O roteiro de uma vida de colecionador- um amor muito especial,
pelo objecto sem vida a que se oferece o sopro da palpitação, na transferência
que o amante faz para o objecto amado – pode ser esfiapado ligando as pontas
das colecções que foi fazendo nos anos de acumulador preciso, metódico, um
compromisso pessoal que se leva até ao fim do caminho.
Constrói-se a história dessa pessoa observando os objectos que
ele guardou na sua arca dos tesouros e que desempoeirou constantemente,
tocando, pegando, afagando com um desvelo que não é comum aos mortais comuns. Dados
mais do que suficientes para se fazer um roteiro de um indivíduo.
Todas as
colecções, não havendo pistas e ligações que assim o indiquem, têm entre si uma
afinidade, constituem o padrão de quem as colecionou, desenham uma impressão
digital, são a identidade do seu possuidor.
Colecionar é amar, um amar que se define pelo possuir. Quem
possui tem sobre o amado todo o controlo da relação. O possuído é inerte,
deixa-se amar, não porque não tenha nada a dizer sobre o assunto, mas porque é
um objecto e como tal não tem opiniões. É um amor que só dá ciúme quando ainda
não se possui algo que na perspectiva do colecionador é a peça fundamental,
para completar, fechar a colecção, dar um sentido à mesma. Com todas as peças ainda
não possuídas é assim.
«Em verdade tenho poucos Legos,
perdem-se muito. São peças pequenas. Sou uma criança e como tal sou distraído, esqueço-me
rapidamente de tudo em todo o lado deixamos tudo, mas ser assim é um dos
encantamentos irresistíveis de ser criança.
A verdade também, é que conseguimos demonstrar um apego
incalculável por uma peça pequeníssima de que só nós nos podemos lembrar, por
esse apego, depois de a termos deixado nos interstícios do sofá com flores da
tia Benedita na visita que lhe prestamos neste findo fim de semana tauromáquico
e religioso. Forçados a isso.
A visita foi prestada pelos nossos pais, nós æ força,
uma vez por ano para os festejos da Nossa Senhora do Rosário da Moita, interesseiros, esse é o verdadeiro pretexto, visitá-la por que tem uma das melhores varandas para se apreciar o cortejo e as largadas das bestas, a correrem desenfreadas, assustadíssimas, com a maralha a gritar, a incitar, a levar umas valentes cornadas porque o merecem e bem.
uma vez por ano para os festejos da Nossa Senhora do Rosário da Moita, interesseiros, esse é o verdadeiro pretexto, visitá-la por que tem uma das melhores varandas para se apreciar o cortejo e as largadas das bestas, a correrem desenfreadas, assustadíssimas, com a maralha a gritar, a incitar, a levar umas valentes cornadas porque o merecem e bem.
Os meus pais gostam disso, podia ser pior.
Nada mais, os adultos são todos uns cínicos, e refiro-me que já
se entendeu, à visita forçada. A tia Benedita é boa pessoa, sabe desse
artificialismo, mas não diz nada, recebe-nos bem. E nós – eu e o meu irmão - vamos
a contragosto, estacionamos no sofá de flores, como anjinhos, a brincar com as
nossas coisas, enquanto os adultos, na varanda gritam olés ou benzem-se, entremeando
as duas manifestações de alegria. Nós aguentamos no sofá até começarmos a
atirar os carrinhos, os legos, à cara um do outro. Chegados a esse ponto, somos
obrigados a ir para a varanda, assistir à festa.
Vê-se a civilização pelos brinquedos que se inventam e este só
podia vir dos nórdicos. As permanentes temperaturas frígidas e as longas horas
de ausência de claridade, ou o seu oposto, e para que as cabeças não congelem,
obriga-as a estarem sempre a trabalhar, em fermentação contínua. Produzindo
pensamento. O corpo para acompanhar e não ficar rígido, acompanha as cabeças.
Põe as ideias em prática, dá forma ao que foi inventado, sai do abstracto, pensamento
inicial, e molda contornos tridimensionais. O Lego é uma das grandes invenções
da humanidade. As touradas nem por isso.
Foram a minha primeira colecção, e dei o meu melhor para ter as
mais que pude: as peças oferecidas em natais e aniversários, passagens de ano
escolar com bom aproveitamento, as que não perdi e as que consegui surripiar,
aos amigos mais chegados. Aos outros também, mas ia menos a casa deles, e eram
mais desconfiados, e ou os bolsos dos calções eram grandes, ou se estavam
justos, dava nas vistas, e eles não eram parvos, sabiam ao que íamos.
Abandonei os Legos por volta dos treze anos, mas ainda hoje
tenho nostalgia por eles, não sei se não vou acabar os meus dias a tentar
encaixar legos com um olhar vago e uma motricidade fina totalmente descalibrado,
pelo menos tenta-se.
Vieram a seguir os soldadinhos de plástico, grandes batalhas, de
manhã à noite, numa concentração absoluta, posicionado as forças, atacando,
batendo em retirada, montando quartéis-generais, hospitais, casamatas,
organizando transporte, logísticas, e acima de tudo, fazendo prisioneiros,
muitos, que ficavam do nosso lado, nossos. A propriedade é uma coisa muito boa.
Estes bonecos vinham em caixas de cartão, tinham um preço
razoável e estavam disponíveis vários tipos de tropas: de infantaria, de
paraquedistas, americanos, alemães, da guerra da Sucessão, índios. Tal como os
Lego, instalou-se nos anos que dedicamos aos soldadinhos, uma febre de os colecionar,
de os ter todos, de os colocar nas prateleiras do quarto, perfilados, nós
comandantes, a passarmos revista às tropas. De preferência na parede em frente
à cama, para que deitados olhássemos para eles, todos, ali, adormecendo a
sonhar com batalhas vitoriosas e a sentirmo-nos protegidos, com um exército
daqueles, em prontidão, para nos salvar.
Alguns tinham a paciência de os pintar, trabalho de relojoaria,
minucioso, pincéis finíssimos, as mãos contidas, uma a segurar no pincel, a
outra, guardiã da primeira, a minimizar os nervos, os tremores. Mesmo assim era
muito difícil não borrar e nalguns militares, a cara ficava da cor da boina, o
dólmen escorria para o calção, a bota tinha a cor das pernas, não se
distinguiam uma da outra. Porque ficaram descompostos, quase inúteis, não os
usávamos na linha da frente, ficavam na retaguarda, na logística, manutenção
dos serviços de apoio.
Raramente os miúdos conseguem guardar intactos os brinquedos,
são os seus companheiros, sofrem o desgaste do uso, ou são substituídos por
novos e esquecidos. Os que não se perdem são guardados nas caixas de cartão que
enchem saguões com teias de aranha. Fica muita história soterrada nos pós dos
sótãos, mas como dizia um amigo meu, se não se usa é porque já se esqueceu, e
não faz falta.
Às vezes por sorte, ou
uma casualidade que também é amiga desta, encontram-se coisas do passado, e
revivem-se imagens, a nostalgia no seu melhor. E as lembranças. Atenção as
lembranças não são memórias, são mais esbatidas, desfocadas, a sépia. As
lembranças são das coisas secundárias, as memórias dos acontecimentos sérios da
vida.
Quase adolescentes e a entrar na fase em que as colecções passam
a ser o número de asneiras que se pode fazer num dia, sem consequências
catastróficas para o que asneira, veio a febre dos aviões e dos barcos. Em
pequenas peças para montar, com manuais de instrução complicadíssimos,
minuciosos, para serem coladas. Os acabamentos eram autocolantes ou então
igualmente pintados. Vendiam-se em lojas de especialidade e nalgumas drogarias,
pequenas latas de tinta só para esse efeito.
E os comboios? Vieram na linha de fronteira da primeira idade
adulta, pelos dezoito anos. A primeira porque naquele tempo havia duas idades
adultas: aos dezoito e aos vinte e um anos. Esta a mais importante, já se podia
entrar no casino.
A colecção de comboios dava-se melhor com os adolescentes classificados
no grupo dos atinados. Eram desinteressantes para brincar, agarrados como
percebes aos livros de estudo, mas mais tarde em querendo brincar com eles, já
não nos atendiam sequer o telefone, ricos, com bons empregos.
Magníficos, um mundo inesgotável de acessórios, cidades
inteiras, houvesse espaço. Infelizmente não era para todos, era uma coleção
cara. Quem os tinha, apanhava frequentemente os pais e os avós a brincar com
eles, encantados, a verem uma locomotiva que produzia vapor verdadeiro, a sair
de um túnel, e apitava, apitava, e uma senhora estática, com um lenço na cabeça
a acenar uma bandeirola que não acenava, numa passagem de nível, onde aguardava
uma carroça e os seus constituintes, e do outro lado da via um motociclista com
dois monóculos revestidos de cabedal nos olhos, postos na estrada.
Quem chegou à fase dos comboios e dos tão preciosos que nem das
caixas saiam, tornou-se um colecionador a sério, um profissional. É essa a
minha história, apesar de nunca ter colecionado comboios por ser filho de
posses curtas.
Esse vicio, tornou-se um amor, ou foi um amor que se tornou num
vicio. Não sei, estou indeciso, baralhado, não o consigo dizer. São as duas
coisas juntas, uma osmose.
Se eu pudesse colecionar tudo, se tudo fosse meu, só assim me
realizaria plenamente. Mas ninguém consegue colecionar tudo. Talvez Deus,
talvez ele não perca pequenas peças, nos recônditos dos sofás do céu. Só ele teria
tudo se quisesse esse privilégio, e com o espaço infinito, para exposição todas
as suas colecções.
Só que aborreceu – não há uma história que não se fale dele - acabou
a obra em mãos, em muito pouco tempo, sem mais nada para fazer que lhe tenha chegado
à mente, uma das mais brilhantes, e reformou-se. Deve ter uma boa pensão porque
é ele que assina as autorizações das pensões de todos, e ainda para mais, sendo
uma reforma eterna e não ter de trabalhar mais, como é que há sistemas, por
muito bem pensados e geridos que sejam, que aguentem reformas dessas?
Casmurrou e num dia de indisposição que acontece está bem,
compreende-se, culpou os homens por isso, por não os ter conseguido criar ainda
melhor e ter ficado esgotado e sem boas ideias depois de os moldar com o barro
que se fez carne e osso. Tivesse-lhes pedido opinião sobre os assuntos da
Criação, para poder exigir pagamento de contas. Num capricho, nesse dia aziago,
lançou-os à sorte (palavra dúbia), enredou-os nas desilusões do livre arbítrio,
tirou-lhes a imortalidade e eles ingénuos e crentes, aceitaram sem discutir.
Naquele tempo estavam por inventar os ateus e os anarquistas.
Não havia ninguém para dar luta a deus. Os filósofos também só apareceram mais
tarde, e alguns acabaram por dar o braço a torcer pela religião. Quem faz
muitas perguntas, é geralmente desconfiado, ou dá o dito por não dito.
Depois desse acto único parental geral de parir os homens em
seis dias, e porque entrou numa depressão, há mesmo quem afirme tê-lo visto a
chorar pelas nuvens, solitário e sem amigos. Os que se aproximam dele são os tementes,
os fiéis e os cínicos. E é a estes últimos que ele mais ama, porque o entretêm,
dizem tudo o que ele quer ouvir.
Deixando por agora deus, não tenho palavras para justificar a
inquietação – que traduzo como ansiedade instalada - que experimento até
encontrar e possuir as coisas que procuro, que por uma ou outra razão faltam
para completar a colecção, sendo que a minha é inesgotável, reproduz-se por
geração espontânea, do nada, sempre incompleta, faltará sempre alguma coisa.
Muitas vezes procuro coisas que nem sei se existem, onde estão, se as posso
ter. Entro em febres persistentes. Num estado estranho de possuimento, um demónio
entra em mim, com um mau feitio que só eu me aturo. Menos mal, como estou
sozinho em casa com as minhas colecções, não produzo violência doméstica. Nunca
me deu para partir nada. Ficaria ainda mais doente.
Sofro um constante sentido de posse sem possuir, ciúmes em
abstracto que me queimam, uma inveja corrosiva dos que possuem o que eu não
possuo e que devia ser meu. Chego a pensar – logo tiro essas ideias da cabeça –
que era capaz de roubar, de me prostituir para as ter. Sendo este sem dúvida um
tipo particular de amor, é o mais ácido deles todos, o amor que sai à rua de
braço dado com a inveja.
O que ainda não habita as minhas prateleiras é o mais desejado,
e no momento em que o vejo na segurança das minhas mãos, nem sei como o
descrever: é uma coisa sexual, uma luxúria, húmida, um orgasmo atómico. Devasso
avidamente acariciando as suas entranhas até me saciar, orgiástico.
E após esse orgasmo que é múltiplo e em cadeia, quando já
estabilizei a respiração, os suores, os movimentos corporais involuntários,
abraço-me com desvelo a ele, e olho-o como um pai devasso insuflado de uma dose
de amor que é impossível explicar.
De resto, essa é uma das características que identificam os bons
colecionadores: não esquecerem uma única peça da sua colecção, por mais vasta
que seja, e com a maior das regularidades, meterem-se na cama com ela, que é
uma forma de ilustrar a ideia que se pretende passar.
A minha colecção é impossível, nunca termina. Deixa-nos a vida
toda na expectativa, à espera de um final feliz, um momento de descanso, uma reforma
para sair pelo menos um pouco, passear, conhecer alguma coisa nova, não se
chegou a ter tempo para olhar para nada, e agora começa a ser tarde.
Acaba invariavelmente da mesma forma para todos: a despedida
deste mundo, de forma ingrata, sem se abrir a última encomenda, chegada no mesmíssimo
segundo da nossa partida, já entretidos a encomendar a alma ao senhor. Uma
encomenda que nunca será resgatada ao armazém dos correios. A menos que os
parentes lá vão. Nós mortos, sem lhe pudermos tocar, a peça que tantas insónias
nos deu, por quem esperámos tanto.
Todas as colecções são difíceis, como o são as amantes fugidias
e adulteras, impossíveis, mas as mais fogosas no amor, porque não se deixam
possuir completamente. Deixam-se comprar efemeramente e no dia seguinte
despertam na cama de outro desconhecido, enlaçadas nos seus braços, fazendo
exactamente as mesmas juras que nos tinham feito na véspera, de uma forma tão
convincente, que por momentos chegaram a emocionar-nos.
Eu só coleciono livros – serei bibliófilo, mas é uma palavra com
que não me dou bem, incomoda-me, é deselegante e composta – e que saiba é a
colecção mais utópica de todas, por nunca terá um fim, é inatingível.
É um amor que não explico, que me consome, serei masoquista.
Sou, não há dúvida! Não dedico atenção a mais nada na vida, sou o homem mais
fiel que me conheço. Aos livros. Abdiquei de ter relações pessoais, não saio de
casa a não ser para visitar livrarias e caves sombrias carregadas de ácaros e
seres terríveis que não têm a mínima consideração por nós. Tenho alergias que
nunca mais acabam e a cortisona só me incha, afecta a minha autoestima, quando
me vejo ao espelho gordo como um texugo. Ainda por cima, um texugo vermelho, na
eminência de rebentar a qualquer momento, os botões dos casacos já foram quase
todos.
Só me dou com livros e livreiros, e livrarias de rua, a céu
aberto, onde às vezes, no meio do lixo que são a maioria das bibliotecas
deixadas pelos mortos, que os filhos não querem e vendem por cinco tostões,
encontro diamantes que reluzem nos escombros dos castelos desmoronados dos
outros, dos mortos.
Tenho ainda mais dois
problemas, associados a esta doença que para mim é amor. Não é o que cantam
alguns poetas? A doença insidiosa do amor? e que serão fraquezas, que agudizam
a minha relação ao ponto de uma quase insanidade: gosto de ter muitos, de ler
os que posso, e interesso-me sobre todos os assuntos.
Por eles, abandonei cedo os outros amores, os da carne viva,
palpitante. Não procriei. A minha existência é de uma absoluta inutilidade para
a continuidade da espécie. Sou um ser com defeito de fabrico, uma inutilidade, ou
um verdadeiro egoísta.
Dos amores que agora lembro terem escapado, todas bastante aliviadas
e isso é que me custa a aceitar, algumas eram alérgicas ao pó dos livros;
outras queixavam-se que as paredes e todos os espaços da casa estavam ocupados,
não podiam respirar; outras queixavam-se de que eu as omitia, sentiam-se
transparentes, que dedicava mais delicadezas aos livros do que a elas; outras
também que nunca tendo lido um, de bolso que fosse, achavam intimidatório da
minha parte confrontá-las com essa fraqueza, sempre que me vinham visitar
sentiam-se submersas por um imenso mar de palavras encerradas em livros,
sussurrantes, assustadoras e achavam que aquilo era uma “cabala” minha e dos
livros para as afugentar. Fugiam na primeira oportunidade e eu deixei-as sempre
fugir, era o que queria no mais íntimo de mim, guardar a minha privacidade, em
dedicação exclusiva aos livros
O amor aos livros é um amor maior. Prescinde do perfil
unidimensional do real, os livros são um caleidoscópio infindável de reais,
mundos paralelos sobre mundos paralelos, possibilidades inesgotáveis.
Na vida do quotidiano, os grandes amantes dos livros, fazem-se
quase sempre acompanhar por um. É como sair de casa com sapatos, obrigatório. E
mesmo que onde se vai não aconteça a necessidade de os abrir, e ler nem que
seja uma frase de fugida, quando se sai de casa sem eles, e se dá conta a meio
do caminho de qualquer lugar, fica-se na possibilidade de um episódio de pânico.
E só para dar alguns exemplos da necessidade extrema de se fazer
acompanhar sempre por um, atente-se que: Nunca se sabe o que o dia reserva,
pode-se vir a cair numa situação em que a companhia de um livro é necessária. Quando
vai entregar o boletim do totoloto tropeça no tapete que não viu, pousa mal o
pé, tem que se dirigir ao hospital, tem um tempo de espera enorme até ser
atendido porque não é urgente. O que faz? lê um livro; a sua mais do que
qualquer uma das outras, lembrou-se que tinham que passar por um centro
comercial, para ver de uns sapatos que uma amiga de uma amiga lhe disse que só
havia naquele dia, naquela loja daquele centro específico, com um preço que é
sempre o melhor que se poderia encontrar, nem que se tenham que fazer cem
quilómetros e gastar gasolina e pneus e outros desgastes e o preço final desses
benditos sapatos ficar ao nível de uns Louboutin
comprados na loja que os vende em exclusividade. A pretexto de estarmos
cansados, procuramos um sofá e entretemos a espera que vai ser longa, na
companhia de um belo livro; vamos para a praia, queríamos olhar para o mar e
nada mais do que ter esse prazer simples.
As abençoadas criancinhas querem construir
infindáveis castelos de areia, e molhar os pés, colecionar conchinhas e molhar
os pés, fazer bolas de areia molhada e atirarem entre si e para nós, e molhar
os pés. Depois querem ir ao banho e ficam horas perdidas, quase em hipotermia,
elas e nós, presos a elas a passarmos um terrível dia de praia, a nunca mais
acabar. Então, corajosamente decidimos entrega-las à mãezinha que já se
besuntou dez vezes de bronzeador e já se virou na cadeira o número de vezes
suficiente para cobrir todo o seu corpo de uma bela tonalidade acastanhada.
Desistimos, fugimos daquele cenário apocalíptico, sentamo-nos finalmente, em
paz, à beira mar, a ler uma história inebriante, bem escrita, e contada, poucos
têm esse dom de o fazer bem.
O exemplo mais forte da febre crónica dos livros, é o estamos
sempre ansiosos para voltar para casa, ou então para um local recatado e
silencioso para continuarmos a ler o romance que nos traz embeiçados pelo nó
final, o remate de um bom livro bem escrito.
De todos os géneros, a poesia é a mais antissocial das leituras.
Exige dedicação total, absoluta, sem olhos para mais nada. Um amante de poesia,
entra numa espécie de vida monástica, em que as preces são os versos que lê,
que decora, declama para dentro de si, no silêncio de uma sala de estar,
claustros do seu mosteiro de reclusão.
Para se ver a importância vital das histórias que compõem os
livros que amamos incondicionalmente no seu conteúdo e na sua forma, temos que
contar seguida a história de um casal improvável unido pelos livros, que viveu
uma espécie de tríade do Amor, uma relação a três, uma poligamia censurável
pela sociedade, mas a forma mais apurada que eles lapidaram para viverem a
plenitude desse amor que elevaram à categoria de um culto.
Para
garantir um compartimento estanque onde não haja fuga de pensamentos, forrou as
paredes de livros, leu todos os que possui e a sala é grande. Não é uma
biblioteca particularmente rigorosa, completa de nenhum tema em particular, é
um macramé construído com os seus despojos de leitor voraz. Toda a vida comprou
livros aconselhado pela sedução da capa, de um título mais sugestivo ou
inesperado, da sensação táctil do toque das folhas, a textura do papel, a sua
cor, tudo isto a acontecer simultaneamente sob as ordens do imprevisto, uma
força incontornável da natureza.
Esse
processo é comum a muitos leitores: são os livros que os chamam, que os atraem
para si, pedem para ser abertos, lidos logo ali, pequenas partes, ao acaso.
Duas frases interessantes é o que basta para se levar um novo livro para casa.
Este personagem, que por comodidade mútua foi decidido chamar Raoul, nos raros
momentos livres da sua carreira de Provedor peregrinou pelas livrarias e
alfarrabistas afamados repetindo e repetindo este processo de apessoamento de
livros e foi assim que constituiu o acervo que agora reside com ele nesse
escritório-biblioteca, num esplêndido apartamento burguês, abastado, num bairro
reconhecido de Paris onde as grandes, rasgadas, trabalhadas janelas dos
prédios, espiam os passeios largos onde flanam pessoas bem perfumadas e finas e
completamente alheadas do facto de um Ex-Provedor, estar nesse momento, imerso
na leitura ou na escrita das palavras que fazem um livro.
Só
recentemente, por estar reformado dessa nobre profissão das relações do
comércio entre os homens, começou a pôr ordem na sua biblioteca de peças soltas
e erráticas, querendo-a completar com as obras em falta de alguns autores
fundamentais, rechear convenientemente de algumas correntes de escrita.
Há livros a
que regressa vezes sem conta, outros, lembra-se, procura-os e presta-lhes uma
visita mais ou menos demorada. Muitos nunca mais serão folheados, a menos que
mudem de usufrutuário.
Como se
constrói uma biblioteca? Juntando livros que tropeçam em nós, ou juntando
segundo uma escolha determinada, com um plano, pensado, rigoroso?
No seu caso
começou por tropeçar, depois treinou e apurou o andar, traçou um plano de
viagens e aproximou-se – questão de gosto - da companhia das biografias e de
algum romance clássico, desatendendo quase tudo o que se escreveu a partir da
segunda metade do século XX. Uma modernidade enfadonha, degradada nos temas,
pouco edificante. Foi o século em que se começou a escrever mal – raramente
alguma coisa nova arrebata - que vende por acção das campanhas de marketing e
das montras das grandes superfícies e das feiras de livros. São estes
preconceitos que cresceram na cabeça de um homem conservador e não há forma de
ele se fazer a uma leitura de um autor contemporâneo. Falta-lhe um amigo jovem
que o encaminhe nesse sentido, mas ele não participa em tertúlias intelectuais,
é eremita por escolha própria. A sua colecção tem lacunas assinaláveis.
Quando um
leitor apaixonado morre, que destino levam os livros das suas estantes? Talvez
ninguém mais os leia, sendo reduzida a probabilidade dos livros que se fizeram
companhia nessa sala durante décadas, continuarem juntos. Alguns vão sobreviver,
outros serão descuidados. Poucos conseguirão uma guia de transporte para uma
nova estante e terão o respeito que merecem. Uma biblioteca sem dono fica órfã,
os livros são objectos de uma relação única, fiéis, raramente encontram um novo
amor quando lhes desaparece o parente mais querido.
No universo
das relações entre seres vivos e não-vivos, os livros são os únicos não-vivos,
não-pensantes que manifestam um amor incondicional para com os seus donos.
Nunca os vão abandonar, estão sempre disponíveis, a todo o momento, para
reconfortarem ou distraírem o amado e mesmo para serem maltratados, um
masoquismo piedoso que os livros têm.
Nos
cadernos de apontamentos que Raoul compra na ponte Vecchia de Veneza – obra
artesanal de bons cabedais e papéis finos, negócio familiar, pai, mãe, filha e
caros – dedicou-se à tarefa de recuperar os trânsitos passados na sua cabeça,
guardados (os que se podem salvar da devastação do tempo) para memória futura.
Estimando
maduramente as opções decentes para ocupar a lenta passagem do tempo que
acomete um indivíduo liberto de obrigações profissionais e não querendo
dedicar-se à prática de actividades licenciosas e fúteis, impróprio das
altitudes que escalou na vida, chegou a um acordo educado com a escrita, uma
ocupação inócua e inconsequente, onde encontrou uma saída airosa para os milhões
de palavras despejadas e armazenadas nos cadernos venezianos à espera de
melhores dias, que foram cuidadosamente preenchidos, com datas no começo e no
final, para darem enquadramento cronológico aos acontecimentos da vida da sua
pessoa.
Pode ser
que um dia haja quem tropece na sua história, um familiar longínquo que ainda
não se sabe que existe, um amigo mais novo, a sua própria empregada por
entreposta pessoa, porque não? Esse alguém vai pegar na tarefa de reconstruir
os seus caminhos de escrita, lê-lo cuidadosamente, gravar testemunhos dos que
estão vivos, classificar a obra, e poderá sair uma belíssima biografia, que se
for honesta é a melhor homenagem que se pode prestar a um escritor depois de
ido.
Para já
ainda está vivo, de boa saúde sem nada de maligno a germinar que seja
detectável. Escreve com afinco, abundantemente.
A
responsabilidade dos afazeres públicos – que tem custos pessoais elevados –
nunca lhe deu tréguas, sempre emaranhado no trabalho. É chegado o momento de
recuperar tempo.
Raoul é um
homem austero e a sua imagem exterior espelha-o, o que isso quer dizer: uma
apresentação regida pela palavra formal, discreta na cor dos fatos, das
gravatas, azul-escuro, com concessões ao cinzento; nas camisas, brancas, raras
as outras cores. Nas palavras com que aborda os outros para tratar das coisas
comezinhas do quotidiano, ou para as mais formais das comunicações, faz uma
escolha criteriosa, uma contenção na demonstração das emoções, sem alteração detectável
de estados de alma.
As palavras
que ele utilizou toda a sua vida para se dirigir ao mundo, foram quase sempre
escolhidas de véspera – como as gravatas – racionais e aborrecidas, porque
demasiado coloquiais, uma linguagem quase sempre técnica, sem liberdade para os
adjectivos e os advérbios.
Hoje essa vida espartana - o cinto sempre na última casa - reflecte-se na sua escrita, por isso adora os clássicos, pela contenção da descrição dos sentimentos e das intimidades de cada um.
Hoje essa vida espartana - o cinto sempre na última casa - reflecte-se na sua escrita, por isso adora os clássicos, pela contenção da descrição dos sentimentos e das intimidades de cada um.
A reforma tirou alguma pressão, podia
finalmente despir algumas camadas sombrias de formalismo, pôr-se mais à
vontade, vestir um robe chique cómodo, substituição perfeita para os paletós do
passado. Autorizou-se a isso e despartilhou-se.
A reforma é
um regresso à infância, dizendo melhor, é a verdadeira infância. A primeira
passou como um relâmpago sem que se estimasse, esta encara-se com calma,
estica-se mais o tempo, lentifica-se. Traz consigo o lastro da existência, a
memória, a derradeira companheira para as melhores brincadeiras ainda para
serem brincadas. É o regresso do amigo invisível, tudo se repete mais ou menos
igual, em circunstâncias diferentes, assinaladas pelo tempo e as rugas na cara.
Quando se
vê um velho a falar sozinho, há quem se compadeça e desvie o olhar, vendo nisso
sinais da senilidade, da senescência, o que assusta todos pela eminência
presente de lhes vir a acontecer. Acontece que essa é uma apreciação errada: o
velho está a falar sozinho porque está a trocar impressões com a memória, o tal
amigo invisível.
O senhor Provedor
consome endemoniado todos os segundos, para resgatar dos depósitos todas as
frases e todas as ideias soltas que compuseram a sua “pegada”. Quer inventariar
novas coerências, actualizações de contextos verosímeis à luz do presente. Um
homem que viveu a vida nos ditames da lógica analítica, não se oferece a
devaneios descontrolados na ficção. Ficção sim, mas comedida.
Metódico
portanto – só assim reencontra nexos nos cadernos de apontamentos, uma biblioteca
ambulante que cabe num saco a tiracolo, que sejam dois. Transplanta os conteúdos
para a folha virtual do computador com cuidados de filatelista, liga com a
decência formal de um Provedor na reforma, os fios das palavras, cosendo textos
irrepreensíveis e de um classicismo rendilhado por algumas excitantes incursões
nesse novo sabor libertino, que agora se concede, aos poucos, desde que
desapertou o nó da gravata.
Como
cidadão de muitos contactos e favores em dívida de cobrança, não foi difícil
conseguir uma editora de nome disposta a apostar nele. Nem se discutiram
percentagens - ele não corre por dinheiro – e quanto aos títulos, liberdade total
de escolha.
Nos últimos
dois anos, os primeiros na sua nova situação de excedentário, editou um livro
de memórias (que deve ser sempre o primeiro quando se teve um cargo público e
se pode vir a figurar nos manuais da História) e um de pequenos contos – na
fronteira com as crónicas, difícil de classificar, foi mais uma experimentação
de estilos e construção de pequenas histórias, para ganhar mão e que acabou por
sair bem e porque não editar, que foi o que fez.
As memórias
venderam pouco: os amigos e conhecidos do núcleo muito exclusivo da sua corporação.
Os contos tiveram algum sucesso, vai na terceira edição. Não escreve mal e os
contos leem-se rapidamente.
Motivado
pela memorabília e embalado na esperança de ultrapassar a barreira psicológica
das duas páginas A4 totalmente preenchidas por ficção da boa – de mão feita e
ginasticada - lançou-se ao maior dos desafios nesta arte traiçoeira: escrever
um romance.
Escrever um
romance não é tarefa fácil. Pede personagens, que também basta um. Idealizar,
germinar, acender o interruptor da luz de uma nova vida, cuidar e afastar do caminho
as ervas daninhas, protegendo para crescer, alimentar até fazer-se homem, tudo
isto compactado em páginas de livro impresso, um trabalho imenso, uma obra de
grande arte e muitas dores de cabeça.
É como
gerar e criar um filho.
Lembram-se
as dificuldades passadas, a deitar contas à obra, o desalento, a euforia, as
noites em branco. E são essas que envelhecem.
Foi por
isso que o Senhor Provedor, agora já não, da Câmara de Comércio de Bordéus
resolveu primeiro os assuntos da vida, os mundanos e os profissionais, libertando-se
do quotidiano enfadonho na contabilidade das contas e dos rácios, da justiça
dos seus julgamentos, das decisões difíceis, algumas porventura menos
acertadas, matérias que ocupam a cabeça dos homens sérios quando fazem balanços
em mudanças de ciclo.
Foi assim,
que resolvidas essas questões humanas, assumiu os riscos tardios da
paternidade, mãe-pai a tempo inteiro. Para levar o projecto a bom termo
contractou uma barriga de aluguer, aninhada nos esconsos de uma rede neural
complexa no seu cérebro e inseminou-se a si próprio. Ficou grávido de um novo
ser. Um ser literário.
Neste
momento - é na fase gestativa que ele se encontra -anda tão absorto que se
esquece de comer. Que o seu
primeiro romance seja uma obra-prima, ganhador de prémios anunciados nas folhas
dos jornais, é o mínimo que a sua humildade pede: ele não é um homem humilde.
Não conta
para a estatística da sua produção literária – assim aconteceu por decisão
própria e ponderada - o versejo, debitado em folhas soltas da mais
indiferenciada das proveniências e texturas, em momentos e ambientes vários,
escrito com canetas de aparo de ouro. Para escrever, que seja com estilo.
Esta
fragilidade – do poemeto - é um pequeno vício que ele esconde, que espera
modesto desfecho, devaneios escondidos em local próprio, alguém os descobrirá
um dia, na inventariação dos espólios dos baús que os escritores gostam de ter
em casa.
Pode
parecer e se calhar a descrição deu a entender, que este homem vive sozinho,
afastado da espuma dos dias, recolhido no seu escritório-biblioteca. Não, há
mais uma pessoa naquela casa.
Justina gosta
dos livros. Justina areja casas, suga-lhes o pó. Concilia estes dois afazeres
sem incompatibilidade – a limpeza e a leitura - há quarenta anos. Trabalha
fielmente agradecida, para o Senhor
Procurador e outras pessoas importantes, com a discrição de invisibilidade
eficaz - não se dá por ela - uma gente ensimesmada de timidez, os emigrantes
oriundos dos restos da Europa, meridionais, antes do começo do fim do mundo
civilizado.
Teria
muitas histórias para contar – quem não as tem - se se desse ao cuidado (para
quê? se morto se vai ser já amanhã, e é deselegante andar por aí a falar dos
outros) de fazer apontamentos do que viu e ouviu nesses anos de emigrante.
Todo o seu acervo de peripécias está na cabeça: não vê, com razão, proveito em desempacotar episódios antigos. Quando à noite chega a casa - o auge do seu dia -celebra a vida e a sorte que ela lhe deu, em encontro íntimo com um cálice de medronho, prazer quântico mais proveitoso do que puxar pela memória das histórias alheias. É também uma mulher de fé, cristã, e frequenta a paróquia do bairro
Todo o seu acervo de peripécias está na cabeça: não vê, com razão, proveito em desempacotar episódios antigos. Quando à noite chega a casa - o auge do seu dia -celebra a vida e a sorte que ela lhe deu, em encontro íntimo com um cálice de medronho, prazer quântico mais proveitoso do que puxar pela memória das histórias alheias. É também uma mulher de fé, cristã, e frequenta a paróquia do bairro
Justina
teve um passado, numa aldeia de pescadores no Algarve antes de chegar a Paris,
dado irrelevante o Algarve. Já não há aldeias de pescadores no Algarve, só
turistas, e locais, todos muito espertos, que ventilam os apartamentos dos
turistas e espanam as poeiras de algumas.
Russos
exploram bares nas praias e assam sardinhas, descobriram a sua Crimeia ainda
mais a Sul. Ela nunca mais voltou, pelo que não sabe nada dos russos, pouco lhe
importa quem vive ou deixa de viver no Algarve, um local que fez questão de
esquecer no dia em que saiu de casa – se pode chamar casa aquilo – no desespero
da sobrevivência. Este povo está sempre a não recordar-se da palavra refugiado,
não há século que não a vista.
Está há
tanto tempo em França que lhe custa o Português, não no falar - fez uma síntese
do sotaque parisino com laivos folclóricos do sotaque algarvio, e os ouvintes
gostam – mas no ler, e se do falar ainda o usa quando telefona para os farrapos
de família que deixou nas origens, o lar não lhe dá préstimo, porque não há
nada para ela ler em Português a não ser o Correio da manhã e a Bola, no bar da
sede dos amigos de Mougadouro, o clube que fica mais perto de sua casa, onde
vai de vez em quando beber uma imperial e saber as novidades desta comunidade
pacata, sempre com os ombros descaídos e uma má postura na espinha dorsal.
Justina
fez-se uma profissional das mais competentes no ramo, o ramo da intimidade dos
lares alheios.
Com tantos
anos investidos no negócio das limpezas - e boas referências – adquiriu um
conhecimento profundo dos seres visíveis e invisíveis que habitam as casas. Fez
doutoramento no mobiliário, nos objectos de decoração que as pessoas se rodeiam
e que espelham as suas personalidades. Estes detalhes absorvidos pelo convívio
prolongado transformaram-na igualmente numa confidente e amiga, já que por
emaranhados que ela e todos desconhecemos, sempre serviu pessoas solitárias.
Os homens
ou desabafam com frequência ou a vida fica insustentável. E escolhem os
confidentes mais improváveis, ou os que estão à mão. Quem mais perto do senhor Provedor,
um solitário dos afectos, que a senhora Justina, sempre ao virar da sua esquina
nos últimos vinte anos, do quarto para a sala, com longas caminhadas no
corredor comprido do apartamento, ou dirigindo a orquestra de tachos e
utensílios de cozinha, chefa de mão cheia esta mulher.
Os seus
talentos são naturais e fruto da experimentação. Inventou a fusão do foie gras
com a jardineira portuguesa, deixando o patrão sem reacção, atónito na
pontuação a atribuir ao prato, esquisito e bom. É raro o jantar em que Justina
não seja chamada para receber elogios e responder a arrastadas perguntas sobre
o seu dom da confecção. Há momentos em que se senta à mesa, ela fala sem
pressa, ele ouve com prazer e vai fazendo perguntas prolongando o prazer da sua
companhia.
De volta à
cozinha, com um brilhar de olhos de contentamento que é único – só visto –
brinda-se a si mesma com um bom copo de branco.
Justina, só,
em Paris. Fosse de falar, e os abalos que poderia causar à Republique
Française, guardadora de confissões, colecionadora de segredos – a serem
revelados – que abalariam a confiança no Estado, alguns tão extravagantes que
seriam difíceis de conceber e de acreditar. Isto porque para além do senhor Provedor
ela faz ainda serviços em mais três apartamentos do prédio, onde vivem altos
funcionários da Nação, alguns com vidas privadas recheadas de episódios
picantes e vícios de porta fechada.
O senhor Provedor
é um homem pacato.
A República
pode estar descansada, Justina não é mulher de desfeitas, segredos são para
levar para a tumba, cremados com as miudezas do corpo.
De todos os
patrões, o Senhor Provedor e Comendador é das pessoas que mais estima. Não se
dá por ele enrolado no silêncio o dia inteiro. Justina afogueia-se de
inquietude e vai e volta, abeira-se da biblioteca-escritório para saber dele,
para se aquietar a si mesma, porque mesmo vendo-se pouco, são dois corações a
baterem juntos na contenção do mesmo espaço. Falta lhes faria se um dia se
faltassem.
O que já
foi Provedor, quando publica um livro, oferece o primeiro exemplar autografado
a Justina. Ela sente-se na obrigação de retribuir a gentileza e lê o livro. Ele
nem imagina que ela o poderá ler, a sua intenção fica-se pela simpatia de
oferecer um exemplar à sua mais fiel colaboradora, diria amiga, não fosse
manter o formalismo de classe, que nunca irá abandonar. Mas Justina não é uma
psicóloga de um aspirador qualquer: se um livro é para ler, que seja lido. É
como as igrejas, locais que tanto gosta. Se são bonitas e transmitem sensações
de paz e têm as portas abertas, então é para entrar, o que faz e reza, e todas
são suas preferidas desde que sinta a inexplicável sensação de bem-estar
espiritual, que num sentido mais lato é paz.
Mesmo que o
tema e conteúdos não entrem à primeira – o ex-Provedor é um intelectual, não se
contenta com palavras correntes, escreve-as difíceis e raras de encontrar – ela
não desiste à primeira tentativa, não desiste até compreender.
Para isso,
nestes anos todos, coligiu informação e escreveu para consumo próprio um manual
de instruções para ler livros, ferramenta infalível para descodificação de entendimentos
e compreensões. É um manual que contém todas as respostas para todas as
situações, até as mais complicadas.
Como tira
as poeiras de muitas casas e recheios, e anda tudo numa euforia de editar
livros, ela encontrou uma solução expedita para interiorizar e compreender os
livros que os patrões lhe oferecem. Foi pensando nesse assunto enquanto
passeava o aspirador pelos quartos e pouco a pouco construiu mentalmente o
manual, que depois transcreveu num pequeno livrinho - fica melhor, tudo arranjadinho,
como deve ser.
Transcrevem-se
partes do seu manual: “Ler os prefácios. Às vezes são mais importantes que o
que se segue. Não é raro o leitor arrepender-se de ter continuado a ler, perdeu
tempo e podia ter passado para outros livros. Só o prefácio seria suficiente. Se
persistirem dúvidas, quando terminar de ler o livro, e for da opinião que o que
leu não faz sentido, volte ao prefácio.”
“Se o
prefácio estimulou a curiosidade, ler as primeiras dez páginas do primeiro
capítulo, é suficiente. Se as palavras foram bem emparedadas em boas frases,
dificilmente o escritor escreverá melhor que as primeiras páginas. Poucos,
quase raros, os de génio, têm resistência suficiente para irem mais longe.
Alguns, espertos, escrevem igualmente bem as últimas páginas, a ver se pega. Na
maior parte dos casos o que entretanto se passou é pouco importante, e fica na
memória o começo e o fim, e consequentemente na cabeça do leitor a ideia que
leu um bom livro.”
“Se for
mesmo muito teimoso leia aleatoriamente uma dúzia de páginas no âmago da obra,
pode com isso aumentar a irritação de estar a desperdiçar tempo ou convencer-se
de uma vez por todas, que o livro merece ser lido do princípio até ao fim.
Finalize a tarefa lendo com a maior das atenções o capítulo final.”
“Se não
entender uma frase, comece por ver o significado das palavras que a constituem,
uma a uma. Se ainda assim não entende, pergunte discretamente a alguém que
conheça e tenha lido o livro. Tente o contacto (se ainda for vivo) de quem a
escreveu e pergunte. Hoje é fácil, eles passam a vida a serem exibidos nas
feiras e festivais. São convidados para falarem sobre todos os temas e eles
vão, não é fácil ganhar a vida.”
“Fuja da
opinião dos académicos que sabem sempre mais do que os autores que estudam. Dos
críticos literários também, escrevem melhor que os escritores mas nunca produziram
nenhum livro pela razão simples de não estarem para aí virados, só por isso.”
“Uma dica
útil para não ser apanhado em contradições: sublinhe e decore frases que lhe
parecem relevantes e faça a sua própria história sobre elas. Numa situação de
aperto, debite com convicção e sem gaguejar a sua história."
"Nenhum intelectual
terá coragem de a confrontar e acaba de ganhar assento no Olimpo dos
intelectuais. A partir desse dia, pode dizer todas as aneiras que lhe vierem à
cabeça, que os seus pares vão reverenciar os seus ditos brilhantes e os
académicos vão queimar as pestanas a construírem teses ilegíveis sobre o que
você disse."
“Estes
procedimentos simples habilitam a todo o género de discussão e confronto, com
conhecimentos adquiridos e irrefutáveis sobre as matérias escritas e que se
vierem a escrever.”
“Considerações
fundamentais a ter em conta e atenção:
Quando se
dá de caras com um bom livro, este manual não pode ajudar, o leitor fica automaticamente
desarmado, vale tudo, ler, reler, andar para trás, para a frente, ficar com ar
de parvo, pasmado, de boca aberta, em pose sonhadora, com o livro aberto
pousado no colo. Voltar a ele e emocionar-se.”
“Um bom
livro revolve os miolos e as entranhas, deixa as pessoas frias emocionais, estas
geladas, revira tudo, altera todas as condições, é um encantamento puro.”
“Por
último, ao confrontar-se com um idioma que desconhece, estas indicações deixam
de ser válidas, não vale a pena fazer esforço e insistir numa leitura
impossível, já que o anterior método de dividir as frases por palavras, saber o
significado de cada uma e daí reconstruir o sentido da frase, não faz sentido,
e o resultado final não é bom. Todos os livros deveriam ser lidos nas línguas
em que foram escritos. Da poesia nem se fala. As traduções são aproximações
sempre longínquas. Se o tradutor for um artista, a obra traduzida é um livro
novo, diferente do original. Se o traductor for mau, a obra é um produto híbrido.”
O Senhor Comendador, desconhece a existência deste manual, mas
estranha as qualidades da Justina no entendimento das matérias e temas dos seus
livros.
Poucos
patrões questionam os domésticos sobre os livros que escrevem, sendo emigrantes
ainda menos, se bem que ser português é menos mau que argelino: são dóceis e
recatados.
A fronteira do mar mediterrâneo marca a linha de fractura final:
tudo o que fica a sul são espécimes arcaicos.
O senhor Provedor
não tem a urticária da xenofobia. Estima muito a Justina, pela sua lealdade e
fidelidade, e o que mais estima é ter uma empregada que trata da casa e ao
mesmo tempo desempoeira a sua mente, dando a pedido, conselho pessoal sobre os
temas filosóficos do mundo.
Apesar de
ter cultivado uma cultura enciclopédica e diversificada – eufemismo propositado
- ele sabe muito pouco do país da sua estimada empregada, desconhece a sua
cultura. Leu alguma coisa de um Rodrigues, campeão de vendas, , mas ficou com sede de
literatura; dos clássicos algum Pessoa, mas ler Pessoa pouco diz do país, apesar
de ele ter dito tanto, na descrição dos seus “eus”, deitados numa chaise
longue, algures num edifício de escritório, num quarto onde também havia uma
chaise longue, numa rua anónima de uma quase branca e pouco maior do que uma
aldeia grande, uma cidade do país de Justina.
Ficou ao
Comendador – sim o Senhor Provedor recebeu uma Comenda no 14 de Julho – nas
leituras do poeta, uma ligeira desconfiança sobre essa coisa estranha da
melancolia em português suave (precavido que é faz os descontos das traduções,
é impossível replicar o original um sentimento que não o é, uma emoção
prolongada, um estado de realidade, uma razão enviesada. Quando esporadicamente
pensa sobre isso, num ou outro momento fugaz em que observa mais atentamente a Justina,
já teve a ténue sensação de reconhecer esse inominável, um modo de se fazer a uma
imagem aproximada de entendimento, espelhada no canto do olho da sua empregada fiel.
Como se a melancolia estivesse a espreitar do lado de dentro de si, encostada
ao beiral da janela dos olhos, a medo, timidamente, vendo não se querendo dar a
ver.
É mais ou menos aceite sem discussões infindáveis que ninguém escreve
só para si, e quem escreve, mesmo abjurando, quer deixar notícia ao mundo. Ou
então escreve porque está cercado pela solidão e as palavras são a sua maneira
de enganar a vacuidade do tempo que vive e passa. Só escrevendo se apazigua a
enfermidade dilacerante da alma. O correr da pluma é a gulosa morfina que
combate a dor quase insuportável, suavizando o fluir dos pensamentos,
lentamente, até que esmoreça nos sonhos a última chama do coto da vela.
Não há
dúvidas que este homem ainda tem muito para escrever, e que assim seja,
enquanto houver livros Justina pode dormir descansada: mantêm o trabalho de
absorvedora de pós, até que um dia venha a reforma. Pode ser que venha a ser
acometida do hábito da escrita, ou então a contar histórias em voz alta para
quem a ouça, tem jeito.
Como se pode ver, os escritores as mulheres a dias, algumas,
também vivem sobre os efeitos dessa categoria elevada do Amor incondicional.
Neste caso, doença ou fraqueza, porque são colecionadores compulsivos
dos livros que guardam as palavras.
Diagnosticam-se facilmente, um amante das palavras, só as ama
concupiscentemente de duas maneiras: lendo-as ou escrevendo-as. No caso do leitor
ele entende-se a si mesmo como amante exclusivo das mais belas. No caso do
escritor porque as palavras que escreve voam desenfreadamente para os píncaros
do Olimpo, local onde aparentemente todos querem estar.
Incluem-se os escritores no grupo dos coleccionadores, porque é
o que eles são: açambarcadores de palavras, que as alinham nas páginas dos
livros, que representam para ele as estantes de vidro do colecionador dos
soldadinhos de plástico, ou de chumbo.
Salvo raras excepções devidas a transtornos vários, nenhum
coleccionador abandona a sua colecção. Como nos casos anteriores, é uma relação
fidelíssima, sem divórcio.
Trata-se pois de um amor sem dúvida incondicional, o dos
colecionadores de coisas tangíveis. Os das outras têm outro nome.
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