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DO AMOR INCONDICIONAL - 2 - DO NARCISO





A verdade tem dois rostos, vê-se ao espelho, e dependendo da intensidade da luz, a saturação o brilho e as diferentes componentes da luz, vê rostos diferentes, no mesmo rosto.



No mito moderno (é o quê um mito moderno?), Narciso não definha a olhar insanamente apaixonado para a imagem de si reflectida no espelho. O contrário disso, infla. São os outros que mirram, por não serem Narciso, ou porque podendo sê-lo seguram esse impulso quase irresistível em favor de uma decência pessoal, questão de princípios.

Assim, olhando para Narciso, todos zarolhos, todos estrábicos, e vendo-o engrandecer de tal forma, porque os seus olhos na doença de narciso que causa angulações estranhas, pousam no espelho mas veem um outro de si, definham estes, que o olham na presunção de não serem tão belos. Desconhecem o problema de Narciso, assim como ele desconhece o seu problema, eternamente salvo pela maldição das ninfas despeitadas, impossibilitado de se confrontar com a sua imagem espelhada, porque o reflexo dessa superfície projecta uma mentira, uma irrealidade.

Fosse isso possível e teríamos um homem reabilitado, mas a dura realidade é que um homem reabilitado carregará até ao fim dos seus dias o fardo dessa debilidade: claudicou em qualquer coisa num passado, ergueu-se, mas claudicou, ficará sempre algum vestígio da nódoa primordial.

Pedro caminhava seguro, estudadamente, todo o corpo era encenação e a actuação era tão boa que não tinha nada de artificial, era um atavismo personalizado. Do caminhar do espírito, o seu, não se sabe, protegia dos zarolhos as suas intimidades. Quando punha um pé na rua – todos os dias - era a Criação a estender-se perante si, aos seus pés, tão belos que eram, como no mais recôndito deles - no alto, e extremo oposto - eram belos os cabelos, densos, brilhantes, enredando-se em caracóis em chamamento para se afundarem dedos alheios, magneticamente levados a esses cabelos, massajando suavemente, sensualmente, a sua cabeça clássica, perfeita, um anjo com uma luxúria vaga no olhar.

Seria difícil apontar-lhe uma imperfeição. Todo o seu ser físico foi moldado por Deus – só podia – que o criou num momento em que estava descomprometido com as responsabilidades de governar as esferas, concentrando-se somente e com afinco em moldar Pedro, uma distração ao trabalho duro dos governos dos mundos.

Pedro abriu os olhos para a vida por um relaxamento de Deus, quando intervalou do seu fardo de demiurgo. Criou-o como se tivesse vindo fumar um cigarro, à porta dos fundos, construindo um origami num resto de papel, simplesmente para passar o tempo, distrair. O origami foi ele.

Deus, dizem, gastou seis penosos dias na criação da galeria de seres vivos e não vivos, usou toda a sua arte nos acabamentos dos seres nunca totalmente perfeitos, e foi num momento de descanso, entretendo-se porque não fumava, que moldou com os dedos e o sopro, displicentemente, Pedro o mais belo.

Volta-se atrás: quando punha o pé na rua, a Criação tropeçava nele, no Pedro. E assim continuou a ser ao longo de uma vida, a sua, eufórico de felicidade, uma dádiva de bem-estar raramente concedida aos homens sem qualidades, ou só a esses concedida.

Não interessa tentar saber como calhou essa sorte, foi assim. Há assuntos obscuros em que não se imiscuem os homens, ainda ensarilham mais os nós intermináveis das coisas obscuras.

Sendo este mito ao contrário, Pedro o Narciso sabia-se belo e desejado, e saciava-se nunca se saciando da sua beleza, olhando a todo o momento e em qualquer lugar para uma superfície que reflectisse a sua imagem. Admirava-se tanto, que se desinteressava de olhar para tudo o resto que era afinal tudo. Mas era essa a sua natureza, tão cheio, que não via nada para além do que se via a si, o que bastava.

Por ele, o mundo podia estar vazio e ser desabitado, não tomaria conta disso, não sentiria falta de nenhuma parte ou constituinte. Era o melhor e único amigo de si próprio.
Na juventude contentou-se numa amizade incondicional consigo mesmo, menosprezando, diminuindo os outros meninos que queriam brincar com ele, ao berlinde, ao pé-coxinho, às caricas, as brincadeiras das crianças nesse tempo. Acabavam por desistir. Sabe-se quanto as crianças são persistentes, e mesmo assim desistiam, primeiro amuadas porque tê-lo na sua companhia queria dizer que mais meninos se juntariam ao grupo, depois esqueciam e nem se lembravam mais dele, até ao dia seguinte. As crianças são como os peixes, têm uma memória que não lhes pesa na consciência, por isso são felizes, os peixes também.

Em adulto Pedro compreendeu que os homens se precisam uns aos outros, umas vezes para trocarem bens, outras para se proverem ou dispensarem afectos, gestos ou intenções que geram sentimentos que aquecem os órgãos internos que fazem a manutenção da vida. Tentou esse contacto, mas nauseou, tão atafulhado de si, sem espaço para encaixar o outro, bastava-lhe a sua auto-suficiência.

Dizem vozes, nunca faltam vozes, começa uma e transforma-se num coro, que é a doença da misantropia. Não é o caso. O misantropo não gosta da companhia dos outros homens, Pedro nem sequer sabe da existência de outros homens. É, se houvesse esse nome para designar, um omissotropo. A partir de hoje já há.

Foi no auge da idade adulta, segundo ciclo de Saturno, a astrologia tem que se lhe diga, que refinou com torneados e arrebites a sua índole narcisista, perdendo a pouca lucidez que dispunha, ao elevar o culto da imagem aos limites do imponderável. Este homem não podia ser um homem, era menos que isso, era somente o acessório que elevou a essencial, um equívoco.

Mas a vida imita as estações do ano. Quando se instalaram sem fazer alaridos os primeiros sinais de velhice, tudo se alterou, o que não foi – não o é para ninguém - de se começar a pensar mais sabiamente, é das hormonas.

No quotidiano normal e banal de qualquer um, pelas distrações ou ocupações banais ou normais de um qualquer, as estruturas orgânicas que enformam os homens, das mais simples às mais complexas, dão a sensação da vida como marinando ao sabor de um estado de estagnação. O tempo desfia a eternidade à frente dos olhos e parece que nada acontece. De repente acontece algo, muitos algos de uma vez, sem que nada o faça esperar, dá-se um salto em frente. Muda-se o patamar de vida. E quando volta a sedimentar a poeira levantada por esse salto,e se suaviza, a eternidade regressa ao seu vagar, os olhos colados ao ecrã a vê-la passar, até que venha um novo fenómeno de agitação.

São os ciclos.

A velhice não o curvou, manteve-o belíssimo, mais antigo mas belíssimo. As linhas do rosto suavizaram-se, os cabelos ainda irreverentes, cobriram-se de uma alvura pura, fazendo lembrar as neves eternas e imaculadas de cumes nunca conquistados pelos homens, num himalaia desconhecido.
Manteve-se acesa nos outros a vontade quase irracional de os dedos das suas mãos afagarem os seus cabelos brancos. O corpo é claro que perdeu a firmeza musculada dos anos em que alimentava a esperança de ser imortal, mas ganhou uma linha de aprumo, um gosto a admirar, a revisitação de um monumento intemporal, que se vê sempre pela primeira vez.

Neste momento saía ainda à rua com grande garbo, estatelando-se o mundo a seus pés, belos mas mais nodosos, que belos pés nodosos eram.

O que se alterou neste destino que parecia seguir rectilíneo e monótono foi Pedro sentir pela primeira vez necessidade de companhia, outra que não a sua. Sentiu isso com honestidade, crédito inesperado. Irrompeu vindo de dentro, um desejo novo de querer falar, não ouvir somente o eco da sua voz, harmoniosa e timbrada, mas sempre e só a sua, já não lhe basta isso para preencher o ego. Ouvir um som de resposta, com uma modelação diferente, numa conversa de dois.

Também o toque, tocar com a ponta dos dedos, ou passar suavemente a mão noutra pele, cabelos, sensação que arrepia, uma textura diferente, o aveludado, como é bom o aveludado, mas ele não o sabia.

Tocar, esse gesto-sentido tão especial, apareceu-lhe como uma revelação tardia, e ele não sabia que podia ser um prazer.

O tempo não lhe deu tempo a isso. Ía tarde de mais.

Foi neste momento importante da sua vida, que magicamente ao sair de casa num dia qualquer para fazer o habitual passeio das suas vaidades, os outros deixaram de olhar para si.

Não percebeu porque não tinha tido essa necessidade. Ao fim de algum tempo o passeio começou a dar-lhe uma sensação não explicada, incómoda, algo não estava a compor a normalidade do dia. Foi então que deu conta, ao olhar à sua volta, que a azáfama habitual de pessoas nas ruas movimentadas naquele local na cidade, não se detinha ao acercar-se a si, as pessoas não paravam a olhar para ele, omitiam-no, seguindo na paz de cada um, os seus caminhos e direcções.

Cansadas de serem maltratados pelo comportamento de preterir, o que é uma soberba - quando um Narciso pisa a passadeira do mundo, pisando como se pudesse pisar impunemente tudo e olhando, olhando para um ponto ao longe, marcado por si no horizonte, como se não houvesse ninguém a merecer um olhar, um fugidio pousar dos olhos – aconteceu ali um acordo tácito da omissão ao narciso, Pedro o plenamente belo.

No início não se deu conta das alterações, mas todos os narcisos mesmo fingindo, estão atentos ao deslumbramento dos outros por si, quando passam diante deles. E esses espantos, essas exclamações suspensas no ar, esses olhares fascinados, deixaram de existir, e ele finalmente realizou que o eixo do mundo não é o imaginário que o atravessa de alto a baixo e que define o movimento de rotação de toda a terra. O eixo do mundo é muito mais importante que o eixo de um egotista.

Esse momento fica marcado como o primeiro dos últimos dias. Começou uma contagem decrescente, irreversível, e Pedro o Narciso começou – agora sim - verdadeiramente a definhar.

Já não podia falar com alguém, já não podia ouvir alguém, já não podia tocar alguém, o mundo conspirou negando-lhe atenção, e essa era o seu hidromel vital. Foi a partir daí que deixou de olhar para os espelhos e começou a languidescer.
Percebeu finalmente que acabava de perder o único amor da sua vida, o seu eu, a sua companhia, a maior das cumplicidades, e tudo isso só era assim porque os outros o adoravam. Perdendo os seus olhares, perdeu a razão de ser narciso. Partiu-se o espelho em mil e um pedaços, tão pequenos que em nenhum deles podia ver o reflexo inteiro de si, só pequeníssimas partes irreconhecíveis, sem identidade, anónimas.

Cumpriu-se a maldição das ninfas. Um mito nunca se altera, ainda que se tente torpemente. Se houvesse um manual de moral rematava-se a história escrevendo que nem homens, nem semideuses, nem mesmo os deuses, escapam às maldições que são impostas pelas entidades da justiça celestial, um código imaginário, impiedoso, lavrado a fogo na noite dos tempos.

Pedro o Narciso, pôs termo à vida adornado com um belo casaco de fazenda com risca de giz, engalanado por uma gravata de seda com pintas brancas sobre fundo vermelho, a ajeitar na perfeição um colarinho engomadíssimo que lhe endireitava pescoço e consequentemente a cabeça. Os sapatos eram castanhos e bons – não podiam ser de outra cor -, apesar de não serem novos resplendiam, sinal de estarem muito bem engraxados, sendo que se podia reflectir a sua imagem pelo brilho espelhado dos sapatos.

Pôs termo à vida, perfeitamente escanhoado e com o cheiro alimonado de um excelente after-shave inglês.

Pôs termo à vida da única forma que o podia fazer, com estilo: sentou-se no cais das colunas, a olhar intensamente para o reflexo difuso da sua imagem nas águas poluídas do rio, um rio também em estertor, e aí se deixou ficar, definhando de si, até que pura e simplesmente desapareceu, sem que ninguém desse por isso, apesar de ser uma zona muito frequentada por turistas, atarefados em captar imagens para levarem para casa. Não deram por isso porque desconheciam que aquele senhor tão bem aparentado mas profundamente triste, era o narciso.

Não deram por isso pela sua transparência, adquirida nesse processo irreversível e trágico da dissolução.



























II

Havia como outros há por aí com outros nomes, um Pedro vacilante, desconfortável com o corpo. Do espírito também, possivelmente, era tímido não o dizia, pelo que não se sabe se eram eventuais ou fixos os desconfortos do revestimento interior. Punha um pé na rua, mal o punha, pouco. O movimento, o ruído, a luz, tudo era confusão, assustava-se, indispunha-se, saía pouco.

No entanto gostava dos dias de sol, da sensação tépida de uma brisa. Desarmava-se principalmente com a luz, os seus brilhos, as claridades de uma manhã que se arranja, bem aparecida, que se clarifica para se apresentar ao mundo no seu maior esplendor. Uma manhã que se apresenta nessas condições, é uma dádiva, ajaezada de alta-costura, um manto de brilhantes transparências.

A realidade deste Pedro lasso é bem diferente, poluída, carvão.

Nenhum olhar se cruza com o seu, apesar dos revoltosos cabelos serem belos, não são acariciados, nem por ele, o homem que alimenta uma mágoa triste e ácida, levando como suas todas as injustiças do mundo. Anda quebradiço com esse peso.

Afere-se pelo início da descrição que Pedro seria um homem sem atributos. É um julgamento errado. Deus teve prazer em esculpi-lo, num momento de descanso da sua criação dos seres residentes dos vários universos, trabalho imenso e desgastante, que após concluído o levou a tomar a decisão de não mais fazer um trabalho igual, de exaurido que estava. E nesse intervalo se fosse humano, fumaria um cigarro. Não o fez, em vez disso esculpiu-o, como quem se entretém com o canivete num pau apanhado do chão, para desanuviar, passar o tempo. E deu-lhe o sopro da vida.

Pedro, o não-narciso. Quando punha o pé na rua as criaturas tropeçavam distraídas, um peso morto, um empecilho no caminho. E assim continuou a ser ao longo da sua vida arrastada, com o depósito dos níveis de felicidade nos mínimos, tormentos constantes de infelicidade, como a moínha que se instala num dente cariado e apesar de suportável, persiste indefinidamente, sempre moínha. Apesar de não ser uma dor relevante, excruciante, leva ao desespero, até que se torna numa dor fundamental, insustentável.

Sendo este mito ao contrário, Pedro o não-Narciso sentia-se feio e excluído, sedento de beleza, da que só via nos outros. Escondia o confronto dos seus olhos com uma superfície que espelhasse nua e cruamente a imagem de horror que ele imaginava ser a sua. Fugia a sete pés dos espelhos, afastava-se propositadamente das montras envidraçadas das lojas, para não se ver, encontro fatal.

O mundo era um local cheio de vida, ele era um local vago e desabitado.

Na juventude contentou-se consigo mesmo, saindo pouco de casa, desprezando os outros meninos que queriam brincar com ele e acabavam por desistir, ou porque ele lhes virava costas, ou porque se deixava ficar,sentado no passeio a olhar fixamente para um ponto imaginário, sem reação nem anima. Não que não gostasse dos jogos das crianças, não participava porque se excluiu a si mesmo da convivência. O que pensaria ele quando era pequenino? Coisas que não eram de criança pensar.

Sabe-se quanto as crianças são persistentes, e mesmo assim todos desistiam. Esquecendo rapidamente que ele existia, e lá iam às suas coisas, com gritinhos e urras, e muita excitação. Assim se comportam ainda bem, as crianças.

Entrou na fase de adulto por obrigação, se o tivessem avisado ter-se-ia escondido de adulto, teve que o ser.

Um adulto, a menos que seja eremita não pode esgotar o tempo dos dias sem pronunciar palavra, um som. As palavras são uma mercadoria valiosa, objectos intangíveis de troca. Sem palavras um homem é menos, ou então é uma missão sua, que ninguém se deve meter, mas os que são assim, são homens mas diferentes, pertencentes a um grupo exclusivo sem classificação dada: os homens que dominam o silêncio.

A idade trouxe sensatez, baixou-lhe juízo, como a outros baixam milagres, ou enormes cargas de chuva desagradável e fria. E ele compreendeu finalmente que devia comunicar para existir, para não ser só um projecto de si mesmo, mas um componente, uma peça de um elenco mais vasto, num palco enorme, a representar o seu papel, único e inigualável.

Tentou aproximações tímidas e fugazes aos afectos, mas o mundo parecia-lhe uma enorme passadeira vermelha, todos a desfilar garbos e vaidosos, ele sem o saber fazer e a não gostar daquele vermelho que lhe feria os olhos e a sua antecâmara, que se situa imediatamente a seguir a passar pelos olhos dentro. Envergonhado e desconfortável, o que ele achava da sua participação no mundo da sociedade.

Foi no auge da idade adulta que mais remoeu a sua falta de estima, a pontos de indícios fortes de loucura. Receitou-se, sem sucesso, descanso temporário e vão, logo voltava mais forte, mais doloroso. Este homem (dizia-se ele) não podia ser um homem, era uma qualquer coisa, um anti-homem.

Mas a vida tem um guião para se cumprir, não se saltam capítulos importantes, e quando se aproximou da mudança do segundo ciclo de Saturno, a dar a volta dos sessenta, a sua mente, sem que disso tomasse nota, pagou contas com o passado, e deu-lhe uma última oportunidade de poder vir a futuro.

Travar-se de razões consigo mesmo e fazer um balanço honesto, não é fácil. Ele e o seu alter-ego discutem, branqueiam inverdades, teimosias. É o confronto mais difícil, numa sala vazia, frente a frente consigo, num diálogo em monólogo. Perdeu-se a conta do tempo que levaram os dois nesta discussão decisiva.

Saiu vencedor e confiante, desta vez a frustração ficou para o alter-ego, que se refugiu no infra-consciente a recuperar do vexame da derrota, deixando-se por lá ficar fazendo-se esquecido, ou redundante, pior.

A velhice e a nova confiança, deram-lhe uma nova luz, finalmente reflexos da sua beleza, agora com novos olhos, nas curvas agradáveis das suas sombras recortadas em movimento, nas paredes brancas de algumas casas brancas por onde passava dirigindo-se a algures. Abriu-lhe o apetite para se admirar a um espelho. Um frente a frente, cauteloso, a medo, pela primeira vez, era inevitável.

Gostou do que viu, apaziguou-se. Faz-se uma passagem imediata do carregado para o desanuviado. Ecce homo. Os tais tremores inesperados do tempo estagnado.

Suavizaram as linhas do rosto, as rugas antes vincadas agora são sulcos pouco pronunciados, os cabelos que foram pretos e fortes, esbateram a força funerária dessa cor, branquearam, amenizaram. Apeteceria aos dedos de uma mão afagarem esses seus cabelos brancos. O corpo ganhou outro volume, não necessariamente desagradável, manteve-se digno.

Conseguia agora e pela primeira vez de muitas, sair à rua com prazer, e anunciar com os seus olhos, aos olhos dos outros, um esboço de cumprimento, bem recebido, bem retribuído. É bom passear pela rua, com os elementos que compõem o dia a baterem na cara: o sol, a chuva, os ventos.

Pedro procurou companhia, outra que não a sua. Cria falar e não ouvir o seu eco, ouvir um som de resposta numa voz diferente, ter uma conversa a dois, uma cumplicidade.

E o toque, tocar com a ponta dos dedos, deslizar suavemente a mão numa pele aveludada, sentir fortemente ao de leve, o arrepio de outra textura, como é bom o toque de uma mão!

Foi neste momento importante da sua vida, que um dia em que saia de casa para se passear vaidosamente, os outros começaram a olhar para ele.

Foi aí que Pedro o não-Narciso começou verdadeiramente a inflar, quis falar com alguém e pôde, quis ouvir alguém e ouviu, quis tocar e tocou.

Nesse dia começou a olhar para os espelhos e agradou-se.
Cumpriu-se o bom augúrio das ninfas. É bom que não se tenha dúvidas que nem os homens, nem os semideuses, nem mesmo os deuses, estão livres das disposições celestiais e que o bem acaba sempre em apoteose, mesmo que seja em murmúrios de apoteose.

Pedro o não-Narciso, gozou o auge da vida adornado com belos casacos de boa fazenda, e gravatas de seda de cores excêntricas, bem calçado que é pelo sapato que se vê um homem, e também porque pisa melhor, mais condignamente, a calçada, trabalhada, irregular dos passeios.

Frequentemente, nas suas caminhadas pela cidade, sentava-se no cais das colunas, a olhar intensamente para o reflexo difuso da sua imagem nas águas quase despoluídas do rio, e aí deixava-se ficar, deambulando não se imagina que sonhos agradáveis, porque estampava no rosto uma felicidade bem resolvida, fazendo-se notar principalmente por turistas, que frequentam essa zona, agradados por verem um homem composto, sentado alegremente a olhar para o rio, reflectindo numa multiplicação de imagens suas, uma imagem do belo homem que é.

Pediam-lhe inúmeras vezes para tirar fotografias e com ele, o que nunca recusou e fez com agrado e simpatia.

Consta no seu registo de óbito, que terminou ali, sentado, os dias do seu diário. Pacificamente olhando para si repetido nas doces e pacíficas águas do mar da palha. Tão suavemente, que não deram por isso, ninguém, foi-se transparecendo lentamente, misturando-se com a água, o cais, a pedra gasta do cais.






Este é o segundo nível da escala imaginária dos amores incondicionais. O amor de si e só para si. É talvez o mais absorvente, não dá um segundo de descanso, nem nas noites de sono profundo. É possível que mais do que amor seja uma louca paixão permanente.

A partir deste momento, não se assumem compromissos com os outros amores incondicionais que por aí se anunciam. Mais ou menos que os do poder e os do narciso, não se sabe. A cada um o julgamento, o alinhamento da sequência.

Há amores mais incondicionais do que outros?



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