, que é um dom, da
culpa.
Centremo-nos na história: o dia-a-dia deste lugar decorre com
episódios menos edificantes mas a população local está habituada, o seu
universo continua a expandir-se sem dores de cabeça, seguindo levianamente ou
não as directrizes recebidas no big-bang, o dia em que toda esta trapalhada começou.
Chega agora o momento da entrada do personagem principal, ele
entra. Gosta de dar nas vistas. Entra em grande estilo. Quiseram atribuir-lhe
um nome, mas sendo mosquito não se vê um nome adequado. Soaria ridículo um nome
dado a um mosquito. Por conveniência fica conhecido como o Senhor mosquito,
para ser distinguível dos outros, e dada a sua grande vontade e motivação pela
elevação, como se verá de seguida, chamar-se Senhor é um bom começo de
história.
Para facilitar o entendimento do desfecho, da derradeira palavra
a ser dita nesta primeira narrativa do amor incondicional, é forçoso, com as
desculpas de atrasar a curiosidade do andamento da narração, voltar atrás.
Quando ele nasceu era um ser naturalmente feio (só os pais das
criaturas, e possivelmente também os avós, conseguem achar os seus filhos,
netos, no momento imediato a serem paridos, como seres lindos.Roxos, enrugados,
escamados, berrantes, mas lindos.) e assim continuou na infância e por aí fora,
ninguém tinha culpa disso, era da linhagem. Desde esse primeiro dia em que
abriu os olhos e foi o mundo que se assustou de o ver e não ele, não melhorou em
nada a sua aparência. O que é bastante constrangedor: não melhorar em nada. Não
era irrevogavelmente feio, era feio. Até porque irrevogável é um atributo que
não se põe, porque o poder, põe-no no bolso e amarfanha-o enquanto o demo
pestaneja.
Esta condição foi o ingrediente principal de uma revolta
interior, contida em panela de pressão: a válvula sempre a chiar, libertando a
quantidade necessária de energia para que a tampa não saltasse, mas sempre na
expectatica de extravasar, e num repente de pressão descontrolada, vir a explodir num
momento imprevisto. Sendo um indivíduo inteligente, disfarçou o seu mal-estar
que era uma aparência, que era uma raiva, mas nunca desculpou os outros por
serem mais belos do que ele – tivessem alguma culpa nisso -, por se sentir
grotesco na imagem que recebia reflectida quando se confrontava com um espelho,
objecto que veio cedo a abolir do convívio dos seus olhos.
Sendo, pois, em sofrimento feio, que rumo dar à vida? O que se
pode ser, sendo feio? Pergunta a pedir mais nutrientes e argumentos do
intelecto pensador, um aprofundamento do estudo filosófico, mais além, em
comparação, lado a lado, da quase banal e demasiado repetida questão que
incomoda alguns homens: porque sou?
Refugiar-se numa doença psicológica, começar a alimentá-la a
partir do momento da revelação, entregando-se a esse facto incontornável, do
asco de se ver ao espelho? Seria uma desculpa para ser um coitadinho, digno de
pena, talvez conseguir assim e para toda a vida uma protecção, um colo amigo. Há
quem vá por aí e não se dê mal.
Encerrar-se numa redoma criada por si, um castelo com paredes
altas para se defender do lá fora, remoendo e apurando-se o tempo todo no
cultivo proficiente e esmerado do ódio, da raiva ácida, da inveja? Destilando-os
num alambique inventado por si?
Ou então e porque não, acreditar num papel redentor, escolher um
tema para representar na vida, uma missão, e dedicar-se a ela a tempo inteiro, vir
a sobressair em glória, uma saída em ombros, num mundo que nunca esteve à sua
espera, que não se lembra de saber da sua existência, mas que ficará esmagado no
dia em que ele pisar pela primeira vez a passadeira vermelha, nasceu um novo
actor principal?
Os que são de índole psicótica (doentios e frouxos) são
geralmente ser inofensivos e só causam danos a si próprios. Ou podem vir a
causar grandes estragos. Os primeiros não se distinguem da população em geral, capaz
esta de ser igual aos segundos em momentos de manipulação de massa, conseguidos
por excelentes prestidigitadores, que aparecem no palco esporadicamente na
história universal dos homens.
Diga-se que a manipulação é uma ciência bastante complicada,
praticada por uma elite de muito poucos e que consegue resultados muito interessantes,
que a sociologia e a antropologia , e a politologia, e tantas outras tentam
explicar, não sem a ajuda indispensável da psicologia e outras ciências
respeitados do comportamento. A manipulação, é como se vê uma actividade
multidisciplinar.
Quando os psicóticos e os da redoma constituem-se dentro do
mesmo ser, misturando-se em partes diferentes ou iguais, formam seres muito
perigosos. Geralmente procuram riquezas, famas, faíscam pelo poder: o mais
forte e adictivo afrodisíaco humano.
Que belas histórias se conhecem de ditadores antigos, de
marechais, de grandes industriais e banqueiros (que neste pântano também há
estas profissões, mas com outros nomes, que se chamam assim para facilitar),
todos saídos desse cadinho da feiura, que lentamente os cozinhou, apaladou, até
os servir com esplendor e brilho nas mais finas das baixelas.
O nosso Senhor mosquito foi dos que fez a opção de ter uma
missão e tinha esse carácter misto atrás referido. Correr atrás de uma causa,
agarrá-la, fazê-la sua, empunhar o dedo indicador para mudar o mundo, não é
nobre, é de desmanchar em lágrimas qualquer um, embevecer todas as mães de
todos os filhos que querem ser assim, o que aplaina no respeito e reverência
todos os que os cercam, cercados que estão de um ser eleito.
O mosquito deste episódio, teve uma formação muito competente e
de qualidade. Escolheu os melhores mestres, imbuiu-se de todos os ensinamentos
sobre o poder, viu e reviu mil e uma vezes as histórias dos grandes e poderosos
passados e presentes que foram os seus ídolos. E aprendeu a picar
convictamente, como eles, a acertar nos alvos com boa pontaria, e a desenvolver
uma capacidade de sucção totalmente eficaz, para bom aproveitamento dos sucos
das suas involuntárias e incautas vítimas.
Não se pense que os mosquitos são seres promíscuos e por essa
razão estapafúrdia contaminam os outros seres que parasitam. Pelo contrário,
são cuidadosos na forma como executam a sua tarefa. O problema está em que,
sendo ávidos e insaciáveis, saltam de presa em presa, sem tempo nem preocupação
pela higienização do seu instrumento de trabalho, e transmitem assim todo o
tipo de venenos virais que acabam por debilitar os sugados, mirrando-os de
tudo, e vitalidade.
Não se sabe como, mas veio no código genético do Senhor mosquito
a ordem para ser um indivíduo particularmente apetente pelos seres belos e aqui
já se percebe o preâmbulo que se estava a pôr difícil. Ou seja e traduzindo,
ele somente deposita a sua incisiva picadela sugadora nos seres portadores de
beleza física evidente, sejam grandes ou pequenos (coisa devida aos achaques
psicanalíticos que o acompanham de pequeno).
A sua vingança, a sua razão de ser, a obra que que o anima:
destruir todos os belos.
Quando estas coisas são assim, estar condicionado a não se sabe
que forças, um impulso, uma contingência da acção, ser obrigado a fazer sem
justificação que se possa pôr na mesa, não há fugas ao destino – dos
deterministas. Para os mais sonhadores é o fado, que aceita maior
subjectividade - que prega partidas que não lembra ao simpático do demónio.
Se o mosquito carrega esse fardo, herança de um ascendente
passado, problema seu, mesmo desconhecendo, ele pode alterar o rumo das suas
decisões, porque tem a opção da escolha, está escrito nos manuais dos
optimistas.
Acontece que este mosquito não é homem - não altera as coisas
por vontade sua - e independentemente do destino, não é “flor a que se chegue o
nariz” - como se diz.
Integrando o seu plano de vingança, ele procurou desde jovem a companhia
e ensinamento de um grupo de interesses comuns: uma claque com propósitos.
Havia outros como ele e acabou por encontrar o seu grupo. Por lá marinou
desenvolvendo, aprendendo e treinando competências futuras de predador,
inebriando do sentimento de posse, primeiro em pequenas doses, e na medida em
que o hábito entranhou e começou a pedir mais, aumentando a dose até que todos
os meios para atingir os fins dos prazeres efémeros que dão as alucinações de
altas doses de poder, passaram a ser irrelevantes.
Esta colectividade altamente selectiva e fechada dedica-se
somente a assuntos do poder, seja ele qual for. Eles treinam as suas
competências para terem poder e exercê-lo de forma cada vez mais autoritária. E
como conseguem isso? Picando certeiramente nos alvos, absorvendo os seus
conteúdos para se alimentarem deles, e deixando uma marca: um veneno insidioso
e lento que acaba por se difundir a todas as partes dos corpos vazando os
conteúdos e as vontades das vidas dos hospedeiros.
Não há em todo o pântano, nem nas terras secas que o circundam,
animal por mais poderoso que seja, no porte, no caminhar subtil ou estrondoso
sobre a terra que pisa, no som cavernoso e grave que emite a marcar o
território, a assustar os seus rivais sexuais, que não seja uma presa fácil,
acabando todos por perecer vitimas destes minúsculos e repelentes seres,
verdadeiros vampiros do sangue alheio.
Este mosquito em especial, o Senhor, é um exemplo maior para
todos os seguidores e associados destes grupos de influências reais. De todos,
é quem conseguiu ir mais longe.
Ele não quer só o governo absoluto, quer mais do que isso: quer
o lugar dos deuses, ser deus, os únicos seres que lhe faltam dominar, e que
ainda sonha, nesses ímpetos compulsivos poder vir a conseguir, e depois de ter conquistado
tudo ser o rei sol da vastidão do pântano.
Este amor (é estranho chamar-lhe assim, é o primeiro nível de
amor descrito neste livro. É um amor que não tem um fim, um ponto final. Quem
se une por laços de amor ao poder, não se divorcia, pelo contrário, aprofunda
cada vez mais a relação, quer mais e mais, sem limite, sem sossego.
É um amor incondicional, talvez o mais solitário de todos, já
que se baseia numa ilusão, um inconseguimento,
uma utopia irrealizável, nunca se vai conseguir o poder todo sobre todos, mas é
precisamente esse desvario que alimenta ainda mais esse amor doentio, no
entanto repita-se,incondicional.
Haverá sempre mais poder do que o poder que se pode ter e os
seus servos sabem disso, daí estar explicado o estranho olhar vazio que emana
dos seus olhos ausentes de calor, um olhar que não é
olhar, senão a confirmação que não se pode esconder da sua impotência e
frustração.
Não se conseguir ser mais do que senhor do mundo, é a mais cruel
das desilusões.
“Não quero o mundo, quero vê-lo de joelhos.”
E depois, quando todos estiverem prostrados,na posição
comprometedora e triste de rastejantes, o que se pode querer mais?
Palavra puxa a palavra, pede outra, vêm acompanhadas, num
instante, é um rio rebelde delas, a passarem pelas pontes, e,
Diferenças? Não. Talvez o olhar. Tinha um olhar vago, é isso.
Mas um olhar vago pode também ser melancolia, ou limitação. Será outro nome que
agora não ocorre, vago não encaixa, é um mais do que ausente. Numa primeira
apreciação descuidada era a única coisa que o distinguia, quase indelevelmente.
Estando muito atento e olhando-o pormenorizadamente, percebia-se que os olhos
estavam a dizer coisas diferentes do corpo – não era portanto ausente - este de
uma rigidez adquirida, sob o comando de uma força de vontade inabalável, um
comando interior a manter um ser codificado para não transparecer nada de
relevante, que possa levar o interlocutor a vislumbrar uma emoção, um indício
de alma, e com isso haver risco de ganhar alguma confiança para tentar uma
aproximação, uma intimidade, gerando fraqueza, perda de poder sobre o outro, a
situação.
Nada, os olhos dizem nada, impenetráveis e muito frios. Mas não
é só isso. Um olhar vago não chega. Para nos dar essa pista tem que ser um
olhar sugador, que seque a vida do olhado, tome posse dele sem ser convidado.
Encantatório, hipnotizante. É o olhar da besta - um esgar - esse instante de
olhar, em que a vítima viva, percebe nos olhos do carrasco que vai morrer às
suas mãos.
É sempre no olhar que se percebe, se apanha, se entende toda a
linguagem e todas as pequenas subtilezas que não se conseguem introduzir nas
palavras que se dizem e se desenham nos papéis. O olhar é a janela dos
pensamentos mais subtis, que escapam por aí sem terem que dizer nada. Nem
prestarem contas à palavra. É o ponto de fuga dos pensamentos mais rebeldes,
indomáveis, insubmissos, com o potencial de nos estilhaçarem em mil e uma
fracções irrecuperáveis de já não nós.
A família é uma escravidão eterna, e o que tem a ver com esta
conversa? Está fora da opção de escolha, acaba sempre por fazer valer os seus
argumentos finais. Os homens mesmo passando toda a vida a contrariar os genes,
a um momento dado transformam-se na imitação perfeita dos seus pais,
penetram-se deles. É no dia e só nesse, que os pais morrem, que os filhos
ganham apelido próprio, que se transmite o testemunho para os filhos, por aí a
fora.
É uma inevitabilidade para o bem e para o mal. A patina, não
passa de uma camada fina que desaparece facilmente com um sopro mais forte, não
fica nada do que se queria ser, a não ser cumprir a contragosto ou não, as
assinaturas apostas no bilhete de identidade.
Teve uma infância em berço de ouro, uma educação sem esquinas,
arredondada, sem espaço para imprevistos, tudo seguiu o fluxo esperado, igual
ao que tinha sido com os seus pais, os avós, os pais destes… reverência,
respeito, aceitação.
A tradição nunca se questiona, cumpre-se.
Desta vez falamos de um homem, abandonámos o pântano.
Mas é um
homem em todas as coisas igual ao senhor mosquito. A diferença está em que usa
uma gravata todos os dias, escondida anemicamente por um fato cinzento,
exemplarmente confecionado. Anémica que custa caro e tem uma marca.
Não há lembrança nem registos de um sorriso. Os músculos da face
estiveram sempre vincados, tensão máxima. Nunca assumiu a paternidade de uma
palavra sem a ter pensado apuradamente, deixada a marinar, filtrada e
purificada vezes sem conta, antes de a dizer. Foi conscientemente avaro nos
adjectivos. Dos muitos discursos nada se tira das palavras, muitas escritas pelos
assessores, seguidores de imitação sua, querendo ser ele, como ele, sucessores,
um dia, dele. Deserto, seco, sem sombras, num sol escaldante, impróprio.
Infértil. Usou-as somente para acautelar as anteriormente ditas, colando-as com
o cimento de pontuações formais. Construiu um muro de palavras. Também é
possível. O mais rijo e forte de todos, não há balas que os derrubem.
Gastou os créditos da sua vida fincando-se no poder e a usar as
palavras para se proteger dos danos das suas arbitrariedades.
Tecedor exemplar das teias que criam dívidas porque se fez um
favor, enredou o mundo na dívida de si. E quando sentiu em intuição que todos
estavam presos aos fios, tomou conta do mundo. Foi um ditador, mas em
inteligência: foi um ditador democrata. A grande fraude-patranha que todos caem,
julgando-se livres. Distraem-se nessas brincadeiras e abrem portas a uma prisão
maior e mais vasta, ainda assim uma prisão.
Terminou a carreira em grande estilo, este tipo de homens
terminam sempre em endeusamento, como o mosquito, dos pântanos.
Este por ser o primeiro na enumeração faz as honras do assunto,
talvez não pelas melhores razões. É o amor da posse, um dos mais territoriais (o
do colecionador também). É uma coisa, um impulso de quem não ama, o que não
deixa de ser um amor, e dos fortes.
Do amor incondicional, do poder, é o primeiro deste índice, a
partir de aqui vai em crescendo, rasgando mais o sulco, até ao episódio final,
o mais glorioso de todos. Também o mais belo.
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