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DO AMOR INCONDICIONAL - 7 - DO AMOR A UM ROSTO AINDA DESCONHECIDO







É uma grande decisão de consequências impensáveis. É muito difícil, a primeira carta. Escrevê-la.

Uma folha de papel, imenso branco. Paralisa a vontade.
O branco podia ser outra cor, é branco porque é simbólico, a representação do vazio, espaço por preencher.

As primeiras palavras, o primeiro encadeado de frases, definem o desfecho, são a sua sentença. Nada se pode emendar depois de escrito, a menos que se seja desonesto, ou cobarde, se amarfanhe na mão a folha e se deite para o lixo, o que é desleal.

Uma carta não se emenda, segue pelo correio com o que foi escrito pela primeira vez, e única. É como pintar uma aguarela, depois de seca, nada se pode corrigir.

Por isso é uma grande decisão, é a responsabilidade de saber o que dizer, como começar, dar continuidade, balanço, rematar bem.

Uma carta é como uma tatuagem que se desenha para sempre na pele, à sua maneira uma espécie de papel do corpo: pode-se disfarçar mas não se apaga.
«Isso assusta-me, mas não tenho alternativa. As palavras viajam por conta própria e chegam aos lugares mais recônditos, e eu aqui, no meio de uma guerra perdida, sem autorização para me ausentar. Soldado por obrigação, é assim, há guerras menos justas do que outras, e as que se fazem para reclamar ideias politicas utópicas de soberania são as mais incompreensíveis.

Sou obrigado a representar este papel que não esperava para mim, e combato este tempo que nunca mais se esgota. A escrever cartas para dar notícias aos meus,  corresponder-me com um amor ainda imaginário, que não conheço fisicamente, porque é preciso tocar, para sentir o arrepio do corpo que dá inicio ao real festim do amor verdadeiro.

Correspondo-me por aerogramas, tenho uma madrinha de guerra, chama-se Alcina, belo nome, assim o seja e imagino, o corpo que atende a esse chamamento.

Não a conheço pessoalmente, mas a sensação da sua presença que me acompanha ao longe na metrópole, é o bálsamo que alivia o sofrimento e as penas deste inferno trágico-cómico. Ainda não sei se isto é um pesadelo ou uma história de muito mau gosto que está a acontecer virtualmente num ambiente de sonhos impalpáveis, irreais.

Faz dois anos que estou na guerra. Imagine-se alguém pôr no seu currículo, quando procura um emprego, ou simplesmente quando cataloga as etapas da sua vida, como parte de um período da sua ocupação, o estar na guerra. Que créditos isso dá? Ganhou-se uma competência? A de matar? A de rodear a morte e sobrevivê-la?

Sempre tive medos, com pequenas coisas, das grandes ainda mais. Eu tenho naturalmente medo, e o mais penoso de todos é que sobreviver vivo dia a dia, aumenta a minha probabilidade de morrer, o que me dá um medo enorme.

Se tiver futuro depois disto, tem um nome marcado: Alcina. Podia chamar-se Esperança, que ficaria bem.  Pensar nela preenche-me os excedentes do tempo, que é quase todo o dia com excepção de momentos concentrados de guerra. Sorvo as horas desejando a tranquilidade da noite. É quando lhe dou notícias, escrevo. Já enviei muitos aerogramas, e recebi outros na volta. Ganhámos intimidade com o convívio das palavras escritas, dos dois para os dois. Exploradores de pequenas coisas primeiro, avançando timidamente para as emoções, os sentimentos, aventurando-nos cada vez mais, desbravando o desconhecido, tudo isso por carta, tudo escrito.

Por vezes avançamos com cautelas, com receios de magoar, outras, em dias heróicos, galopamos arriscando todos os horizontes do outro. Nem sequer nos conhecermos, ou sim, por todas as palavras que foram ditas, já nos conhecemos?
Esta longa ininterrupta conversa à distância, ganha recompensas: a imaginação fertiliza-se, desbraga-se. Se estivéssemos na presença física do outro, a ela faria corar, a mim, gaguejar na palavra seguinte, ou no movimento que levaria a uma acção: um toque com intenção de veludo na sua pele, um roçagar quase involuntário cheio de vontade, ou então mais energicamente, sendo inequívoco, querer tocar e ela saber que o vou fazer, irremediavelmente, absorvidos os dois por um magnetismo que não se explica, que às vezes, poucas, acontece na vida, a atração fatal da fatalidade gloriosa da paixão, que pede todas as competências, da cabeça, do coração, do corpo.

Gostaria de poder alimentar um sentimento mais forte, pirogravado no coração com outro nome, mas quando se trabalha na profissão da morte é avisado pôr de lado investimentos na vida.»



O navio-paquete Pátria é um navio misto de transporte de passageiros e de carga e tem como madrinha a Senhora Dona Maria com muitos apelidos, filha do Ministro da Marinha, futuro presidente vitalício da nação. Não havendo nada mais a dizer sobre o navio, o ministro, as suas ramificações familiares, e o tédio reverente de uma imagem pendurada num quadro em todas as paredes de casas de pé nesse lugar.

Começa hoje, não deram para marcar o dia com tempo, pelo que começa sem inauguração oficial, uma nova da guerra.

 Num cais com murais modernistas pintados por um pintor também ele modernista não conformado, as famílias mais humildes despedem-se todos por igual dos seus filhos que vão dar começo à guerra. Os menos humildes mas ainda assim só medianamente remediados, despedem-se com mais decoro, na privacidade das suas casas. Os nada humildes não se despedem: os seus filhos não vão para a guerra. Ou ganharam doenças incapacitantes súbitas, ou põem-se ao largo, não num navio, num avião que os leva para um país da europa para se ajeitarem a viver numa democracia que não se conhece aqui. Diga-se que alguns nada humildes, poucos, vão há guerra, são os tradicionalistas, ou os filhos dos que interessa a guerra.

Beijam-se e abraçam-se. Há pais que abraçam pela primeira vez os filhos, num abraço cheio de todos os que nunca deram. Acenam-se com lenços brancos húmidos de lágrimas e mais humidades. Fazem-se esforços sobrenaturais para focar os olhos na tentativa já improvável de ainda se conseguir distinguir no volume uniforme de um barco que se afasta, o filho que se está a deixar para trás, ou para a frente. Para alguns será a última vez que o veem.

Não se tem aviso prévio do último beijo (o que mudaria o mundo se se soubesse), por isso deveriam todos a melhor qualidade de grandes beijos, e últimos.

Para manter a ordem e a harmonia da pátria, este navio dispõe de três classes: a primeira para os oficiais, a segunda para a classe de sargentos e a terceira para os soldados. Cada um à sua vontade, e separados, não têm de estar todo o tempo em continências e atitudes hirtas. Por agora é um cruzeiro de férias, ao longo da costa de África. Os dias estão bons, sonha-se deitado numa espreguiçadeira no convés, a agarrar um sol pacífico, na paz do mundo.

Golfinhos acompanham os nautas, dão grandes saltos na água, e mergulham e aparecem no outro lado do barco, andam assim horas, têm uma vida de brincadeiras, os golfinhos.

Só os oficiais e os sargentos disfrutam deste espectáculo, os seus camarotes estão acima da linha de água. Os piões viajam num barco-submarino, abaixo dessa linha, veem o fora através de óculos redondos, escotilhas, apreciadores de vistas limitadas.

Se há uma profissão que fica excluída das opções de futuro do Mário (o primeiro-cabo dos aerogramas e da sua futura ainda desconhecida Alcina) se voltar um dia reformado da guerra - que não seja deitado - é de marinheiro. Enjoa como uma “posta de pescada”, dito de origem duvidosa, e nem sequer ilustra esse condicionalismo temporário, correspondendo a uma expressão muito provavelmente sem sentido.

Para ele a viagem não foi leve, um caminhar com poucos intervalos para a casa de banho ou para a amurada do navio, a descarregar o que não tinha. Era magro, ficou um palito. Nos momentos exíguos que o desequilíbrio de cristais – não os da adivinhação - lhe deu tréguas, lívido e exaurido de líquidos e ânimo, ainda fez algumas tentativas para se distrair, cantando - linda voz, menino da radio, dos saraus musicais dos domingos da emissora nacional-, desanuviar as rugas carregadas dos camaradas jovens, ainda sem idade para terem rugas, afastando prenúncios de tempestade, a eterna dúvida de quando acaba o futuro de cada um, que indo a caminho da guerra, menos expectativas tem de se ver idoso.
Heróis é nos filmes, de Hollywood, nesta viagem navega-se apertado, de medos e preocupações.

Atracam no cais de Luanda em meados de Maio. A baia é ampla, o calor é desconhecido. Figurantes contratados a custo zero – seria impossível os familiares da partida estarem na chegada - acenam lenços brancos, outros lenços, sincronizados com o som de marchas marciais executadas afinadamente, mas desinteressantes, pela banda do exército, vinda de Lisboa, via aérea, com os seus fatos impolutos de cerimónia, para receberem o primeiro contingente expedicionário. Não se vai a lado nenhum sem a companhia da música a mais etérea das artes. Nas portas do paraíso e do inferno toca ininterruptamente uma banda de anjos e de demónios, a darem as boas-vindas aos novos moradores.

Aqui não são os emproados germanos em tanques indestrutíveis atravessando as estepes dos sovietes ao som das suas valquírias, é somente uma recepção patética que ninguém contesta e é um som que encaixa na fotografia do regime.

Morrer ao som dos cânticos dos deuses, a morte glorificada dos heróis. Porque nas histórias de amor se repete tantas vezes a palavra morte?

Sendo três um número de Deus, a Companhia de Infantaria, com cem homens inexperientes da “arte da Guerra” e uma mão cheia presumida de profissionais da Academia, viaja três dias a massajar as nádegas aos saltos, nos bancos de madeira das Berliet que os transportam por uma picada infindável de terra batida por crateras de variadas dimensões. Até ao destino foi um passeio, não houve ocorrências nem encontros com o inimigo.

Mário não vomitou, mas continua fraquinho, consegue a custo pegar na arma que mal sabe como usar.

A missão é ocupar o sopé de uma colina estratégica que permite uma observação com vista panorâmica da savana a perder de vista e horizontes. A principal via de ligação rodoviária para a capital de Província atravessa a planície, por onde circulam pessoas e mercadorias. Tudo o que é importante passa por aqui.

No alto da encosta havia até há pouco tempo, um pequeno povoado de colonos brancos, gente estabelecida em África há muitas décadas. Esta povoação era um entreposto e ponto de paragem e descanso.

Foi aqui que começou o conflito, por nenhuma razão em especial, simplesmente porque se juntaram os acasos necessários para que uma acção aconteça. Num dia de calor intenso, sem premonições a afectarem a ocorrência natural do quotidiano, um grupo de nativos, invadiu o sítio, pilhou, queimou, matou os colonos, e deixou uma faixa de pano com erros de ortografia crassos a declarar a intenção de independência do homem branco. Apesar dos erros na escrita o homem branco entendeu.

Desse episódio ficaram de pé as paredes da pequena igreja, não foi um milagre do princípio ao fim, canónico, mas demonstra algum interesse do divino em deixar as suas mensagens para entendimento dos homens na terra. Da casa principal – o posto administrativo, loja do cidadão, correios, administração autárquica, drogaria e mercearia - ficaram duas meias paredes, uma delas tinha e tem um crucifixo que se manteve pendurado, e assim, com dois sinais a acontecerem no mesmo espaço ao mesmo tempo, já quase se pode falar em intervenção milagreira do divino.

A tropa chega de noite, na noite densa e escura de África. Os homens saltam trôpegos dos camiões. O Capitão comandante ordena a montagem das tendas de campanha, alinhadas em duas filas, uma de cada lado da picada. Sendo a tropa a instituição mais organizada que existe, mesmo na mais acesa das batalhas os comandantes seguem as normas com rigor, ainda que totalmente descabidas. Só em situações de caos instalado alguns perdem a compostura ou a lucidez, a maioria dos oficiais de carreira mesmo de calça borrada, mantém-se firme e hirto na sua missão.

As vezes os políticos – geralmente os ditadores – ordenam-lhes que fiquem e morram se for necessário, numa situação, que se sabe não vai ter uma boa solução. E eles ficam, e morrem, parvos, sem saberem dizer aos mandantes que uma morte nunca é conveniente, necessário é proteger uma vida.
Só que a seguir vem a honra, e baralha tudo. As ideias de pátria, de identidade de raça, da língua comum, tudo fica inquinado com os conceitos que servem a honra. É muito difícil e leva muito tempo desinfectar as águas que ficam poluídas com esse veneno insidioso, que mina a cabeça das pessoas com o sentimento de culpa, de traição a qualquer coisa, acabando por tornar impossível a sanidade dos que ficam doentes desse mal.

Comem rações de combate, más. Têm uma noite descansada, o inimigo cumpre-se como bom anfitrião, dá-lhes tempo para se ambientarem ao palco da guerra.

A manhã irrompe com uma exuberância de luz e brilhos que põe o mundo e os seres que o habitam em delírios de gozar a vida, apostando tudo, sem pensar em responsabilidades vãs. Não é um bom dia para morrer, nenhum a menos que seja.

O capitão comandante envia dois pelotões – primeira missão - liderados pelo Alferes Eduardo e o Tenente Marrecos a saírem em reconhecimento do local, aproveitando, que cacem alguma coisa. Ao fim de uma semana as rações de combate não se podem nem cheirar, mas ainda há quem goste e as negoceie.

Ainda não aprenderam a mimetizar a sua presença e denunciam-se ao inimigo, que já foi anunciado duas vezes e não entrou em cena. Acção ingénua, eles não têm experiência da guerra, não sabem como funciona. Não sabem que devem ser recatados, fugidios, camuflados, tudo o que pede a vida, para que se chegue à hora da morte o mais tarde que se puder. E agem assim porque são jovens. Não deviam aceitar soldados antes dos sessenta anos, as guerras suavizavam-se.

Quem fica fuma e assiste à evolução dos camaradas no terreno. Sentados no chão, encostados a árvores que não sabem o nome, de folhagens exuberantes, observam no alto da colina o movimento dos camaradas.

O reconhecimento reconhece pouco, não há sinal de gente, os animais são outros e desconhecidos, alguns de jardim zoológico, aqui em estado de liberdade. A diversidade e os costumes mudam ao virar de todas as esquinas, o que faz o mundo bonito, mas na sua terra, do norte ao sul que é um corredor estreito, a bicheza é a mesma. Há os ovinos, os bovinos, os caprinos, os equinos, a passarada, meia dúzia de répteis, os cães e os gatos que não contam, e uma mão mal cheia de predadores: os lobos e as raposas, quase cães. Insectos, é um nunca mais acabar, igual em todo o lado, mas picam menos e não dão febres.

Aqui não. Os cavalos têm riscas. Comem-se? Outra espécie de cavalos, gigantes têm pescoços como gruas, são de cor amarela com manchas castanhas espalhadas pelo corpo. Comem-se? Os macacos são primos, não são de comer. Até os veados são diferentes e quando se lhes aponta a arma já desapareceram, velocistas frenéticos, saltadores do arco-da-velha. Impossíveis de apanhar.

Os oficiais mandam apontar armas a uns bois pretos com uns cornos enormes, que parecem ser os seres mais ponderados da savana, todos os outros animais gastam o dia numa correria louca e histérica, não param. Estes, talvez pelo porte, ou porque estão de bem e resolvidos com a vida, mexem-se pouco, ruminam, não saem do sítio. Os predadores só atacam os mais velhos e doentes ou as crias. A natureza não é justa, não tem estados de alma, nem contestações metafísicas, ou talvez por isso tudo ser um sim e um não, seja justo, à sua maneira.

Boi é boi, independentemente do tamanho ou da configuração dos cornos que mesmo rijos têm uso. Matam dois, bois.

Pesadíssimos, é pedido via radio um reforço logístico da restante companhia para ajudar os caçadores a transportarem os víveres para o acampamento.

Neste ponto específico da narrativa, levantam-se dúvidas sobre o cumprimento das NEP, que são as normas de execução permanente (o facto de se ter descuidado a segurança abandonando o quartel, indo todos caçar), mas como ninguém viu e isto é uma ficção, é provável que nada disto tenha acontecido, mas podia.

A ficção é uma produção de imaginações que autoriza correcções posteriores pelo criador, a pessoa que a escreve depois de a pensar. Se vier a estar em desacordo com o desfecho inicial: a morte das pacaças e a incúria na segurança, é retirada de cena, intercalando-se outro apontamento, nos limites aceites da verosimilhança e da boa prática de escrita de ficções.

Os homens andam nestes trabalhos a tarde toda: empurrando as bestas encosta acima, atarefados, incomodados com o calor e a sua abafadura, e não discorrem que podem usar os camiões para transportar os animais defuntos.

Os representantes locais da facção terrorista terão outros afazeres importantes, nenhum passou por perto, que se visse, e se viram os militares sorriram com certeza, pensando como seria fácil exterminá-los naquele momento. O que eles desconhecem é que esses militares estão ali por obrigação, podiam estar nas ocupações dos seus trabalhos, uns no campo outros nos escritórios, e foram ali parar para defender uma terra que eles só sabiam existir por terem decorado os nomes nos mapas das colónias pendurados nas escolas onde aprenderam as letras e os números, tudo por obrigação e sem pensarem, decorar, nada mais.Uns e outros, nos dois lados de uma perspectiva, são boa gente boa.

Se os terroristas fossem maus como diz a propaganda, má índole e fígados biliosos, tinham dizimado uma companhia inteira sem estes terem chegado a entrar ao serviço oficial da guerra. Uma companhia de infantaria massacrada, tiro ao alvo, como tirinhos às latas numa banca da feira popular no Campo Grande.

Ao protector da nação dava jeito um massacre. Um bom argumento para justificar ao mundo e ao povo, a razão do envio de uma geração hipotecada de jovens para um matadouro a céu aberto, a milhares de quilómetros de distância do sítio onde andavam entretidos em viver as suas vidas, com a justificação frouxa de irem defender uma ideia de Império puído com cheiros a mofo e bolas de naftalina, roído ainda para mais, por traças ubíquas, por quem construía esses argumentos.

É um dia de grande solenidade e luto. A cerimónia é transmitida em directo para o mundo por via das ondas radiofónicas. Titubeando, a televisão, a começar, vai até onde vai. Imagens a preto e branco condicentes com o luto e com os avanços da técnica. Onde está a acontecer esta cerimónia, se a cor não chega a colorir o dia, como se há de querer que seja transmitida numa imagem da televisão?

Terreiro do Paço, ou do Comércio, ou da estátua do Dom José I. O dia está amuado e pálido, com nuvens cinzento-escuro encarreiradas a dizerem que se a encurralarem ainda mais, que vão chover. A etiqueta do luto –  decretada - obriga o uso do negro, quem não tem põe uma braçadeira preta no braço direito. É o fumo. As mulheres vestem-se assim diariamente, de luto pela vida toda, por uma razão ou por alguém. Num país cheio de luz, as pessoas albardam-se de escuridão.

 Os três ramos das forças armadas perfilam engomados e engraxados. Os oficiais penduram no peito uma quantidade obscena de medalhas, os soldados não têm medalhas. O ambiente é taciturno. Os comentadores dos meios de comunicação poetizam em tons carregados frases filigranicamente construídas, tendo em som de fundo músicas marciais e fúnebres.

Ancoradas no rio, frente ao cais das colunas, duas corvetas da Marinha de guerra preparam as salvas de pólvora seca, fazem a guarda de honra dos mares, no rio. Passa em voo rasante uma esquadrilha da força aérea. Uma só vez, um estrondo de estarrecer a multidão, que triste, passa a temerosa. Tudo a postos para o discurso, ponto alto da cerimónia. Escreve-os todos, escreve tão bem discursos! O seu dizer, sibilante, numa forma quase rural, falsamente singela, imiscui-se na cabeça das pessoas, altera a lucidez e a razão, atributo de um tribuno.

O povo apinhado a molhos – é assim o povo: a molhos - delimita milimetricamente as margens do terreiro, ocupando todas as nesgas. Choroso, abatido, mais rasteiro que habitualmente. O palanque das autoridades foi discretamente decorado, a verde e a vermelho, motivos da bandeira. Flores brancas, andróginas de nome, sarapintam, fazem-na, a linha de contorno do estrado.

Altos dignitários: diplomatas, banqueiros, industriais, deputados, membros do governo, enviados de deus na terra, enlutados e circunspectos, ouvem com ar sério a prosápia exemplar do líder, que fala nas virtudes da raça, com eloquência, demoradamente, adjectivadamente. Pela Pátria, a vida e a alma, o peito feito à lança ou à bala. Nos olhos uma lágrima, não de medo, de orgulho, raça esta que desbravou mundos e os acrescentou ao mundo, na falta que faziam de existirem.

Ele começa lentamente o discurso, pausadamente, sorumbaticamente, soletrando a custo, arrancando doridamente as palavras da boca. Aumenta o tom, dá volume, modula o ritmo, agora nervoso, as palavras fazem ecos intermináveis e repetidos nos cantos da praça, constroem em volutas frase tristes e sérias e muito politicas, pairando nas pessoas que as ouvem, compreendendo a maioria mal. Atinge o discurso a sua elevação, a sua estatura maior, um estatuto que ficará nos manuais da história, a assinalar aquele dia de azar.

Povo que arfa e chora copiosamente alto, gritando, roncando, esganiçando a sina de um povo azarento. O seu choro, imenso, escoa num rio lacrimejante e revoltoso que escoa para o rio das águas doces, mesmo ao lado. O fluxo tumultuoso das lágrimas produz um som grave e tonitruante, ao escorrer. Veja-se o som, que até faz som, que tanta água fisiológica faz junta.

O cardeal patriarca, não ubíquo mas omnipresente, é o aval junto de deus da entrada no céu dos mortos mártires, apõe o carimbo no passaporte para a eternidade.

Finda a oratória apoteótica canta-se o hino, executado instrumentalmente pela banda a cavalo da Guarda que troteia em frente ao palanque. O tamborilar dos bombos e a cadência sincronizadíssima do trote de tanto cavalo junto, estremece o chão, chocalhando ainda mais os corações dilacerados dos familiares, pondo os outros corações presentes arrítmicos, em solidariedade cardíaca.

Seguindo o protocolo, o chefe do Conselho aposta agora - um por um, sem nenhuma pressa - uma medalha nas lapelas dos casacos coçados dos familiares das vítimas. Desconhece-se o teor do escrito nas medalhas. Distribui uma palmada de conforto e uma palavra de ânimo, qual será a palavra de ânimo?

A homenagem arrefece os críticos por algum tempo. Dando folga ao regime. O país acaba de ganhar sob a forma de cento e uma dúzia de caixões, uma justificação para ir fazer a guerra.

Os caixões estão cobertos pela bandeira pátria, são de madeira de pinho por serem muitos e o país pobre. No seu interior jazem pernas e braços desirmanados e outras partes, ajuntados como calhou, mais ao menos ao peso. Depois de fechados ninguém iria confirmar se os pelos ruivos da perna esquerda correspondem aos pelos pretos do braço direito. Pormenores e segredos de somenos guardados nas cabeças de quem fez as separações na morgue, com a pressa de que os restos não se decomponham, não fedam, faz calor, abafa-se em terras de áfrica.

O que conta é a memória, a ideia que fica, o baú das recordações, e esta fixa-se na cabeça e nas fotografias.  Que se vai perdendo até ser uma impressão residual e muito afastada, como o tom de uma voz de um ente, que se vai perdendo, até não ser mais do que uma ideia vaga de voz.

O tempo ameaçava borrasca mas conteve-se, foi decente, tudo correu conforme a organização, foi uma linda cerimónia. Todos irmãos, quando toca a sofrimento, unidos, mais um dia de patriotismo em dose intensa. Depois todas para suas casas, almoçar. O presidente do Conselho almoçou com o cardeal, era um dia a pedir um aconchego espiritual. Canja de galinha do campo e um bom vinho das terras do Dão.

Felizmente não aconteceu esta ficção, não houve necessidade de expatriação dos corpos todos de uma vez. Pingaram, num conta-gotas ao longo dos quatorze anos da guerra, facilitando-se a logística do reenvio para a metrópole e dando tempo mais que suficiente para construção dos mais de oito mil féretros, mais um menos um.

Graças a Deus a Companhia comeu os bois – carne saborosa e tenra – que foram assados numa fogueira que se via a quilómetros de distância.Dormiram como lordes e no dia seguinte iniciaram a reconstrução do casario.

O primeiro-cabo Mário não tem jeito de mãos para trabalhos manuais. É amanuense do capitão, mas como ainda não há temas para a datilografia, é transferido provisoriamente para o departamento de animação e propaganda, uma área importante, que ajuda a levantar o moral dos homens em momentos cabisbaixos. Está encarregado de preparar, ensaiar e produzir a actividade lúdico-cultural dos fim-de-semana. Numa dimensão perdida no meio do nenhures, um mundo paralelo, entre as folgas da guerra, faz-se a representação de um programa de variedades ligeiras. A vida sem mundanidade torna-se insuportável.

Os dias passam e eles reconstroem as instalações sem que haja sinais de perigo. Podia ser uma colónia de férias dos escuteiros e eles saírem todos dali a saberem fazer os nós de olhos fechados, com um punhado de aventuras para contar aos pais e próximos.

O médico e o enfermeiro são os que andam mais ocupados. Pouco após a chegada, fazem de jipe o trajecto até a sede do Distrito, para se apresentarem ao director clínico do hospital, agora requisitado pelas Forças militares para servir como unidade de apoio.

Voltam na manhã seguinte, o jeep avançando enfadonhamente lento pelas intermináveis rectas monótonas de terra batida, um perder-se numa distância que dá a todo o momento a sensação de longínqua, tal a lonjura das linhas de horizonte. Na metrópole não há distâncias assim. Não se avistam casas, não se veem cubatas, gente humana, só animais na sua liberdade selvagem, e árvores e arbustos em tonalidades de cobres e verdes intensos, e outras cores, e um sol agressivo, de chapa, que põe a linha do horizonte a tremelicar, um fio instável.

Sentado na beira da estrada de terra batida está um miúdo, saído do nada. Eles assustam-se, desconfiam, reduzem a velocidade e passam por ele com as mãos a vincarem as pistolas. Viram agora automaticamente, sincronizados, os dois, as cabeças para a berma onde está impávido o miúdo. Nu e descalço, olhando-os vivazmente. Eles não resistem ao olhar de um miúdo. Param um pouco mais à frente, desobedecendo ao bom senso e à lógica, rendidos pela curiosidade, um apelo mais forte.

O miúdo tinha uma pústula com mau aspecto. Enorme, na barriga. Esperava pelo doutor, mas como é que ele sabia que havia um doutor que passaria pela picada nesse dia? Sabia.

O doutor Silva drenou e desinfectou, mandou o enfermeiro administrar a vacina do tétano, e administrou ele próprio uma injecção de antibiótico. Reforçou o penso para durar o mais que pudesse, não sabia se o voltaria a ver. Havendo condições para a sorte estar nos seus dias, o que não está nas suas mãos, o miúdo sobreviverá.

Correu-lhe bem, e depois deste episódio cada vez que o médico viajava até ao hospital, esperavam-nos no mesmo local, sentados na berma da estrada como na sala de espera de um consultório sem tecto nem cadeiras, novos e velhos, a esperarem o senhor doutor colonialista branco, em silêncio sabendo que iam ser consultados entre hoje e amanhã. O doutor Silva e o motorista enfermeiro foram os únicos membros da Companhia que no período da comissão de serviço, se deslocaram livremente sem escolta a qualquer hora do dia ou da noite sem sofrerem nenhuma emboscada.

A noite em África cai de rompante, tem uma pujança particular em ser inevitável, não se anuncia com rodeios, cai.
Como um pano-cortina de veludos densos, em cores laranjas, vermelhos, roxos fortes. Abate-se subitamente sobre a terra, numa apoteose, cobre-a de escuros até ao dia seguinte. Em África o ocaso tem um som, que se ouve. O dia dá lugar à noite num toque de interruptor: apaga a luz, acende a luz.

Também os seres diurnos dão lugar aos seres nocturnos, mudam o turno, imediatamente após o breve silêncio que se faz sentir quando baixa o pano na mudança de cenário, e uma orquestra sinfónica tocando sons desconhecidos e vários, acompanhados pelo restolhar das ervas. Todas as noites se assiste a uma prémiere de uma sinfonia da escuridão. A noite é mais atarefada do que o dia. É o período em que os seres que vão morrer se apresentam, naturalmente, para serem mortos, sabendo da existência dos predadores, não faltam ao encontro fatal. Têm esse acordo dos ciclos de vida e morte.

No quartel os estômagos e as cabeças – obnubiladas - digerem ainda o churrasco dos últimos dias. Toca a corneta a dar ordem de recolher quando devia estar calada, toca na mesma, cumprindo-se o ritual e a tradição. Quando é para tocar a corneta, é com toda a disponibilidade dos pulmões que o faz o corneteiro, nos seus únicos momentos de glória efémera, posto que na tropa o corneteiro só tem essa missão.

Dentro das tendas os homens acabados de saírem de rapazes, descalçam as botas e libertam os odores pessoais, despem os dólmens dos camuflados. Põem-se uns cá fora a olhar o céu, acabrunham-se os sentimentos, uma hipoglicémia do coração. Fumam fartamente, a ciência médica aconselha a que se fume, terapia para males de pulmão, da asma e da alma.

É de noite que se pensa em todas as coisas: na família, na namorada, no que se deixou. Fazem-se palpites e lançam-se juras de esperanças sobre o que está para vir, promessas íntimas, se tudo correr bem, vai-se a Fátima depositar vela com os joelhos todos esfolados, pouca a dor na dor que já se sofreu.

Iluminados pelas labaredas vistosas e intermitentes da fogueira, escrevem-se com vincos de mãos rudes, bilhetes de amor, tentativas de romantismos, homens que nunca conseguiram dizer “amo” e agora andam aflitos para recuperar os atrasos dessa mudez propositada. Os mais cerebrais ou que não tenham deixado ninguém suspenso em amor, debitam telegrafias do quotidiano, noticiam. Alguns soldados dormitam assentando no calendário da memória dos sonhos, com um “X” maiúsculo mais um dia de vida. Não fazem mais do que isso. Ainda não há pesadelos.

Apesar do bucolismo da cena, é uma inverdade dizer que a paz reina sobre esta natureza composta de homens e do resto que os rodeia. Paira um receio latejante, peganhento, o ambiente é obscenamente calmo. Seres invisíveis deste mundo ou de outros sopram arrepios nos soldados. Há uma expectativa, uma inquietação, o sossego é demasiado para ser credível.

Instala-se o primeiro quarto de guarda. Na casa principal, os oficiais cavaqueiam banalidades, reconfortados por aguardentes fortes. Sobre eles em céu aberto, um telhado de milhões de estrelas cintilantes, apazigua das maldades dos homens, os medos e as fragilidades.

Passa uma hora. Quebra-se o fio dessa fina harmonia no som de uma rajada de metralhadora. Vem da direcção do posto de guarda mais distante, no local onde o caminho de acesso ao aquartelamento bifurca da picada principal. Cai um silêncio sólido que a juntar o breu da noite, justifica o maior pesadelo. Ouve-se de novo uma rajada, precipitam-se os acontecimentos.

Os homens desorientam-se, a razão bloqueia com o medo. Gritos, histerismos, desnorte, seminus, em trusses, saem das tendas, deitam as tendas abaixo, pegam nas armas e disparam em todos os sentidos, doidos varridos. O capitão envia o Alferes Eduardo em missão de reconhecimento e avaliação com relatório escrito na volta, volte ele.

Pondo à prova os conhecimentos teóricos adquiridos na Academia, Eduardo homem lamentavelmente com poucos pelos na cara para estar ali, avança com táctica no terreno, ziguezagueando, procurando o disfarce com as silvas, imaginando ser assim porque é noite e ninguém vê nem o próprio, se está ou não bem camuflado. É um homem de fibra, a missão corre-lhe bem.

No posto de sentinela está, mal está, o soldado José António em estado de tremores, transparente de se ver por dentro, acocorado, posição fetal por trás da parede dos sacos de areia que protegem o posto de sentinela.

O Alferes pede explicações, o soldado José António tem a boca entupida, está incapacitado de expulsar palavras, saem gagas.

Um par de estalos resgatam-no.

Diz:

- Meu alferes, estava eu de olhos postos em nada, a olhar para o preto da noite, sempre a fazer um esforço para os abrir mais e mais e salta-me à frente, tão perto que me assustei, uma luz a piscar.
- Abri os olhos mais ainda, para ver se percebia. Não era uma, mas muitas.
- E piscavam como? - Pergunta de oficial.
-Assim, a acender e apagar (exemplificou com o isqueiro)
-Certo. E mais?
- Como me ensinaram na recruta em Castelo Branco, levantei-me e perguntei quem vinha lá.
- E qual foi a resposta?
-Não foi. Calados que nem mulas. Tanto silêncio e as luzes a passarem à minha frente. Ali havia história, meu Alferes.
-Devia ser o inimigo a comunicar algum código lá deles, estavam a preparar alguma. Dei uma salva de aviso, a ver se os amedrontava.
- Fizeste bem e o que aconteceu a seguir?
- Eles não fizeram caso e eu gastei todas as balas, com sorte posso ter acertado em algum.
- Ouviste gritos de dor, ou coisa parecida?
-Nem piaram meu alferes.
- E o que fizeste a seguir?
- Perguntei a palavra passe.
- Isso devia ter sido antes de disparares!
- Não me deram tempo meu alferes e já tinha perguntado quem vinha lá.
- Foste inspecionar o terreno?
- Não meu alferes, as luzes continuaram intensas, a piscar, eram cada vez mais. Fiquei quieto a aguardar por reforços.
- Se não fosses bronco o que gostavas de ser?
- Gostava de não estar aqui meu alferes.

Gastaram-se as balas e o inimigo não invadiu o recinto, porque não havia inimigo naquela noite para atacar ninguém. Em África há muito mais pirilampos que na Metrópole.

Uma vez mais a companhia não foi dizimada, desta vez poderia ter sido por si própria. A ter acontecido como é que no Terreiro do Paço se contaria a História dos pirilampos mágicos?

Acalmaram-se os ânimos, os homens foram dormir.

Só passado bastante tempo após a batalha dos pisca-lumes, é que aparece à porta da casa principal, o primeiro-cabo Mário, a rastejar em estilo bruços. vinha ofegante, sujo e humilhado.
O capitão encontra-o colado ao chão, parecia uma lagartixa.

Também ele não consegue articular palavra. Colocado em posição de sentido - não se vê se está direito ou abana, não há luz suficiente - uma mancha escura alastra pelas calças do camuflado no sentido descendente, da gravidade.

O Mário não foi feito para ser soldado, tem uma sensibilidade fina, de artista. É incapaz de matar e fica enjoado só de pensar na possibilidade de estar morto. Nessa noite estava recolhido, afastado dos colegas, a olhar para as estrelas do céu e a pensar em coisas poéticas, porque ele é um homem com uma cabeça revestida a pautas de música romântica.
 
Até resolver o problema o comandante da Companhia decidiu que na eventualidade de um dia por falta de efectivos lhe darem um turno de sentinela, ele fica proibido de usar a G3 com balas, não se dê ao incómodo de causar problemas físicos a si mesmo.

Algum tempo depois, primeiro-cabo vem com guia de marcha para Luanda com um diagnóstico médico de doença pulmonar, possivelmente contagiosa. Recomenda-se que fique por lá e não se olhe a tempo na sua recuperação, e estando curado que ocupe uma função de utilidade militar na capital, já que a Companhia fará todos os esforços para preencher adequadamente o lugar vago. Não é necessário que ele regresse, o esforço suplementar dos homens, suprirá a sua falta. Já que se vai para Angola defender a Pátria, e se é para morrer, que seja de uma catanada, de catarro infecioso morre-se em casa, não é preciso o Estado gastar dinheiro em deslocações e estadias.

Que tenha um bom e rápido restabelecimento são os desejos dos camaradas. Os desejos de recuperação rápida foram atendidos, mas ele voltou à Companhia, por necessidade de efectivos operacionais nas zonas de conflito. Ficou como chefe cozinheiro e começou aí uma carreira de grandes sucessos na restauração, chegando na vida civil a ganhar estrelas de generalato gastronómico.

Fica por agora afastado de acções directamente relacionadas com actividades bélicas e medicado com um ansiolítico leve, sob cuidadoso controlo do médico Silva, atento à evolução da sua doença.

Os dias a somarem semanas e meses passaram por cima deste episódio, a guerra mostrou os seus ângulos e esquinas, os homens perderam a inocência e vida. Os terroristas são reais, querem ser independentes, são convincentes na ideia de terem um país seu.

É uma guerra sem rostos, de sombras chinesas, um jogo das escondidas. É o terrorismo, pode estar mesmo ao lado e não se dá conta.

É uma guerra de emboscadas, de encurralar o inimigo, atacar e fugir. É uma guerra de minas, escondidas na terra, a mais cobarde, a guerra dos inocentes.

A Companhia vai cumprindo a sua missão com baixas ocasionais. Aqui e ali rebentam algumas minas na estrada, que vitimam animais de grande porte até que no décimo quinto dia de um Agosto, dia da Assunção de Maria, a Imaculada Mãe de Deus, elevada em corpo e alma à glória do céu, sendo a primeira criatura humana a alcançar o salvo-conduto da salvação eterna, um pelotão comandado pelo furriel Leucácio é emboscado numa depressão de terreno, vinte quilómetros a Norte do aquartelamento.

Uma árvore abatida obriga à paragem do camião no final de uma inclinação no terreno. De imediato abate-se sobre eles um fogo intenso, que leva os homens a procurarem protecção debaixo do camião. Paralisam de medo. Há situações em que o tempo é uma eternidade nas suas fracções de minutos, esta é uma delas. O cenário está suspenso esperando pelo desfecho.

O cabo Elias, indivíduo taciturno -soube-se mais tarde – de poucas palavras e não gozando de nenhuma popularidade, sem amigos, num aparente acto de loucura agarra numa HK47 com uma série de fitas de balas ao pescoço e avança de peito feito, a disparar que nem um louco que pelos vistos é, e aos gritos para ainda parecer mais louco. Os agressores não esperam esta reacção, estava mais ou menos combinado eles atacarem e irem às suas vidas. Agora é ele que os apanha desprevenidos, assustam-se e são capturados. Sete, levados para o quartel antes de serem enviados para Luanda para interrogatório com massagens nas costas e noutras partes do corpo. Cospem nomes e outras estórias no meio do sangue e dos dentes estilhaçados. Há-os mais rijos que outros, mas é tudo uma questão de tempo e empenho nas massagens.

O Furriel Leucácio conta o acto heróico do Elias ao comando que passa a informação para o quartel-general. Nasce um herói. Mal estejam prontas – que ninguém se tinha lembrado que havendo guerra tinha que haver medalhas – umas das primeiras será sua. Com direito a abraço de alguém importante e subida de graduação, à classe dos sargentos.

Na vida civil Elias era um menino “café com leite”. Diz-se no passado porque é um presente que já não existe. Não dormia sem o leitinho nem as bolachinhas “Maria” com manteiga e a mãezinha a aconchegar a cama do menino. No inverno não dispensava o saco de água quente para aquecer os pés. Todas as noites a mãe vinha apagar a luz, aconchegar o cobertor e dar um beijo na testa do menino, desejando-lhe a protecção de deus e dos anjos da sua predileção.

A recruta não foi fácil, não tinha ninguém que o tapasse nas noites húmidas da camarata, enorme e desconfortável e cheia de homens a roncarem e peidarem-se.

Afirmam os camaradas que na semana de campo, antes de jurar bandeira ele foi visto a pôr pó para matar insectos à volta da tenda e que dormia embrulhado num mosquiteiro de gaze. Parecia uma múmia viva. Mas isso serão concerteza efabulações, faz-se tudo para enterrar ainda fundo mais uma pessoa.

Era um comichoso, quem alguma vez diria que uma figura destas seria um herói do ultramar?

Como foi ele a capturar os rebeldes, e enquanto não foram transportados para o quartel-general, foi incumbido dos interrogatórios preliminares. Não teve grande sucesso porque desconhecia a língua dos nativos e estes não respondiam às perguntas feitas em português.

Não pôs muito empenho na tarefa. Limitava-se a passar pela cela improvisada, e repetir sempre as mesmas perguntas: o nome dos insurrectos, quantos eram, se havia mais e onde estavam aquartelados. Ficava sem respostas, recebia um mutismo cerrado.

Um dia, a rotina quebrou-se, quando Elias virava costas e ia a sair, ouviu:

- Quando sair daqui vou-te apanhar.

O soldado virou-se e viu uns olhos inflamados de ódio.

Desde esse episódio e até que veio a ordem de transporte para Luanda, o terrorista passou a repetir a ameaça, todos os dias igual, nenhuma outra palavra acrescentada.

O destino não perde uma ocasião de pregar uma boa partida, e os homens que nunca aprendem, são sempre apanhados distraídos. O cabo leva os prisioneiros para Luanda.

Não chegam ao destino. A meio do caminho, num descampado, o Cabo manda parar a viatura, ordena aos soldados para alinharem os negros na berma, ajoelhados, e como se fosse num filme em câmara lenta, um a um, dá-lhes um tiro entre os olhos. Deixa para último o dos olhos inflamados e diz:

- O teu nome é: Póstumo.

Depois disto embrenhou-se no matagal denso e nunca mais ninguém o viu.

Esse foi o dia em que começou a verdadeira guerra de África, o dia em que as balas se transformaram em ódio e raiva. Não foi um dia assinalado. O menino da mamã transformou-se num monstro.



«A Alcina é a minha motivação. Anseio que os dias acabem, vivo, para lhe escrever, ou reler inúmeras vezes, as cartas que me envia. Esta savana imensa, a perder-se na linha longínqua do horizonte, este céu que não acaba, transformou-se numa prisão sufocante, todo o ar respirável está viciado.
Pensar que um dia a poderei conhecer, que corresponde aos tons que os meus sonhos a pintam, é a minha libertação, a minha esperança.»

Uma carta para Alcina:
Passou um ano desde que cheguei, já todos perdemos a ingenuidade e o medo, não é perder o medo, é um desleixo de não se querer saber. Vencidos por um grande cansaço. Vivos ou mortos é um jogo, de sorte e azar e nós somos as peças desse jogo que alguém está neste momento a jogar, divertindo-se sem remorsos.

Da história dos caga-lume à monstruosidade praticada por Elias, num momento de loucura, foi uma aceleração brusca e inesperada do tempo, tudo muito rápido, como viver uma vida no espaço de um ano. Deixámos de ser puros para estarmos cobertos de nódoas sujas, e todavia, isso nada vale, é um simples e entediante jogo que não se conhecem as regras.

Aguardo ansiosamente pelo nosso futuro minha querida Alcina. Construímos um amor com palavras que no início diziam pouco e eram contidas, tímidas. A princípio só serviam para transportar ideias e notícias, de aqui e de aí. Com o tempo, começaram a levar e a trazer sentimentos. Gostámo-nos e avançámos para as encomendas postais, transportando frescas caixas de beijos repenicados, bombons dos sentimentos. Agora, cada aerograma é um vendaval de mercadorias do amor.

Espero encontrar-te bem, se chegar são, vou reconhecer o teu rosto desconhecido por entre a multidão que acena os lenços brancos das boas-vindas, no cais onde atracam os barcos na nossa cidade. Porque olhei milhares de vezes a tua fotografia, e decorei todos os pontos que fazem os contornos que constituem o teu rosto, para mim o mais belo de todos. Dar-te-ei um abraço que será único e o melhor abraço que jamais darei em toda a vida, treino-me para isso, imaginando-te. Seguir-se-á um beijo longo, prolongado, doce, carnudo, independentemente dos olhares ou reprovações dos outros, que não quero saber.

Até lá, continuarei a amar-te, minha madrinha de guerra, anelando a paz.

Uma carta para o Mário:

Meu amor,

Como o tempo que passa com tanto vagar, parece hoje ter sido o tempo de um relâmpago. Demorou tanto e agora aproximam-se os dias do primeiro encontro. Que ansiedade, que anelo, que insegurança.

A tua história, para mim, não será mais contada. É um esquecimento de um tempo que vamos apagar os dois, fazendo uma nova história, colorida e muito mais bem escrita. Só conta o nosso tempo, aquele que nos espera de felicidade e respeitos mútuos.

Não tenho a mais pequena dúvida que te irei reconhecer, na mancha informe dos homens fardados a verde, que vão atracar num barco também verde e informe, num cais com as paredes pintadas com seres imaginários, onde estarei à tua espera, para assinalarmos o primeiro dia da nossa vida.
No tempo que resta, cuida de ti, que é de nós, não arrisques nada. Desejo-te assim, como te penso, não quero um herói cujas carícias recebem o frio de um corpo sem vida. Quero-te vivo e meu, amor.”


Este é o amor da espera, o amor que se imagina, impalpável, desconhecido, ansioso, pelo qual se dá tudo, se aposta o futuro no escuro.


Não é este um amor incondicional?


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