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DO AMOR INCONDICIONAL - 5 - DO COLECCIONADOR







O roteiro de uma vida de colecionador- um amor muito especial, pelo objecto sem vida a que se oferece o sopro da palpitação, na transferência que o amante faz para o objecto amado – pode ser esfiapado ligando as pontas das colecções que foi fazendo nos anos de acumulador preciso, metódico, um compromisso pessoal que se leva até ao fim do caminho.

Constrói-se a história dessa pessoa observando os objectos que ele guardou na sua arca dos tesouros e que desempoeirou constantemente, tocando, pegando, afagando com um desvelo que não é comum aos mortais comuns. Dados mais do que suficientes para se fazer um roteiro de um indivíduo. 

Todas as colecções, não havendo pistas e ligações que assim o indiquem, têm entre si uma afinidade, constituem o padrão de quem as colecionou, desenham uma impressão digital, são a identidade do seu possuidor.

Colecionar é amar, um amar que se define pelo possuir. Quem possui tem sobre o amado todo o controlo da relação. O possuído é inerte, deixa-se amar, não porque não tenha nada a dizer sobre o assunto, mas porque é um objecto e como tal não tem opiniões. É um amor que só dá ciúme quando ainda não se possui algo que na perspectiva do colecionador é a peça fundamental, para completar, fechar a colecção, dar um sentido à mesma. Com todas as peças ainda não possuídas é assim.

«Em verdade tenho poucos Legos, perdem-se muito. São peças pequenas. Sou uma criança e como tal sou distraído, esqueço-me rapidamente de tudo em todo o lado deixamos tudo, mas ser assim é um dos encantamentos irresistíveis de ser criança.

A verdade também, é que conseguimos demonstrar um apego incalculável por uma peça pequeníssima de que só nós nos podemos lembrar, por esse apego, depois de a termos deixado nos interstícios do sofá com flores da tia Benedita na visita que lhe prestamos neste findo fim de semana tauromáquico e religioso. Forçados a isso.

A visita foi prestada pelos  nossos pais, nós æ força, 
uma vez por ano para os festejos da Nossa Senhora do Rosário da Moita, interesseiros, esse é o verdadeiro pretexto, visitá-la por que tem uma das melhores varandas para se apreciar o cortejo e as largadas das bestas, a correrem desenfreadas, assustadíssimas, com a maralha a gritar, a incitar, a levar umas valentes cornadas porque o merecem e bem.

Os meus pais gostam disso, podia ser pior.

Nada mais, os adultos são todos uns cínicos, e refiro-me que já se entendeu, à visita forçada. A tia Benedita é boa pessoa, sabe desse artificialismo, mas não diz nada, recebe-nos bem. E nós – eu e o meu irmão - vamos a contragosto, estacionamos no sofá de flores, como anjinhos, a brincar com as nossas coisas, enquanto os adultos, na varanda gritam olés ou benzem-se, entremeando as duas manifestações de alegria. Nós aguentamos no sofá até começarmos a atirar os carrinhos, os legos, à cara um do outro. Chegados a esse ponto, somos obrigados a ir para a varanda, assistir à festa.

Vê-se a civilização pelos brinquedos que se inventam e este só podia vir dos nórdicos. As permanentes temperaturas frígidas e as longas horas de ausência de claridade, ou o seu oposto, e para que as cabeças não congelem, obriga-as a estarem sempre a trabalhar, em fermentação contínua. Produzindo pensamento. O corpo para acompanhar e não ficar rígido, acompanha as cabeças. Põe as ideias em prática, dá forma ao que foi inventado, sai do abstracto, pensamento inicial, e molda contornos tridimensionais. O Lego é uma das grandes invenções da humanidade. As touradas nem por isso.

Foram a minha primeira colecção, e dei o meu melhor para ter as mais que pude: as peças oferecidas em natais e aniversários, passagens de ano escolar com bom aproveitamento, as que não perdi e as que consegui surripiar, aos amigos mais chegados. Aos outros também, mas ia menos a casa deles, e eram mais desconfiados, e ou os bolsos dos calções eram grandes, ou se estavam justos, dava nas vistas, e eles não eram parvos, sabiam ao que íamos.

Abandonei os Legos por volta dos treze anos, mas ainda hoje tenho nostalgia por eles, não sei se não vou acabar os meus dias a tentar encaixar legos com um olhar vago e uma motricidade fina totalmente descalibrado, pelo menos tenta-se.

Vieram a seguir os soldadinhos de plástico, grandes batalhas, de manhã à noite, numa concentração absoluta, posicionado as forças, atacando, batendo em retirada, montando quartéis-generais, hospitais, casamatas, organizando transporte, logísticas, e acima de tudo, fazendo prisioneiros, muitos, que ficavam do nosso lado, nossos. A propriedade é uma coisa muito boa.

Estes bonecos vinham em caixas de cartão, tinham um preço razoável e estavam disponíveis vários tipos de tropas: de infantaria, de paraquedistas, americanos, alemães, da guerra da Sucessão, índios. Tal como os Lego, instalou-se nos anos que dedicamos aos soldadinhos, uma febre de os colecionar, de os ter todos, de os colocar nas prateleiras do quarto, perfilados, nós comandantes, a passarmos revista às tropas. De preferência na parede em frente à cama, para que deitados olhássemos para eles, todos, ali, adormecendo a sonhar com batalhas vitoriosas e a sentirmo-nos protegidos, com um exército daqueles, em prontidão, para nos salvar.

Alguns tinham a paciência de os pintar, trabalho de relojoaria, minucioso, pincéis finíssimos, as mãos contidas, uma a segurar no pincel, a outra, guardiã da primeira, a minimizar os nervos, os tremores. Mesmo assim era muito difícil não borrar e nalguns militares, a cara ficava da cor da boina, o dólmen escorria para o calção, a bota tinha a cor das pernas, não se distinguiam uma da outra. Porque ficaram descompostos, quase inúteis, não os usávamos na linha da frente, ficavam na retaguarda, na logística, manutenção dos serviços de apoio.

Raramente os miúdos conseguem guardar intactos os brinquedos, são os seus companheiros, sofrem o desgaste do uso, ou são substituídos por novos e esquecidos. Os que não se perdem são guardados nas caixas de cartão que enchem saguões com teias de aranha. Fica muita história soterrada nos pós dos sótãos, mas como dizia um amigo meu, se não se usa é porque já se esqueceu, e não faz falta.

 Às vezes por sorte, ou uma casualidade que também é amiga desta, encontram-se coisas do passado, e revivem-se imagens, a nostalgia no seu melhor. E as lembranças. Atenção as lembranças não são memórias, são mais esbatidas, desfocadas, a sépia. As lembranças são das coisas secundárias, as memórias dos acontecimentos sérios da vida.

Quase adolescentes e a entrar na fase em que as colecções passam a ser o número de asneiras que se pode fazer num dia, sem consequências catastróficas para o que asneira, veio a febre dos aviões e dos barcos. Em pequenas peças para montar, com manuais de instrução complicadíssimos, minuciosos, para serem coladas. Os acabamentos eram autocolantes ou então igualmente pintados. Vendiam-se em lojas de especialidade e nalgumas drogarias, pequenas latas de tinta só para esse efeito.

E os comboios? Vieram na linha de fronteira da primeira idade adulta, pelos dezoito anos. A primeira porque naquele tempo havia duas idades adultas: aos dezoito e aos vinte e um anos. Esta a mais importante, já se podia entrar no casino.
A colecção de comboios dava-se melhor com os adolescentes classificados no grupo dos atinados. Eram desinteressantes para brincar, agarrados como percebes aos livros de estudo, mas mais tarde em querendo brincar com eles, já não nos atendiam sequer o telefone, ricos, com bons empregos.

Magníficos, um mundo inesgotável de acessórios, cidades inteiras, houvesse espaço. Infelizmente não era para todos, era uma coleção cara. Quem os tinha, apanhava frequentemente os pais e os avós a brincar com eles, encantados, a verem uma locomotiva que produzia vapor verdadeiro, a sair de um túnel, e apitava, apitava, e uma senhora estática, com um lenço na cabeça a acenar uma bandeirola que não acenava, numa passagem de nível, onde aguardava uma carroça e os seus constituintes, e do outro lado da via um motociclista com dois monóculos revestidos de cabedal nos olhos, postos na estrada.

Quem chegou à fase dos comboios e dos tão preciosos que nem das caixas saiam, tornou-se um colecionador a sério, um profissional. É essa a minha história, apesar de nunca ter colecionado comboios por ser filho de posses curtas.

Esse vicio, tornou-se um amor, ou foi um amor que se tornou num vicio. Não sei, estou indeciso, baralhado, não o consigo dizer. São as duas coisas juntas, uma osmose.

Se eu pudesse colecionar tudo, se tudo fosse meu, só assim me realizaria plenamente. Mas ninguém consegue colecionar tudo. Talvez Deus, talvez ele não perca pequenas peças, nos recônditos dos sofás do céu. Só ele teria tudo se quisesse esse privilégio, e com o espaço infinito, para exposição todas as suas colecções.

Só que aborreceu – não há uma história que não se fale dele - acabou a obra em mãos, em muito pouco tempo, sem mais nada para fazer que lhe tenha chegado à mente, uma das mais brilhantes, e reformou-se. Deve ter uma boa pensão porque é ele que assina as autorizações das pensões de todos, e ainda para mais, sendo uma reforma eterna e não ter de trabalhar mais, como é que há sistemas, por muito bem pensados e geridos que sejam, que aguentem reformas dessas?

Casmurrou e num dia de indisposição que acontece está bem, compreende-se, culpou os homens por isso, por não os ter conseguido criar ainda melhor e ter ficado esgotado e sem boas ideias depois de os moldar com o barro que se fez carne e osso. Tivesse-lhes pedido opinião sobre os assuntos da Criação, para poder exigir pagamento de contas. Num capricho, nesse dia aziago, lançou-os à sorte (palavra dúbia), enredou-os nas desilusões do livre arbítrio, tirou-lhes a imortalidade e eles ingénuos e crentes, aceitaram sem discutir.

Naquele tempo estavam por inventar os ateus e os anarquistas. Não havia ninguém para dar luta a deus. Os filósofos também só apareceram mais tarde, e alguns acabaram por dar o braço a torcer pela religião. Quem faz muitas perguntas, é geralmente desconfiado, ou dá o dito por não dito.

Depois desse acto único parental geral de parir os homens em seis dias, e porque entrou numa depressão, há mesmo quem afirme tê-lo visto a chorar pelas nuvens, solitário e sem amigos. Os que se aproximam dele são os tementes, os fiéis e os cínicos. E é a estes últimos que ele mais ama, porque o entretêm, dizem tudo o que ele quer ouvir.

Deixando por agora deus, não tenho palavras para justificar a inquietação – que traduzo como ansiedade instalada - que experimento até encontrar e possuir as coisas que procuro, que por uma ou outra razão faltam para completar a colecção, sendo que a minha é inesgotável, reproduz-se por geração espontânea, do nada, sempre incompleta, faltará sempre alguma coisa. Muitas vezes procuro coisas que nem sei se existem, onde estão, se as posso ter. Entro em febres persistentes. Num estado estranho de possuimento, um demónio entra em mim, com um mau feitio que só eu me aturo. Menos mal, como estou sozinho em casa com as minhas colecções, não produzo violência doméstica. Nunca me deu para partir nada. Ficaria ainda mais doente.

Sofro um constante sentido de posse sem possuir, ciúmes em abstracto que me queimam, uma inveja corrosiva dos que possuem o que eu não possuo e que devia ser meu. Chego a pensar – logo tiro essas ideias da cabeça – que era capaz de roubar, de me prostituir para as ter. Sendo este sem dúvida um tipo particular de amor, é o mais ácido deles todos, o amor que sai à rua de braço dado com a inveja.

O que ainda não habita as minhas prateleiras é o mais desejado, e no momento em que o vejo na segurança das minhas mãos, nem sei como o descrever: é uma coisa sexual, uma luxúria, húmida, um orgasmo atómico. Devasso avidamente acariciando as suas entranhas até me saciar, orgiástico.

E após esse orgasmo que é múltiplo e em cadeia, quando já estabilizei a respiração, os suores, os movimentos corporais involuntários, abraço-me com desvelo a ele, e olho-o como um pai devasso insuflado de uma dose de amor que é impossível explicar.

De resto, essa é uma das características que identificam os bons colecionadores: não esquecerem uma única peça da sua colecção, por mais vasta que seja, e com a maior das regularidades, meterem-se na cama com ela, que é uma forma de ilustrar a ideia que se pretende passar.

A minha colecção é impossível, nunca termina. Deixa-nos a vida toda na expectativa, à espera de um final feliz, um momento de descanso, uma reforma para sair pelo menos um pouco, passear, conhecer alguma coisa nova, não se chegou a ter tempo para olhar para nada, e agora começa a ser tarde.
Acaba invariavelmente da mesma forma para todos: a despedida deste mundo, de forma ingrata, sem se abrir a última encomenda, chegada no mesmíssimo segundo da nossa partida, já entretidos a encomendar a alma ao senhor. Uma encomenda que nunca será resgatada ao armazém dos correios. A menos que os parentes lá vão. Nós mortos, sem lhe pudermos tocar, a peça que tantas insónias nos deu, por quem esperámos tanto.

Todas as colecções são difíceis, como o são as amantes fugidias e adulteras, impossíveis, mas as mais fogosas no amor, porque não se deixam possuir completamente. Deixam-se comprar efemeramente e no dia seguinte despertam na cama de outro desconhecido, enlaçadas nos seus braços, fazendo exactamente as mesmas juras que nos tinham feito na véspera, de uma forma tão convincente, que por momentos chegaram a emocionar-nos.

Eu só coleciono livros – serei bibliófilo, mas é uma palavra com que não me dou bem, incomoda-me, é deselegante e composta – e que saiba é a colecção mais utópica de todas, por nunca terá um fim, é inatingível.

É um amor que não explico, que me consome, serei masoquista. Sou, não há dúvida! Não dedico atenção a mais nada na vida, sou o homem mais fiel que me conheço. Aos livros. Abdiquei de ter relações pessoais, não saio de casa a não ser para visitar livrarias e caves sombrias carregadas de ácaros e seres terríveis que não têm a mínima consideração por nós. Tenho alergias que nunca mais acabam e a cortisona só me incha, afecta a minha autoestima, quando me vejo ao espelho gordo como um texugo. Ainda por cima, um texugo vermelho, na eminência de rebentar a qualquer momento, os botões dos casacos já foram quase todos.

Só me dou com livros e livreiros, e livrarias de rua, a céu aberto, onde às vezes, no meio do lixo que são a maioria das bibliotecas deixadas pelos mortos, que os filhos não querem e vendem por cinco tostões, encontro diamantes que reluzem nos escombros dos castelos desmoronados dos outros, dos mortos.

 Tenho ainda mais dois problemas, associados a esta doença que para mim é amor. Não é o que cantam alguns poetas? A doença insidiosa do amor? e que serão fraquezas, que agudizam a minha relação ao ponto de uma quase insanidade: gosto de ter muitos, de ler os que posso, e interesso-me sobre todos os assuntos.

Por eles, abandonei cedo os outros amores, os da carne viva, palpitante. Não procriei. A minha existência é de uma absoluta inutilidade para a continuidade da espécie. Sou um ser com defeito de fabrico, uma inutilidade, ou um verdadeiro egoísta.

Dos amores que agora lembro terem escapado, todas bastante aliviadas e isso é que me custa a aceitar, algumas eram alérgicas ao pó dos livros; outras queixavam-se que as paredes e todos os espaços da casa estavam ocupados, não podiam respirar; outras queixavam-se de que eu as omitia, sentiam-se transparentes, que dedicava mais delicadezas aos livros do que a elas; outras também que nunca tendo lido um, de bolso que fosse, achavam intimidatório da minha parte confrontá-las com essa fraqueza, sempre que me vinham visitar sentiam-se submersas por um imenso mar de palavras encerradas em livros, sussurrantes, assustadoras e achavam que aquilo era uma “cabala” minha e dos livros para as afugentar. Fugiam na primeira oportunidade e eu deixei-as sempre fugir, era o que queria no mais íntimo de mim, guardar a minha privacidade, em dedicação exclusiva aos livros

O amor aos livros é um amor maior. Prescinde do perfil unidimensional do real, os livros são um caleidoscópio infindável de reais, mundos paralelos sobre mundos paralelos, possibilidades inesgotáveis.

Na vida do quotidiano, os grandes amantes dos livros, fazem-se quase sempre acompanhar por um. É como sair de casa com sapatos, obrigatório. E mesmo que onde se vai não aconteça a necessidade de os abrir, e ler nem que seja uma frase de fugida, quando se sai de casa sem eles, e se dá conta a meio do caminho de qualquer lugar, fica-se na possibilidade de um episódio de pânico.

E só para dar alguns exemplos da necessidade extrema de se fazer acompanhar sempre por um, atente-se que: Nunca se sabe o que o dia reserva, pode-se vir a cair numa situação em que a companhia de um livro é necessária. Quando vai entregar o boletim do totoloto tropeça no tapete que não viu, pousa mal o pé, tem que se dirigir ao hospital, tem um tempo de espera enorme até ser atendido porque não é urgente. O que faz? lê um livro; a sua mais do que qualquer uma das outras, lembrou-se que tinham que passar por um centro comercial, para ver de uns sapatos que uma amiga de uma amiga lhe disse que só havia naquele dia, naquela loja daquele centro específico, com um preço que é sempre o melhor que se poderia encontrar, nem que se tenham que fazer cem quilómetros e gastar gasolina e pneus e outros desgastes e o preço final desses benditos sapatos ficar ao nível de uns Louboutin comprados na loja que os vende em exclusividade. A pretexto de estarmos cansados, procuramos um sofá e entretemos a espera que vai ser longa, na companhia de um belo livro; vamos para a praia, queríamos olhar para o mar e nada mais do que ter esse prazer simples.
 As abençoadas criancinhas querem construir infindáveis castelos de areia, e molhar os pés, colecionar conchinhas e molhar os pés, fazer bolas de areia molhada e atirarem entre si e para nós, e molhar os pés. Depois querem ir ao banho e ficam horas perdidas, quase em hipotermia, elas e nós, presos a elas a passarmos um terrível dia de praia, a nunca mais acabar. Então, corajosamente decidimos entrega-las à mãezinha que já se besuntou dez vezes de bronzeador e já se virou na cadeira o número de vezes suficiente para cobrir todo o seu corpo de uma bela tonalidade acastanhada. Desistimos, fugimos daquele cenário apocalíptico, sentamo-nos finalmente, em paz, à beira mar, a ler uma história inebriante, bem escrita, e contada, poucos têm esse dom de o fazer bem.

O exemplo mais forte da febre crónica dos livros, é o estamos sempre ansiosos para voltar para casa, ou então para um local recatado e silencioso para continuarmos a ler o romance que nos traz embeiçados pelo nó final, o remate de um bom livro bem escrito.

De todos os géneros, a poesia é a mais antissocial das leituras. Exige dedicação total, absoluta, sem olhos para mais nada. Um amante de poesia, entra numa espécie de vida monástica, em que as preces são os versos que lê, que decora, declama para dentro de si, no silêncio de uma sala de estar, claustros do seu mosteiro de reclusão.

Para se ver a importância vital das histórias que compõem os livros que amamos incondicionalmente no seu conteúdo e na sua forma, temos que contar seguida a história de um casal improvável unido pelos livros, que viveu uma espécie de tríade do Amor, uma relação a três, uma poligamia censurável pela sociedade, mas a forma mais apurada que eles lapidaram para viverem a plenitude desse amor que elevaram à categoria de um culto.







Deixar algo dito, que bem pode ser algo que nunca ninguém assim o tenha dito, tão bem e único, e por essa razão, vir oferecer algo de fundamental para toda a humanidade. Nunca se sabe.

Para garantir um compartimento estanque onde não haja fuga de pensamentos, forrou as paredes de livros, leu todos os que possui e a sala é grande. Não é uma biblioteca particularmente rigorosa, completa de nenhum tema em particular, é um macramé construído com os seus despojos de leitor voraz. Toda a vida comprou livros aconselhado pela sedução da capa, de um título mais sugestivo ou inesperado, da sensação táctil do toque das folhas, a textura do papel, a sua cor, tudo isto a acontecer simultaneamente sob as ordens do imprevisto, uma força incontornável da natureza.

Esse processo é comum a muitos leitores: são os livros que os chamam, que os atraem para si, pedem para ser abertos, lidos logo ali, pequenas partes, ao acaso. Duas frases interessantes é o que basta para se levar um novo livro para casa. Este personagem, que por comodidade mútua foi decidido chamar Raoul, nos raros momentos livres da sua carreira de Provedor peregrinou pelas livrarias e alfarrabistas afamados repetindo e repetindo este processo de apessoamento de livros e foi assim que constituiu o acervo que agora reside com ele nesse escritório-biblioteca, num esplêndido apartamento burguês, abastado, num bairro reconhecido de Paris onde as grandes, rasgadas, trabalhadas janelas dos prédios, espiam os passeios largos onde flanam pessoas bem perfumadas e finas e completamente alheadas do facto de um Ex-Provedor, estar nesse momento, imerso na leitura ou na escrita das palavras que fazem um livro.

Só recentemente, por estar reformado dessa nobre profissão das relações do comércio entre os homens, começou a pôr ordem na sua biblioteca de peças soltas e erráticas, querendo-a completar com as obras em falta de alguns autores fundamentais, rechear convenientemente de algumas correntes de escrita.

Há livros a que regressa vezes sem conta, outros, lembra-se, procura-os e presta-lhes uma visita mais ou menos demorada. Muitos nunca mais serão folheados, a menos que mudem de usufrutuário.

Como se constrói uma biblioteca? Juntando livros que tropeçam em nós, ou juntando segundo uma escolha determinada, com um plano, pensado, rigoroso?

No seu caso começou por tropeçar, depois treinou e apurou o andar, traçou um plano de viagens e aproximou-se – questão de gosto - da companhia das biografias e de algum romance clássico, desatendendo quase tudo o que se escreveu a partir da segunda metade do século XX. Uma modernidade enfadonha, degradada nos temas, pouco edificante. Foi o século em que se começou a escrever mal – raramente alguma coisa nova arrebata - que vende por acção das campanhas de marketing e das montras das grandes superfícies e das feiras de livros. São estes preconceitos que cresceram na cabeça de um homem conservador e não há forma de ele se fazer a uma leitura de um autor contemporâneo. Falta-lhe um amigo jovem que o encaminhe nesse sentido, mas ele não participa em tertúlias intelectuais, é eremita por escolha própria. A sua colecção tem lacunas assinaláveis.

Quando um leitor apaixonado morre, que destino levam os livros das suas estantes? Talvez ninguém mais os leia, sendo reduzida a probabilidade dos livros que se fizeram companhia nessa sala durante décadas, continuarem juntos. Alguns vão sobreviver, outros serão descuidados. Poucos conseguirão uma guia de transporte para uma nova estante e terão o respeito que merecem. Uma biblioteca sem dono fica órfã, os livros são objectos de uma relação única, fiéis, raramente encontram um novo amor quando lhes desaparece o parente mais querido.

No universo das relações entre seres vivos e não-vivos, os livros são os únicos não-vivos, não-pensantes que manifestam um amor incondicional para com os seus donos. Nunca os vão abandonar, estão sempre disponíveis, a todo o momento, para reconfortarem ou distraírem o amado e mesmo para serem maltratados, um masoquismo piedoso que os livros têm.

Nos cadernos de apontamentos que Raoul compra na ponte Vecchia de Veneza – obra artesanal de bons cabedais e papéis finos, negócio familiar, pai, mãe, filha e caros – dedicou-se à tarefa de recuperar os trânsitos passados na sua cabeça, guardados (os que se podem salvar da devastação do tempo) para memória futura.

Estimando maduramente as opções decentes para ocupar a lenta passagem do tempo que acomete um indivíduo liberto de obrigações profissionais e não querendo dedicar-se à prática de actividades licenciosas e fúteis, impróprio das altitudes que escalou na vida, chegou a um acordo educado com a escrita, uma ocupação inócua e inconsequente, onde encontrou uma saída airosa para os milhões de palavras despejadas e armazenadas nos cadernos venezianos à espera de melhores dias, que foram cuidadosamente preenchidos, com datas no começo e no final, para darem enquadramento cronológico aos acontecimentos da vida da sua pessoa.

Pode ser que um dia haja quem tropece na sua história, um familiar longínquo que ainda não se sabe que existe, um amigo mais novo, a sua própria empregada por entreposta pessoa, porque não? Esse alguém vai pegar na tarefa de reconstruir os seus caminhos de escrita, lê-lo cuidadosamente, gravar testemunhos dos que estão vivos, classificar a obra, e poderá sair uma belíssima biografia, que se for honesta é a melhor homenagem que se pode prestar a um escritor depois de ido.

Para já ainda está vivo, de boa saúde sem nada de maligno a germinar que seja detectável. Escreve com afinco, abundantemente.

A responsabilidade dos afazeres públicos – que tem custos pessoais elevados – nunca lhe deu tréguas, sempre emaranhado no trabalho. É chegado o momento de recuperar tempo.

Raoul é um homem austero e a sua imagem exterior espelha-o, o que isso quer dizer: uma apresentação regida pela palavra formal, discreta na cor dos fatos, das gravatas, azul-escuro, com concessões ao cinzento; nas camisas, brancas, raras as outras cores. Nas palavras com que aborda os outros para tratar das coisas comezinhas do quotidiano, ou para as mais formais das comunicações, faz uma escolha criteriosa, uma contenção na demonstração das emoções, sem alteração detectável de estados de alma.

As palavras que ele utilizou toda a sua vida para se dirigir ao mundo, foram quase sempre escolhidas de véspera – como as gravatas – racionais e aborrecidas, porque demasiado coloquiais, uma linguagem quase sempre técnica, sem liberdade para os adjectivos e os advérbios. 

Hoje essa vida espartana - o cinto sempre na última casa - reflecte-se na sua escrita, por isso adora os clássicos, pela contenção da descrição dos sentimentos e das intimidades de cada um.

 A reforma tirou alguma pressão, podia finalmente despir algumas camadas sombrias de formalismo, pôr-se mais à vontade, vestir um robe chique cómodo, substituição perfeita para os paletós do passado. Autorizou-se a isso e despartilhou-se.

A reforma é um regresso à infância, dizendo melhor, é a verdadeira infância. A primeira passou como um relâmpago sem que se estimasse, esta encara-se com calma, estica-se mais o tempo, lentifica-se. Traz consigo o lastro da existência, a memória, a derradeira companheira para as melhores brincadeiras ainda para serem brincadas. É o regresso do amigo invisível, tudo se repete mais ou menos igual, em circunstâncias diferentes, assinaladas pelo tempo e as rugas na cara.

Quando se vê um velho a falar sozinho, há quem se compadeça e desvie o olhar, vendo nisso sinais da senilidade, da senescência, o que assusta todos pela eminência presente de lhes vir a acontecer. Acontece que essa é uma apreciação errada: o velho está a falar sozinho porque está a trocar impressões com a memória, o tal amigo invisível.



O senhor Provedor consome endemoniado todos os segundos, para resgatar dos depósitos todas as frases e todas as ideias soltas que compuseram a sua “pegada”. Quer inventariar novas coerências, actualizações de contextos verosímeis à luz do presente. Um homem que viveu a vida nos ditames da lógica analítica, não se oferece a devaneios descontrolados na ficção. Ficção sim, mas comedida.

Metódico portanto – só assim reencontra nexos nos cadernos de apontamentos, uma biblioteca ambulante que cabe num saco a tiracolo, que sejam dois. Transplanta os conteúdos para a folha virtual do computador com cuidados de filatelista, liga com a decência formal de um Provedor na reforma, os fios das palavras, cosendo textos irrepreensíveis e de um classicismo rendilhado por algumas excitantes incursões nesse novo sabor libertino, que agora se concede, aos poucos, desde que desapertou o nó da gravata.

Como cidadão de muitos contactos e favores em dívida de cobrança, não foi difícil conseguir uma editora de nome disposta a apostar nele. Nem se discutiram percentagens - ele não corre por dinheiro – e quanto aos títulos, liberdade total de escolha.

Nos últimos dois anos, os primeiros na sua nova situação de excedentário, editou um livro de memórias (que deve ser sempre o primeiro quando se teve um cargo público e se pode vir a figurar nos manuais da História) e um de pequenos contos – na fronteira com as crónicas, difícil de classificar, foi mais uma experimentação de estilos e construção de pequenas histórias, para ganhar mão e que acabou por sair bem e porque não editar, que foi o que fez.

As memórias venderam pouco: os amigos e conhecidos do núcleo muito exclusivo da sua corporação. Os contos tiveram algum sucesso, vai na terceira edição. Não escreve mal e os contos leem-se rapidamente.

Motivado pela memorabília e embalado na esperança de ultrapassar a barreira psicológica das duas páginas A4 totalmente preenchidas por ficção da boa – de mão feita e ginasticada - lançou-se ao maior dos desafios nesta arte traiçoeira: escrever um romance.

Escrever um romance não é tarefa fácil. Pede personagens, que também basta um. Idealizar, germinar, acender o interruptor da luz de uma nova vida, cuidar e afastar do caminho as ervas daninhas, protegendo para crescer, alimentar até fazer-se homem, tudo isto compactado em páginas de livro impresso, um trabalho imenso, uma obra de grande arte e muitas dores de cabeça.

É como gerar e criar um filho.

Lembram-se as dificuldades passadas, a deitar contas à obra, o desalento, a euforia, as noites em branco. E são essas que envelhecem.

Foi por isso que o Senhor Provedor, agora já não, da Câmara de Comércio de Bordéus resolveu primeiro os assuntos da vida, os mundanos e os profissionais, libertando-se do quotidiano enfadonho na contabilidade das contas e dos rácios, da justiça dos seus julgamentos, das decisões difíceis, algumas porventura menos acertadas, matérias que ocupam a cabeça dos homens sérios quando fazem balanços em mudanças de ciclo.

Foi assim, que resolvidas essas questões humanas, assumiu os riscos tardios da paternidade, mãe-pai a tempo inteiro. Para levar o projecto a bom termo contractou uma barriga de aluguer, aninhada nos esconsos de uma rede neural complexa no seu cérebro e inseminou-se a si próprio. Ficou grávido de um novo ser. Um ser literário.

Neste momento - é na fase gestativa que ele se encontra -anda tão absorto que se esquece de comer. Que o seu primeiro romance seja uma obra-prima, ganhador de prémios anunciados nas folhas dos jornais, é o mínimo que a sua humildade pede: ele não é um homem humilde.

Não conta para a estatística da sua produção literária – assim aconteceu por decisão própria e ponderada - o versejo, debitado em folhas soltas da mais indiferenciada das proveniências e texturas, em momentos e ambientes vários, escrito com canetas de aparo de ouro. Para escrever, que seja com estilo.

Esta fragilidade – do poemeto - é um pequeno vício que ele esconde, que espera modesto desfecho, devaneios escondidos em local próprio, alguém os descobrirá um dia, na inventariação dos espólios dos baús que os escritores gostam de ter em casa.

Pode parecer e se calhar a descrição deu a entender, que este homem vive sozinho, afastado da espuma dos dias, recolhido no seu escritório-biblioteca. Não, há mais uma pessoa naquela casa.

Justina gosta dos livros. Justina areja casas, suga-lhes o pó. Concilia estes dois afazeres sem incompatibilidade – a limpeza e a leitura - há quarenta anos. Trabalha fielmente agradecida, para o Senhor Procurador e outras pessoas importantes, com a discrição de invisibilidade eficaz - não se dá por ela - uma gente ensimesmada de timidez, os emigrantes oriundos dos restos da Europa, meridionais, antes do começo do fim do mundo civilizado.

Teria muitas histórias para contar – quem não as tem - se se desse ao cuidado (para quê? se morto se vai ser já amanhã, e é deselegante andar por aí a falar dos outros) de fazer apontamentos do que viu e ouviu nesses anos de emigrante. 

Todo o seu acervo de peripécias está na cabeça: não vê, com razão, proveito em desempacotar episódios antigos. Quando à noite chega a casa - o auge do seu dia -celebra a vida e a sorte que ela lhe deu, em encontro íntimo com um cálice de medronho, prazer quântico mais proveitoso do que puxar pela memória das histórias alheias. É também uma mulher de fé, cristã, e frequenta a paróquia do bairro

Justina teve um passado, numa aldeia de pescadores no Algarve antes de chegar a Paris, dado irrelevante o Algarve. Já não há aldeias de pescadores no Algarve, só turistas, e locais, todos muito espertos, que ventilam os apartamentos dos turistas e espanam as poeiras de algumas.

Russos exploram bares nas praias e assam sardinhas, descobriram a sua Crimeia ainda mais a Sul. Ela nunca mais voltou, pelo que não sabe nada dos russos, pouco lhe importa quem vive ou deixa de viver no Algarve, um local que fez questão de esquecer no dia em que saiu de casa – se pode chamar casa aquilo – no desespero da sobrevivência. Este povo está sempre a não recordar-se da palavra refugiado, não há século que não a vista.

Está há tanto tempo em França que lhe custa o Português, não no falar - fez uma síntese do sotaque parisino com laivos folclóricos do sotaque algarvio, e os ouvintes gostam – mas no ler, e se do falar ainda o usa quando telefona para os farrapos de família que deixou nas origens, o lar não lhe dá préstimo, porque não há nada para ela ler em Português a não ser o Correio da manhã e a Bola, no bar da sede dos amigos de Mougadouro, o clube que fica mais perto de sua casa, onde vai de vez em quando beber uma imperial e saber as novidades desta comunidade pacata, sempre com os ombros descaídos e uma má postura na espinha dorsal.
Justina fez-se uma profissional das mais competentes no ramo, o ramo da intimidade dos lares alheios.

Com tantos anos investidos no negócio das limpezas - e boas referências – adquiriu um conhecimento profundo dos seres visíveis e invisíveis que habitam as casas. Fez doutoramento no mobiliário, nos objectos de decoração que as pessoas se rodeiam e que espelham as suas personalidades. Estes detalhes absorvidos pelo convívio prolongado transformaram-na igualmente numa confidente e amiga, já que por emaranhados que ela e todos desconhecemos, sempre serviu pessoas solitárias.

Os homens ou desabafam com frequência ou a vida fica insustentável. E escolhem os confidentes mais improváveis, ou os que estão à mão. Quem mais perto do senhor Provedor, um solitário dos afectos, que a senhora Justina, sempre ao virar da sua esquina nos últimos vinte anos, do quarto para a sala, com longas caminhadas no corredor comprido do apartamento, ou dirigindo a orquestra de tachos e utensílios de cozinha, chefa de mão cheia esta mulher.

Os seus talentos são naturais e fruto da experimentação. Inventou a fusão do foie gras com a jardineira portuguesa, deixando o patrão sem reacção, atónito na pontuação a atribuir ao prato, esquisito e bom. É raro o jantar em que Justina não seja chamada para receber elogios e responder a arrastadas perguntas sobre o seu dom da confecção. Há momentos em que se senta à mesa, ela fala sem pressa, ele ouve com prazer e vai fazendo perguntas prolongando o prazer da sua companhia.

De volta à cozinha, com um brilhar de olhos de contentamento que é único – só visto – brinda-se a si mesma com um bom copo de branco.

Justina, só, em Paris. Fosse de falar, e os abalos que poderia causar à Republique Française, guardadora de confissões, colecionadora de segredos – a serem revelados – que abalariam a confiança no Estado, alguns tão extravagantes que seriam difíceis de conceber e de acreditar. Isto porque para além do senhor Provedor ela faz ainda serviços em mais três apartamentos do prédio, onde vivem altos funcionários da Nação, alguns com vidas privadas recheadas de episódios picantes e vícios de porta fechada.
O senhor Provedor é um homem pacato.

A República pode estar descansada, Justina não é mulher de desfeitas, segredos são para levar para a tumba, cremados com as miudezas do corpo.

De todos os patrões, o Senhor Provedor e Comendador é das pessoas que mais estima. Não se dá por ele enrolado no silêncio o dia inteiro. Justina afogueia-se de inquietude e vai e volta, abeira-se da biblioteca-escritório para saber dele, para se aquietar a si mesma, porque mesmo vendo-se pouco, são dois corações a baterem juntos na contenção do mesmo espaço. Falta lhes faria se um dia se faltassem.

O que já foi Provedor, quando publica um livro, oferece o primeiro exemplar autografado a Justina. Ela sente-se na obrigação de retribuir a gentileza e lê o livro. Ele nem imagina que ela o poderá ler, a sua intenção fica-se pela simpatia de oferecer um exemplar à sua mais fiel colaboradora, diria amiga, não fosse manter o formalismo de classe, que nunca irá abandonar. Mas Justina não é uma psicóloga de um aspirador qualquer: se um livro é para ler, que seja lido. É como as igrejas, locais que tanto gosta. Se são bonitas e transmitem sensações de paz e têm as portas abertas, então é para entrar, o que faz e reza, e todas são suas preferidas desde que sinta a inexplicável sensação de bem-estar espiritual, que num sentido mais lato é paz.

Mesmo que o tema e conteúdos não entrem à primeira – o ex-Provedor é um intelectual, não se contenta com palavras correntes, escreve-as difíceis e raras de encontrar – ela não desiste à primeira tentativa, não desiste até compreender. 

Para isso, nestes anos todos, coligiu informação e escreveu para consumo próprio um manual de instruções para ler livros, ferramenta infalível para descodificação de entendimentos e compreensões. É um manual que contém todas as respostas para todas as situações, até as mais complicadas.

Como tira as poeiras de muitas casas e recheios, e anda tudo numa euforia de editar livros, ela encontrou uma solução expedita para interiorizar e compreender os livros que os patrões lhe oferecem. Foi pensando nesse assunto enquanto passeava o aspirador pelos quartos e pouco a pouco construiu mentalmente o manual, que depois transcreveu num pequeno livrinho - fica melhor, tudo arranjadinho, como deve ser.

Transcrevem-se partes do seu manual: “Ler os prefácios. Às vezes são mais importantes que o que se segue. Não é raro o leitor arrepender-se de ter continuado a ler, perdeu tempo e podia ter passado para outros livros. Só o prefácio seria suficiente. Se persistirem dúvidas, quando terminar de ler o livro, e for da opinião que o que leu não faz sentido, volte ao prefácio.”

“Se o prefácio estimulou a curiosidade, ler as primeiras dez páginas do primeiro capítulo, é suficiente. Se as palavras foram bem emparedadas em boas frases, dificilmente o escritor escreverá melhor que as primeiras páginas. Poucos, quase raros, os de génio, têm resistência suficiente para irem mais longe. Alguns, espertos, escrevem igualmente bem as últimas páginas, a ver se pega. Na maior parte dos casos o que entretanto se passou é pouco importante, e fica na memória o começo e o fim, e consequentemente na cabeça do leitor a ideia que leu um bom livro.”

“Se for mesmo muito teimoso leia aleatoriamente uma dúzia de páginas no âmago da obra, pode com isso aumentar a irritação de estar a desperdiçar tempo ou convencer-se de uma vez por todas, que o livro merece ser lido do princípio até ao fim. Finalize a tarefa lendo com a maior das atenções o capítulo final.”

“Se não entender uma frase, comece por ver o significado das palavras que a constituem, uma a uma. Se ainda assim não entende, pergunte discretamente a alguém que conheça e tenha lido o livro. Tente o contacto (se ainda for vivo) de quem a escreveu e pergunte. Hoje é fácil, eles passam a vida a serem exibidos nas feiras e festivais. São convidados para falarem sobre todos os temas e eles vão, não é fácil ganhar a vida.”

“Fuja da opinião dos académicos que sabem sempre mais do que os autores que estudam. Dos críticos literários também, escrevem melhor que os escritores mas nunca produziram nenhum livro pela razão simples de não estarem para aí virados, só por isso.”

“Uma dica útil para não ser apanhado em contradições: sublinhe e decore frases que lhe parecem relevantes e faça a sua própria história sobre elas. Numa situação de aperto, debite com convicção e sem gaguejar a sua história."

 "Nenhum intelectual terá coragem de a confrontar e acaba de ganhar assento no Olimpo dos intelectuais. A partir desse dia, pode dizer todas as aneiras que lhe vierem à cabeça, que os seus pares vão reverenciar os seus ditos brilhantes e os académicos vão queimar as pestanas a construírem teses ilegíveis sobre o que você disse."

“Estes procedimentos simples habilitam a todo o género de discussão e confronto, com conhecimentos adquiridos e irrefutáveis sobre as matérias escritas e que se vierem a escrever.”

“Considerações fundamentais a ter em conta e atenção:
Quando se dá de caras com um bom livro, este manual não pode ajudar, o leitor fica automaticamente desarmado, vale tudo, ler, reler, andar para trás, para a frente, ficar com ar de parvo, pasmado, de boca aberta, em pose sonhadora, com o livro aberto pousado no colo. Voltar a ele e emocionar-se.”

“Um bom livro revolve os miolos e as entranhas, deixa as pessoas frias emocionais, estas geladas, revira tudo, altera todas as condições, é um encantamento puro.”

“Por último, ao confrontar-se com um idioma que desconhece, estas indicações deixam de ser válidas, não vale a pena fazer esforço e insistir numa leitura impossível, já que o anterior método de dividir as frases por palavras, saber o significado de cada uma e daí reconstruir o sentido da frase, não faz sentido, e o resultado final não é bom. Todos os livros deveriam ser lidos nas línguas em que foram escritos. Da poesia nem se fala. As traduções são aproximações sempre longínquas. Se o tradutor for um artista, a obra traduzida é um livro novo, diferente do original. Se o traductor for mau, a obra é um produto híbrido.”

O Senhor Comendador, desconhece a existência deste manual, mas estranha as qualidades da Justina no entendimento das matérias e temas dos seus livros.
Poucos patrões questionam os domésticos sobre os livros que escrevem, sendo emigrantes ainda menos, se bem que ser português é menos mau que argelino: são dóceis e recatados.

A fronteira do mar mediterrâneo marca a linha de fractura final: tudo o que fica a sul são espécimes arcaicos.

O senhor Provedor não tem a urticária da xenofobia. Estima muito a Justina, pela sua lealdade e fidelidade, e o que mais estima é ter uma empregada que trata da casa e ao mesmo tempo desempoeira a sua mente, dando a pedido, conselho pessoal sobre os temas filosóficos do mundo. 

Apesar de ter cultivado uma cultura enciclopédica e diversificada – eufemismo propositado - ele sabe muito pouco do país da sua estimada empregada, desconhece a sua cultura. Leu alguma coisa de um Rodrigues, campeão de vendas, , mas ficou com sede de literatura; dos clássicos algum Pessoa, mas ler Pessoa pouco diz do país, apesar de ele ter dito tanto, na descrição dos seus “eus”, deitados numa chaise longue, algures num edifício de escritório, num quarto onde também havia uma chaise longue, numa rua anónima de uma quase branca e pouco maior do que uma aldeia grande, uma cidade do país de Justina.

Ficou ao Comendador – sim o Senhor Provedor recebeu uma Comenda no 14 de Julho – nas leituras do poeta, uma ligeira desconfiança sobre essa coisa estranha da melancolia em português suave (precavido que é faz os descontos das traduções, é impossível replicar o original um sentimento que não o é, uma emoção prolongada, um estado de realidade, uma razão enviesada. Quando esporadicamente pensa sobre isso, num ou outro momento fugaz em que observa mais atentamente a Justina, já teve a ténue sensação de reconhecer esse inominável, um modo de se fazer a uma imagem aproximada de entendimento, espelhada no canto do olho da sua empregada fiel. Como se a melancolia estivesse a espreitar do lado de dentro de si, encostada ao beiral da janela dos olhos, a medo, timidamente, vendo não se querendo dar a ver.

É mais ou menos aceite sem discussões infindáveis que ninguém escreve só para si, e quem escreve, mesmo abjurando, quer deixar notícia ao mundo. Ou então escreve porque está cercado pela solidão e as palavras são a sua maneira de enganar a vacuidade do tempo que vive e passa. Só escrevendo se apazigua a enfermidade dilacerante da alma. O correr da pluma é a gulosa morfina que combate a dor quase insuportável, suavizando o fluir dos pensamentos, lentamente, até que esmoreça nos sonhos a última chama do coto da vela.

Não há dúvidas que este homem ainda tem muito para escrever, e que assim seja, enquanto houver livros Justina pode dormir descansada: mantêm o trabalho de absorvedora de pós, até que um dia venha a reforma. Pode ser que venha a ser acometida do hábito da escrita, ou então a contar histórias em voz alta para quem a ouça, tem jeito.
Como se pode ver, os escritores as mulheres a dias, algumas, também vivem sobre os efeitos dessa categoria elevada do Amor incondicional.

Neste caso, doença ou fraqueza, porque são colecionadores compulsivos dos livros que guardam as palavras.

Diagnosticam-se facilmente, um amante das palavras, só as ama concupiscentemente de duas maneiras: lendo-as ou escrevendo-as. No caso do leitor ele entende-se a si mesmo como amante exclusivo das mais belas. No caso do escritor porque as palavras que escreve voam desenfreadamente para os píncaros do Olimpo, local onde aparentemente todos querem estar.

Incluem-se os escritores no grupo dos coleccionadores, porque é o que eles são: açambarcadores de palavras, que as alinham nas páginas dos livros, que representam para ele as estantes de vidro do colecionador dos soldadinhos de plástico, ou de chumbo.

Salvo raras excepções devidas a transtornos vários, nenhum coleccionador abandona a sua colecção. Como nos casos anteriores, é uma relação fidelíssima, sem divórcio.

Trata-se pois de um amor sem dúvida incondicional, o dos colecionadores de coisas tangíveis. Os das outras têm outro nome. 


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