É uma
grande decisão de consequências impensáveis. É muito difícil, a primeira carta.
Escrevê-la.
Uma folha
de papel, imenso branco. Paralisa a vontade.
O branco
podia ser outra cor, é branco porque é simbólico, a representação do vazio, espaço
por preencher.
As
primeiras palavras, o primeiro encadeado de frases, definem o desfecho, são a
sua sentença. Nada se pode emendar depois de escrito, a menos que se seja
desonesto, ou cobarde, se amarfanhe na mão a folha e se deite para o lixo, o
que é desleal.
Uma carta
não se emenda, segue pelo correio com o que foi escrito pela primeira vez, e
única. É como pintar uma aguarela, depois de seca, nada se pode corrigir.
Por isso
é uma grande decisão, é a responsabilidade de saber o que dizer, como começar, dar
continuidade, balanço, rematar bem.
Uma carta
é como uma tatuagem que se desenha para sempre na pele, à sua maneira uma
espécie de papel do corpo: pode-se disfarçar mas não se apaga.
«Isso assusta-me,
mas não tenho alternativa. As palavras viajam por conta própria e chegam aos
lugares mais recônditos, e eu aqui, no meio de uma guerra perdida, sem
autorização para me ausentar. Soldado por obrigação, é assim, há guerras menos
justas do que outras, e as que se fazem para reclamar ideias politicas utópicas
de soberania são as mais incompreensíveis.
Sou
obrigado a representar este papel que não esperava para mim, e combato este
tempo que nunca mais se esgota. A escrever cartas para dar notícias aos
meus, corresponder-me com um amor ainda
imaginário, que não conheço fisicamente, porque é preciso tocar, para sentir o
arrepio do corpo que dá inicio ao real festim do amor verdadeiro.
Correspondo-me por aerogramas,
tenho uma madrinha de guerra, chama-se Alcina, belo nome, assim o seja e
imagino, o corpo que atende a esse chamamento.
Não a conheço pessoalmente, mas a sensação
da sua presença que me acompanha ao longe na metrópole, é o bálsamo que alivia
o sofrimento e as penas deste inferno trágico-cómico. Ainda não sei se isto é
um pesadelo ou uma história de muito mau gosto que está a acontecer
virtualmente num ambiente de sonhos impalpáveis, irreais.
Faz dois anos que estou na guerra.
Imagine-se alguém pôr no seu currículo, quando procura um emprego, ou
simplesmente quando cataloga as etapas da sua vida, como parte de um período da
sua ocupação, o estar na guerra. Que créditos isso dá? Ganhou-se uma
competência? A de matar? A de rodear a morte e sobrevivê-la?
Sempre tive medos, com pequenas
coisas, das grandes ainda mais. Eu tenho naturalmente medo, e o mais penoso de
todos é que sobreviver vivo dia a dia, aumenta a minha probabilidade de morrer,
o que me dá um medo enorme.
Se tiver futuro depois disto, tem
um nome marcado: Alcina. Podia chamar-se Esperança, que ficaria bem. Pensar nela preenche-me os excedentes do
tempo, que é quase todo o dia com excepção de momentos concentrados de guerra.
Sorvo as horas desejando a tranquilidade da noite. É quando lhe dou notícias,
escrevo. Já enviei muitos aerogramas, e recebi outros na volta. Ganhámos
intimidade com o convívio das palavras escritas, dos dois para os dois.
Exploradores de pequenas coisas primeiro, avançando timidamente para as
emoções, os sentimentos, aventurando-nos cada vez mais, desbravando o
desconhecido, tudo isso por carta, tudo escrito.
Por vezes avançamos com cautelas,
com receios de magoar, outras, em dias heróicos, galopamos arriscando todos os
horizontes do outro. Nem sequer nos conhecermos, ou sim, por todas as palavras
que foram ditas, já nos conhecemos?
Esta longa ininterrupta conversa à
distância, ganha recompensas: a imaginação fertiliza-se, desbraga-se. Se
estivéssemos na presença física do outro, a ela faria corar, a mim, gaguejar na
palavra seguinte, ou no movimento que levaria a uma acção: um toque com
intenção de veludo na sua pele, um roçagar quase involuntário cheio de vontade,
ou então mais energicamente, sendo inequívoco, querer tocar e ela saber que o
vou fazer, irremediavelmente, absorvidos os dois por um magnetismo que não se
explica, que às vezes, poucas, acontece na vida, a atração fatal da fatalidade
gloriosa da paixão, que pede todas as competências, da cabeça, do coração, do
corpo.
Gostaria de poder alimentar um
sentimento mais forte, pirogravado no coração com outro nome, mas quando se
trabalha na profissão da morte é avisado pôr de lado investimentos na vida.»
O
navio-paquete Pátria é um navio misto de transporte de passageiros e de carga e
tem como madrinha a Senhora Dona Maria com muitos apelidos, filha do Ministro
da Marinha, futuro presidente vitalício da nação. Não havendo nada mais a dizer
sobre o navio, o ministro, as suas ramificações familiares, e o tédio reverente
de uma imagem pendurada num quadro em todas as paredes de casas de pé nesse
lugar.
Começa
hoje, não deram para marcar o dia com tempo, pelo que começa sem inauguração
oficial, uma nova da guerra.
Num cais com murais modernistas pintados por um
pintor também ele modernista não conformado, as famílias mais humildes
despedem-se todos por igual dos seus filhos que vão dar começo à guerra. Os
menos humildes mas ainda assim só medianamente remediados, despedem-se com mais
decoro, na privacidade das suas casas. Os nada humildes não se despedem: os
seus filhos não vão para a guerra. Ou ganharam doenças incapacitantes súbitas,
ou põem-se ao largo, não num navio, num avião que os leva para um país da
europa para se ajeitarem a viver numa democracia que não se conhece aqui.
Diga-se que alguns nada humildes, poucos, vão há guerra, são os tradicionalistas,
ou os filhos dos que interessa a guerra.
Beijam-se e
abraçam-se. Há pais que abraçam pela primeira vez os filhos, num abraço cheio
de todos os que nunca deram. Acenam-se com lenços brancos húmidos de lágrimas e
mais humidades. Fazem-se esforços sobrenaturais para focar os olhos na
tentativa já improvável de ainda se conseguir distinguir no volume uniforme de
um barco que se afasta, o filho que se está a deixar para trás, ou para a
frente. Para alguns será a última vez que o veem.
Não se tem
aviso prévio do último beijo (o que mudaria o mundo se se soubesse), por isso
deveriam todos a melhor qualidade de grandes beijos, e últimos.
Para manter
a ordem e a harmonia da pátria, este navio dispõe de três classes: a primeira
para os oficiais, a segunda para a classe de sargentos e a terceira para os
soldados. Cada um à sua vontade, e separados, não têm de estar todo o tempo em
continências e atitudes hirtas. Por agora é um cruzeiro de férias, ao longo da
costa de África. Os dias estão bons, sonha-se deitado numa espreguiçadeira no
convés, a agarrar um sol pacífico, na paz do mundo.
Golfinhos
acompanham os nautas, dão grandes saltos na água, e mergulham e aparecem no
outro lado do barco, andam assim horas, têm uma vida de brincadeiras, os
golfinhos.
Só os
oficiais e os sargentos disfrutam deste espectáculo, os seus camarotes estão
acima da linha de água. Os piões viajam num barco-submarino, abaixo dessa
linha, veem o fora através de óculos redondos, escotilhas, apreciadores de
vistas limitadas.
Se há uma
profissão que fica excluída das opções de futuro do Mário (o primeiro-cabo dos
aerogramas e da sua futura ainda desconhecida Alcina) se voltar um dia reformado
da guerra - que não seja deitado - é de marinheiro. Enjoa como uma “posta de
pescada”, dito de origem duvidosa, e nem sequer ilustra esse condicionalismo
temporário, correspondendo a uma expressão muito provavelmente sem sentido.
Para ele a
viagem não foi leve, um caminhar com poucos intervalos para a casa de banho ou para
a amurada do navio, a descarregar o que não tinha. Era magro, ficou um palito.
Nos momentos exíguos que o desequilíbrio de cristais – não os da adivinhação -
lhe deu tréguas, lívido e exaurido de líquidos e ânimo, ainda fez algumas
tentativas para se distrair, cantando - linda voz, menino da radio, dos saraus
musicais dos domingos da emissora nacional-, desanuviar as rugas carregadas dos
camaradas jovens, ainda sem idade para terem rugas, afastando prenúncios de
tempestade, a eterna dúvida de quando acaba o futuro de cada um, que indo a
caminho da guerra, menos expectativas tem de se ver idoso.
Heróis é nos
filmes, de Hollywood, nesta viagem navega-se apertado, de medos e preocupações.
Atracam no
cais de Luanda em meados de Maio. A baia é ampla, o calor é desconhecido. Figurantes
contratados a custo zero – seria impossível os familiares da partida estarem na
chegada - acenam lenços brancos, outros lenços, sincronizados com o som de
marchas marciais executadas afinadamente, mas desinteressantes, pela banda do
exército, vinda de Lisboa, via aérea, com os seus fatos impolutos de cerimónia,
para receberem o primeiro contingente expedicionário. Não se vai a lado nenhum
sem a companhia da música a mais etérea das artes. Nas portas do paraíso e do
inferno toca ininterruptamente uma banda de anjos e de demónios, a darem as
boas-vindas aos novos moradores.
Aqui não são os emproados germanos em tanques
indestrutíveis atravessando as estepes dos sovietes ao som das suas valquírias,
é somente uma recepção patética que ninguém contesta e é um som que encaixa na
fotografia do regime.
Morrer ao
som dos cânticos dos deuses, a morte glorificada dos heróis. Porque nas
histórias de amor se repete tantas vezes a palavra morte?
Sendo três um número de Deus, a
Companhia de Infantaria, com cem homens inexperientes da “arte da Guerra” e uma
mão cheia presumida de profissionais da Academia, viaja três dias a massajar as
nádegas aos saltos, nos bancos de madeira das Berliet que os transportam por uma picada infindável de terra
batida por crateras de variadas dimensões. Até ao destino foi um passeio, não
houve ocorrências nem encontros com o inimigo.
Mário não vomitou, mas continua
fraquinho, consegue a custo pegar na arma que mal sabe como usar.
A missão é ocupar o sopé de uma
colina estratégica que permite uma observação com vista panorâmica da savana a
perder de vista e horizontes. A principal via de ligação rodoviária para a capital
de Província atravessa a planície, por onde circulam pessoas e mercadorias.
Tudo o que é importante passa por aqui.
No alto da encosta havia até há
pouco tempo, um pequeno povoado de colonos brancos, gente estabelecida em
África há muitas décadas. Esta povoação era um entreposto e ponto de paragem e
descanso.
Foi aqui que começou o conflito,
por nenhuma razão em especial, simplesmente porque se juntaram os acasos
necessários para que uma acção aconteça. Num dia de calor intenso, sem
premonições a afectarem a ocorrência natural do quotidiano, um grupo de
nativos, invadiu o sítio, pilhou, queimou, matou os colonos, e deixou uma faixa
de pano com erros de ortografia crassos a declarar a intenção de independência
do homem branco. Apesar dos erros na escrita o homem branco entendeu.
Desse episódio ficaram de pé as
paredes da pequena igreja, não foi um milagre do princípio ao fim, canónico,
mas demonstra algum interesse do divino em deixar as suas mensagens para
entendimento dos homens na terra. Da casa principal – o posto administrativo,
loja do cidadão, correios, administração autárquica, drogaria e mercearia -
ficaram duas meias paredes, uma delas tinha e tem um crucifixo que se manteve
pendurado, e assim, com dois sinais a acontecerem no mesmo espaço ao mesmo
tempo, já quase se pode falar em intervenção milagreira do divino.
A tropa chega de noite, na noite
densa e escura de África. Os homens saltam trôpegos dos camiões. O Capitão
comandante ordena a montagem das tendas de campanha, alinhadas em duas filas,
uma de cada lado da picada. Sendo a tropa a instituição mais organizada que
existe, mesmo na mais acesa das batalhas os comandantes seguem as normas com
rigor, ainda que totalmente descabidas. Só em situações de caos instalado
alguns perdem a compostura ou a lucidez, a maioria dos oficiais de carreira
mesmo de calça borrada, mantém-se firme e hirto na sua missão.
As vezes os políticos – geralmente
os ditadores – ordenam-lhes que fiquem e morram se for necessário, numa
situação, que se sabe não vai ter uma boa solução. E eles ficam, e morrem,
parvos, sem saberem dizer aos mandantes que uma morte nunca é conveniente,
necessário é proteger uma vida.
Só que a seguir vem a honra, e
baralha tudo. As ideias de pátria, de identidade de raça, da língua comum, tudo
fica inquinado com os conceitos que servem a honra. É muito difícil e leva
muito tempo desinfectar as águas que ficam poluídas com esse veneno insidioso,
que mina a cabeça das pessoas com o sentimento de culpa, de traição a qualquer
coisa, acabando por tornar impossível a sanidade dos que ficam doentes desse
mal.
Comem rações de combate, más. Têm
uma noite descansada, o inimigo cumpre-se como bom anfitrião, dá-lhes tempo
para se ambientarem ao palco da guerra.
A manhã irrompe com uma exuberância
de luz e brilhos que põe o mundo e os seres que o habitam em delírios de gozar
a vida, apostando tudo, sem pensar em responsabilidades vãs. Não é um bom dia
para morrer, nenhum a menos que seja.
O capitão comandante envia dois
pelotões – primeira missão - liderados pelo Alferes Eduardo e o Tenente Marrecos
a saírem em reconhecimento do local, aproveitando, que cacem alguma coisa. Ao
fim de uma semana as rações de combate não se podem nem cheirar, mas ainda há
quem goste e as negoceie.
Ainda não aprenderam a mimetizar a
sua presença e denunciam-se ao inimigo, que já foi anunciado duas vezes e não
entrou em cena. Acção ingénua, eles não têm experiência da guerra, não sabem
como funciona. Não sabem que devem ser recatados, fugidios, camuflados, tudo o
que pede a vida, para que se chegue à hora da morte o mais tarde que se puder.
E agem assim porque são jovens. Não deviam aceitar soldados antes dos sessenta
anos, as guerras suavizavam-se.
Quem fica fuma e assiste à evolução
dos camaradas no terreno. Sentados no chão, encostados a árvores que não sabem
o nome, de folhagens exuberantes, observam no alto da colina o movimento dos
camaradas.
O reconhecimento reconhece pouco,
não há sinal de gente, os animais são outros e desconhecidos, alguns de jardim
zoológico, aqui em estado de liberdade. A diversidade e os costumes mudam ao
virar de todas as esquinas, o que faz o mundo bonito, mas na sua terra, do
norte ao sul que é um corredor estreito, a bicheza é a mesma. Há os ovinos, os
bovinos, os caprinos, os equinos, a passarada, meia dúzia de répteis, os cães e
os gatos que não contam, e uma mão mal cheia de predadores: os lobos e as
raposas, quase cães. Insectos, é um nunca mais acabar, igual em todo o lado,
mas picam menos e não dão febres.
Aqui não. Os cavalos têm riscas. Comem-se?
Outra espécie de cavalos, gigantes têm pescoços como gruas, são de cor amarela
com manchas castanhas espalhadas pelo corpo. Comem-se? Os macacos são primos,
não são de comer. Até os veados são diferentes e quando se lhes aponta a arma
já desapareceram, velocistas frenéticos, saltadores do arco-da-velha.
Impossíveis de apanhar.
Os oficiais mandam apontar armas a
uns bois pretos com uns cornos enormes, que parecem ser os seres mais
ponderados da savana, todos os outros animais gastam o dia numa correria louca
e histérica, não param. Estes, talvez pelo porte, ou porque estão de bem e
resolvidos com a vida, mexem-se pouco, ruminam, não saem do sítio. Os
predadores só atacam os mais velhos e doentes ou as crias. A natureza não é
justa, não tem estados de alma, nem contestações metafísicas, ou talvez por
isso tudo ser um sim e um não, seja justo, à sua maneira.
Boi é boi, independentemente do
tamanho ou da configuração dos cornos que mesmo rijos têm uso. Matam dois, bois.
Pesadíssimos, é pedido via radio um
reforço logístico da restante companhia para ajudar os caçadores a transportarem
os víveres para o acampamento.
Neste ponto específico da
narrativa, levantam-se dúvidas sobre o cumprimento das NEP, que são as normas
de execução permanente (o facto de se ter descuidado a segurança abandonando o
quartel, indo todos caçar), mas como ninguém viu e isto é uma ficção, é
provável que nada disto tenha acontecido, mas podia.
A ficção é uma produção de
imaginações que autoriza correcções posteriores pelo criador, a pessoa que a
escreve depois de a pensar. Se vier a estar em desacordo com o desfecho
inicial: a morte das pacaças e a incúria na segurança, é retirada de cena, intercalando-se
outro apontamento, nos limites aceites da verosimilhança e da boa prática de
escrita de ficções.
Os homens andam nestes trabalhos a
tarde toda: empurrando as bestas encosta acima, atarefados, incomodados com o
calor e a sua abafadura, e não discorrem que podem usar os camiões para
transportar os animais defuntos.
Os representantes locais da facção
terrorista terão outros afazeres importantes, nenhum passou por perto, que se
visse, e se viram os militares sorriram com certeza, pensando como seria fácil
exterminá-los naquele momento. O que eles desconhecem é que esses militares
estão ali por obrigação, podiam estar nas ocupações dos seus trabalhos, uns no
campo outros nos escritórios, e foram ali parar para defender uma terra que
eles só sabiam existir por terem decorado os nomes nos mapas das colónias
pendurados nas escolas onde aprenderam as letras e os números, tudo por
obrigação e sem pensarem, decorar, nada mais.Uns e outros, nos dois lados de uma
perspectiva, são boa gente boa.
Se os terroristas fossem maus como diz
a propaganda, má índole e fígados biliosos, tinham dizimado uma companhia
inteira sem estes terem chegado a entrar ao serviço oficial da guerra. Uma companhia
de infantaria massacrada, tiro ao alvo, como tirinhos às latas numa banca da feira popular no Campo Grande.
Ao protector da nação dava jeito um
massacre. Um bom argumento para justificar ao mundo e ao povo, a razão do envio
de uma geração hipotecada de jovens para um matadouro a céu aberto, a milhares
de quilómetros de distância do sítio onde andavam entretidos em viver as suas
vidas, com a justificação frouxa de irem defender uma ideia de Império puído
com cheiros a mofo e bolas de naftalina, roído ainda para mais, por traças ubíquas,
por quem construía esses argumentos.
É um dia de grande solenidade e
luto. A cerimónia é transmitida em directo para o mundo por via das ondas radiofónicas.
Titubeando, a televisão, a começar, vai até onde vai. Imagens a preto e branco
condicentes com o luto e com os avanços da técnica. Onde está a acontecer esta
cerimónia, se a cor não chega a colorir o dia, como se há de querer que seja
transmitida numa imagem da televisão?
Terreiro do Paço, ou do Comércio,
ou da estátua do Dom José I. O dia está amuado e pálido, com nuvens cinzento-escuro
encarreiradas a dizerem que se a encurralarem ainda mais, que vão chover. A
etiqueta do luto – decretada - obriga o
uso do negro, quem não tem põe uma braçadeira preta no braço direito. É o fumo.
As mulheres vestem-se assim diariamente, de luto pela vida toda, por uma razão
ou por alguém. Num país cheio de luz, as pessoas albardam-se de escuridão.
Os três ramos das forças armadas perfilam
engomados e engraxados. Os oficiais penduram no peito uma quantidade obscena de
medalhas, os soldados não têm medalhas. O ambiente é taciturno. Os comentadores
dos meios de comunicação poetizam em tons carregados frases filigranicamente construídas, tendo em
som de fundo músicas marciais e fúnebres.
Ancoradas no rio, frente ao cais
das colunas, duas corvetas da Marinha de guerra preparam as salvas de pólvora
seca, fazem a guarda de honra dos mares, no rio. Passa em voo rasante uma
esquadrilha da força aérea. Uma só vez, um estrondo de estarrecer a multidão,
que triste, passa a temerosa. Tudo a postos para o discurso, ponto alto da
cerimónia. Escreve-os todos, escreve tão bem discursos! O seu dizer, sibilante,
numa forma quase rural, falsamente singela, imiscui-se na cabeça das pessoas,
altera a lucidez e a razão, atributo de um tribuno.
O povo apinhado a molhos – é assim
o povo: a molhos - delimita milimetricamente as margens do terreiro, ocupando
todas as nesgas. Choroso, abatido, mais rasteiro que habitualmente. O palanque
das autoridades foi discretamente decorado, a verde e a vermelho, motivos da
bandeira. Flores brancas, andróginas de nome, sarapintam, fazem-na, a linha de
contorno do estrado.
Altos dignitários: diplomatas,
banqueiros, industriais, deputados, membros do governo, enviados de deus na
terra, enlutados e circunspectos, ouvem com ar sério a prosápia exemplar do
líder, que fala nas virtudes da raça, com eloquência, demoradamente,
adjectivadamente. Pela Pátria, a vida e a alma, o peito feito à lança ou à
bala. Nos olhos uma lágrima, não de medo, de orgulho, raça esta que desbravou
mundos e os acrescentou ao mundo, na falta que faziam de existirem.
Ele começa lentamente o discurso,
pausadamente, sorumbaticamente, soletrando a custo, arrancando doridamente as
palavras da boca. Aumenta o tom, dá volume, modula o ritmo, agora nervoso, as
palavras fazem ecos intermináveis e repetidos nos cantos da praça, constroem em
volutas frase tristes e sérias e muito politicas, pairando nas pessoas que as
ouvem, compreendendo a maioria mal. Atinge o discurso a sua elevação, a sua
estatura maior, um estatuto que ficará nos manuais da história, a assinalar
aquele dia de azar.
Povo que arfa e chora copiosamente
alto, gritando, roncando, esganiçando a sina de um povo azarento. O seu choro,
imenso, escoa num rio lacrimejante e revoltoso que escoa para o rio das águas
doces, mesmo ao lado. O fluxo tumultuoso das lágrimas produz um som grave e
tonitruante, ao escorrer. Veja-se o som, que até faz som, que tanta água
fisiológica faz junta.
O cardeal patriarca, não ubíquo mas
omnipresente, é o aval junto de deus da entrada no céu dos mortos mártires, apõe
o carimbo no passaporte para a eternidade.
Finda a oratória apoteótica canta-se
o hino, executado instrumentalmente pela banda a cavalo da Guarda que troteia
em frente ao palanque. O tamborilar dos bombos e a cadência sincronizadíssima
do trote de tanto cavalo junto, estremece o chão, chocalhando ainda mais os
corações dilacerados dos familiares, pondo os outros corações presentes arrítmicos,
em solidariedade cardíaca.
Seguindo o protocolo, o chefe do
Conselho aposta agora - um por um, sem nenhuma pressa - uma medalha nas lapelas
dos casacos coçados dos familiares das vítimas. Desconhece-se o teor do escrito
nas medalhas. Distribui uma palmada de conforto e uma palavra de ânimo, qual
será a palavra de ânimo?
A homenagem arrefece os críticos por
algum tempo. Dando folga ao regime. O país acaba de ganhar sob a forma de cento
e uma dúzia de caixões, uma justificação para ir fazer a guerra.
Os caixões estão cobertos pela
bandeira pátria, são de madeira de pinho por serem muitos e o país pobre. No
seu interior jazem pernas e braços desirmanados e outras partes, ajuntados como
calhou, mais ao menos ao peso. Depois de fechados ninguém iria confirmar se os
pelos ruivos da perna esquerda correspondem aos pelos pretos do braço direito. Pormenores
e segredos de somenos guardados nas cabeças de quem fez as separações na
morgue, com a pressa de que os restos não se decomponham, não fedam, faz calor,
abafa-se em terras de áfrica.
O que conta é a memória, a ideia
que fica, o baú das recordações, e esta fixa-se na cabeça e nas
fotografias. Que se vai perdendo até ser
uma impressão residual e muito afastada, como o tom de uma voz de um ente, que
se vai perdendo, até não ser mais do que uma ideia vaga de voz.
O tempo ameaçava borrasca mas
conteve-se, foi decente, tudo correu conforme a organização, foi uma linda
cerimónia. Todos irmãos, quando toca a sofrimento, unidos, mais um dia de
patriotismo em dose intensa. Depois todas para suas casas, almoçar. O
presidente do Conselho almoçou com o cardeal, era um dia a pedir um aconchego
espiritual. Canja de galinha do campo e um bom vinho das terras do Dão.
Felizmente não aconteceu esta
ficção, não houve necessidade de expatriação dos corpos todos de uma vez. Pingaram,
num conta-gotas ao longo dos quatorze anos da guerra, facilitando-se a logística
do reenvio para a metrópole e dando tempo mais que suficiente para construção
dos mais de oito mil féretros, mais um menos um.
Graças a Deus a Companhia comeu os
bois – carne saborosa e tenra – que foram assados numa fogueira que se via a
quilómetros de distância.Dormiram como lordes e no dia
seguinte iniciaram a reconstrução do casario.
O primeiro-cabo Mário não tem jeito
de mãos para trabalhos manuais. É amanuense do capitão, mas como ainda não há
temas para a datilografia, é transferido provisoriamente para o departamento de
animação e propaganda, uma área importante, que ajuda a levantar o moral dos
homens em momentos cabisbaixos. Está encarregado de preparar, ensaiar e
produzir a actividade lúdico-cultural dos fim-de-semana. Numa dimensão perdida
no meio do nenhures, um mundo paralelo, entre as folgas da guerra, faz-se a
representação de um programa de variedades ligeiras. A vida sem mundanidade
torna-se insuportável.
Os dias passam e eles reconstroem
as instalações sem que haja sinais de perigo. Podia ser uma colónia de férias
dos escuteiros e eles saírem todos dali a saberem fazer os nós de olhos
fechados, com um punhado de aventuras para contar aos pais e próximos.
O médico e o enfermeiro são os que
andam mais ocupados. Pouco após a chegada, fazem de jipe o trajecto até a sede
do Distrito, para se apresentarem ao director clínico do hospital, agora requisitado
pelas Forças militares para servir como unidade de apoio.
Voltam na manhã seguinte, o jeep
avançando enfadonhamente lento pelas intermináveis rectas monótonas de terra
batida, um perder-se numa distância que dá a todo o momento a sensação de
longínqua, tal a lonjura das linhas de horizonte. Na metrópole não há distâncias
assim. Não se avistam casas, não se veem cubatas, gente humana, só animais na
sua liberdade selvagem, e árvores e arbustos em tonalidades de cobres e verdes
intensos, e outras cores, e um sol agressivo, de chapa, que põe a linha do
horizonte a tremelicar, um fio instável.
Sentado na beira da estrada de
terra batida está um miúdo, saído do nada. Eles assustam-se, desconfiam, reduzem
a velocidade e passam por ele com as mãos a vincarem as pistolas. Viram agora automaticamente,
sincronizados, os dois, as cabeças para a berma onde está impávido o miúdo. Nu
e descalço, olhando-os vivazmente. Eles não resistem ao olhar de um miúdo.
Param um pouco mais à frente, desobedecendo ao bom senso e à lógica, rendidos pela
curiosidade, um apelo mais forte.
O miúdo tinha uma pústula com mau
aspecto. Enorme, na barriga. Esperava pelo doutor, mas como é que ele sabia que
havia um doutor que passaria pela picada nesse dia? Sabia.
O doutor Silva drenou e
desinfectou, mandou o enfermeiro administrar a vacina do tétano, e administrou
ele próprio uma injecção de antibiótico. Reforçou o penso para durar o mais que
pudesse, não sabia se o voltaria a ver. Havendo condições para a sorte estar
nos seus dias, o que não está nas suas mãos, o miúdo sobreviverá.
Correu-lhe bem, e depois deste
episódio cada vez que o médico viajava até ao hospital, esperavam-nos no mesmo
local, sentados na berma da estrada como na sala de espera de um consultório
sem tecto nem cadeiras, novos e velhos, a esperarem o senhor doutor
colonialista branco, em silêncio sabendo que iam ser consultados entre hoje e
amanhã. O doutor Silva e o motorista enfermeiro foram os únicos membros da
Companhia que no período da comissão de serviço, se deslocaram livremente sem
escolta a qualquer hora do dia ou da noite sem sofrerem nenhuma emboscada.
A noite em África cai de rompante,
tem uma pujança particular em ser inevitável, não se anuncia com rodeios, cai.
Como um pano-cortina de veludos
densos, em cores laranjas, vermelhos, roxos fortes. Abate-se subitamente sobre
a terra, numa apoteose, cobre-a de escuros até ao dia seguinte. Em África o
ocaso tem um som, que se ouve. O dia dá lugar à noite num toque de interruptor:
apaga a luz, acende a luz.
Também os seres diurnos dão lugar
aos seres nocturnos, mudam o turno, imediatamente após o breve silêncio que se
faz sentir quando baixa o pano na mudança de cenário, e uma orquestra sinfónica
tocando sons desconhecidos e vários, acompanhados pelo restolhar das ervas.
Todas as noites se assiste a uma prémiere
de uma sinfonia da escuridão. A noite é mais atarefada do que o dia. É o
período em que os seres que vão morrer se apresentam, naturalmente, para serem
mortos, sabendo da existência dos predadores, não faltam ao encontro fatal. Têm
esse acordo dos ciclos de vida e morte.
No quartel os estômagos e as
cabeças – obnubiladas - digerem ainda o churrasco dos últimos dias. Toca a
corneta a dar ordem de recolher quando devia estar calada, toca na mesma,
cumprindo-se o ritual e a tradição. Quando é para tocar a corneta, é com toda a
disponibilidade dos pulmões que o faz o corneteiro, nos seus únicos momentos de
glória efémera, posto que na tropa o corneteiro só tem essa missão.
Dentro das tendas os homens
acabados de saírem de rapazes, descalçam as botas e libertam os odores
pessoais, despem os dólmens dos camuflados. Põem-se uns cá fora a olhar o céu, acabrunham-se
os sentimentos, uma hipoglicémia do coração. Fumam fartamente, a ciência médica
aconselha a que se fume, terapia para males de pulmão, da asma e da alma.
É de noite que se pensa em todas as
coisas: na família, na namorada, no que se deixou. Fazem-se palpites e
lançam-se juras de esperanças sobre o que está para vir, promessas íntimas, se
tudo correr bem, vai-se a Fátima depositar vela com os joelhos todos esfolados,
pouca a dor na dor que já se sofreu.
Iluminados pelas labaredas vistosas
e intermitentes da fogueira, escrevem-se com vincos de mãos rudes, bilhetes de
amor, tentativas de romantismos, homens que nunca conseguiram dizer “amo” e
agora andam aflitos para recuperar os atrasos dessa mudez propositada. Os mais
cerebrais ou que não tenham deixado ninguém suspenso em amor, debitam telegrafias
do quotidiano, noticiam. Alguns soldados dormitam assentando no calendário da
memória dos sonhos, com um “X” maiúsculo mais um dia de vida. Não fazem mais do
que isso. Ainda não há pesadelos.
Apesar do bucolismo da cena, é uma
inverdade dizer que a paz reina sobre esta natureza composta de homens e do
resto que os rodeia. Paira um receio latejante, peganhento, o ambiente é
obscenamente calmo. Seres invisíveis deste mundo ou de outros sopram arrepios
nos soldados. Há uma expectativa, uma inquietação, o sossego é demasiado para
ser credível.
Instala-se o primeiro quarto de
guarda. Na casa principal, os oficiais cavaqueiam banalidades, reconfortados
por aguardentes fortes. Sobre eles em céu aberto, um telhado de milhões de
estrelas cintilantes, apazigua das maldades dos homens, os medos e as
fragilidades.
Passa uma hora. Quebra-se o fio
dessa fina harmonia no som de uma rajada de metralhadora. Vem da direcção do
posto de guarda mais distante, no local onde o caminho de acesso ao
aquartelamento bifurca da picada principal. Cai um silêncio sólido que a juntar
o breu da noite, justifica o maior pesadelo. Ouve-se de novo uma rajada,
precipitam-se os acontecimentos.
Os homens desorientam-se, a razão
bloqueia com o medo. Gritos, histerismos, desnorte, seminus, em trusses, saem
das tendas, deitam as tendas abaixo, pegam nas armas e disparam em todos os
sentidos, doidos varridos. O capitão envia o Alferes Eduardo em missão de
reconhecimento e avaliação com relatório escrito na volta, volte ele.
Pondo à prova os conhecimentos teóricos
adquiridos na Academia, Eduardo homem lamentavelmente com poucos pelos na cara
para estar ali, avança com táctica no terreno, ziguezagueando, procurando o
disfarce com as silvas, imaginando ser assim porque é noite e ninguém vê nem o
próprio, se está ou não bem camuflado. É um homem de fibra, a missão corre-lhe
bem.
No posto de sentinela está, mal
está, o soldado José António em estado de tremores, transparente de se ver por
dentro, acocorado, posição fetal por trás da parede dos sacos de areia que
protegem o posto de sentinela.
O Alferes pede explicações, o
soldado José António tem a boca entupida, está incapacitado de expulsar
palavras, saem gagas.
Um par de estalos resgatam-no.
Diz:
- Meu alferes, estava eu de olhos
postos em nada, a olhar para o preto da noite, sempre a fazer um esforço para
os abrir mais e mais e salta-me à frente, tão perto que me assustei, uma luz a
piscar.
- Abri os olhos mais ainda, para ver
se percebia. Não era uma, mas muitas.
- E piscavam como? - Pergunta de
oficial.
-Assim, a acender e apagar
(exemplificou com o isqueiro)
-Certo. E mais?
- Como me ensinaram na recruta em
Castelo Branco, levantei-me e perguntei quem vinha lá.
- E qual foi a resposta?
-Não foi. Calados que nem mulas.
Tanto silêncio e as luzes a passarem à minha frente. Ali havia história, meu
Alferes.
-Devia ser o inimigo a comunicar
algum código lá deles, estavam a preparar alguma. Dei uma salva de aviso, a ver
se os amedrontava.
- Fizeste bem e o que aconteceu a
seguir?
- Eles não fizeram caso e eu gastei
todas as balas, com sorte posso ter acertado em algum.
- Ouviste gritos de dor, ou coisa
parecida?
-Nem piaram meu alferes.
- E o que fizeste a seguir?
- Perguntei a palavra passe.
- Isso devia ter sido antes de
disparares!
- Não me deram tempo meu alferes e
já tinha perguntado quem vinha lá.
- Foste inspecionar o terreno?
- Não meu alferes, as luzes
continuaram intensas, a piscar, eram cada vez mais. Fiquei quieto a aguardar
por reforços.
- Se não fosses bronco o que
gostavas de ser?
- Gostava de não estar aqui meu
alferes.
Gastaram-se as balas e o inimigo
não invadiu o recinto, porque não havia inimigo naquela noite para atacar
ninguém. Em África há muito mais pirilampos que na Metrópole.
Uma vez mais a companhia não foi
dizimada, desta vez poderia ter sido por si própria. A ter acontecido como é
que no Terreiro do Paço se contaria a História dos pirilampos mágicos?
Acalmaram-se os ânimos, os homens
foram dormir.
Só passado bastante tempo após a
batalha dos pisca-lumes, é que aparece à porta da casa principal, o
primeiro-cabo Mário, a rastejar em estilo bruços. vinha ofegante, sujo e
humilhado.
O capitão encontra-o colado ao
chão, parecia uma lagartixa.
Também ele não consegue articular
palavra. Colocado em posição de sentido - não se vê se está direito ou abana,
não há luz suficiente - uma mancha escura alastra pelas calças do camuflado no
sentido descendente, da gravidade.
O Mário não foi feito para ser soldado, tem uma sensibilidade fina, de artista. É incapaz de matar e fica
enjoado só de pensar na possibilidade de estar morto. Nessa noite estava recolhido,
afastado dos colegas, a olhar para as estrelas do céu e a pensar em coisas
poéticas, porque ele é um homem com uma cabeça revestida a pautas de música
romântica.
Até resolver o problema o
comandante da Companhia decidiu que na eventualidade de um dia por falta de
efectivos lhe darem um turno de sentinela, ele fica proibido de usar a G3 com
balas, não se dê ao incómodo de causar problemas físicos a si mesmo.
Algum tempo depois, primeiro-cabo
vem com guia de marcha para Luanda com um diagnóstico médico de doença
pulmonar, possivelmente contagiosa. Recomenda-se que fique por lá e não se olhe
a tempo na sua recuperação, e estando curado que ocupe uma função de utilidade
militar na capital, já que a Companhia fará todos os esforços para preencher
adequadamente o lugar vago. Não é necessário que ele regresse, o esforço
suplementar dos homens, suprirá a sua falta. Já que se vai para Angola defender
a Pátria, e se é para morrer, que seja de uma catanada, de catarro infecioso
morre-se em casa, não é preciso o Estado gastar dinheiro em deslocações e
estadias.
Que tenha um bom e rápido
restabelecimento são os desejos dos camaradas. Os desejos de recuperação rápida
foram atendidos, mas ele voltou à Companhia, por necessidade de efectivos operacionais
nas zonas de conflito. Ficou como chefe cozinheiro e começou aí uma carreira de
grandes sucessos na restauração, chegando na vida civil a ganhar estrelas de
generalato gastronómico.
Fica por agora afastado de acções directamente
relacionadas com actividades bélicas e medicado com um ansiolítico leve, sob
cuidadoso controlo do médico Silva, atento à evolução da sua doença.
Os dias a somarem semanas e meses
passaram por cima deste episódio, a guerra mostrou os seus ângulos e esquinas,
os homens perderam a inocência e vida. Os terroristas são reais, querem ser
independentes, são convincentes na ideia de terem um país seu.
É uma guerra sem rostos, de sombras
chinesas, um jogo das escondidas. É o terrorismo, pode estar mesmo ao lado e
não se dá conta.
É uma guerra de emboscadas, de
encurralar o inimigo, atacar e fugir. É uma guerra de minas, escondidas na
terra, a mais cobarde, a guerra dos inocentes.
A Companhia vai cumprindo a sua
missão com baixas ocasionais. Aqui e ali rebentam algumas minas na estrada, que
vitimam animais de grande porte até que no décimo quinto dia de um Agosto, dia
da Assunção de Maria, a Imaculada Mãe de Deus, elevada em corpo e alma à glória
do céu, sendo a primeira criatura humana a alcançar o salvo-conduto da salvação
eterna, um pelotão comandado pelo furriel Leucácio é emboscado numa depressão
de terreno, vinte quilómetros a Norte do aquartelamento.
Uma árvore abatida obriga à paragem
do camião no final de uma inclinação no terreno. De imediato abate-se sobre
eles um fogo intenso, que leva os homens a procurarem protecção debaixo do
camião. Paralisam de medo. Há situações em que o tempo é uma eternidade nas
suas fracções de minutos, esta é uma delas. O cenário está suspenso esperando
pelo desfecho.
O cabo Elias, indivíduo taciturno
-soube-se mais tarde – de poucas palavras e não gozando de nenhuma
popularidade, sem amigos, num aparente acto de loucura agarra numa HK47 com uma
série de fitas de balas ao pescoço e avança de peito feito, a disparar que nem
um louco que pelos vistos é, e aos gritos para ainda parecer mais louco. Os
agressores não esperam esta reacção, estava mais ou menos combinado eles
atacarem e irem às suas vidas. Agora é ele que os apanha desprevenidos,
assustam-se e são capturados. Sete, levados para o quartel antes de serem
enviados para Luanda para interrogatório com massagens nas costas e noutras
partes do corpo. Cospem nomes e outras estórias no meio do sangue e dos dentes
estilhaçados. Há-os mais rijos que outros, mas é tudo uma questão de tempo e
empenho nas massagens.
O Furriel Leucácio conta o acto heróico
do Elias ao comando que passa a informação para o quartel-general. Nasce um
herói. Mal estejam prontas – que ninguém se tinha lembrado que havendo guerra
tinha que haver medalhas – umas das primeiras será sua. Com direito a abraço de
alguém importante e subida de graduação, à classe dos sargentos.
Na vida civil Elias era um menino
“café com leite”. Diz-se no passado porque é um presente que já não existe. Não
dormia sem o leitinho nem as bolachinhas “Maria” com manteiga e a mãezinha a
aconchegar a cama do menino. No inverno não dispensava o saco de água quente
para aquecer os pés. Todas as noites a mãe vinha apagar a luz, aconchegar o
cobertor e dar um beijo na testa do menino, desejando-lhe a protecção de deus e
dos anjos da sua predileção.
A recruta não foi fácil, não tinha
ninguém que o tapasse nas noites húmidas da camarata, enorme e desconfortável e
cheia de homens a roncarem e peidarem-se.
Afirmam os camaradas que na semana
de campo, antes de jurar bandeira ele foi visto a pôr pó para matar insectos à
volta da tenda e que dormia embrulhado num mosquiteiro de gaze. Parecia uma
múmia viva. Mas isso serão concerteza efabulações, faz-se tudo para enterrar
ainda fundo mais uma pessoa.
Era um comichoso, quem alguma vez
diria que uma figura destas seria um herói do ultramar?
Como foi ele a capturar os
rebeldes, e enquanto não foram transportados para o quartel-general, foi
incumbido dos interrogatórios preliminares. Não teve grande sucesso porque
desconhecia a língua dos nativos e estes não respondiam às perguntas feitas em
português.
Não pôs muito empenho na tarefa.
Limitava-se a passar pela cela improvisada, e repetir sempre as mesmas
perguntas: o nome dos insurrectos, quantos eram, se havia mais e onde estavam
aquartelados. Ficava sem respostas, recebia um mutismo cerrado.
Um dia, a rotina quebrou-se, quando
Elias virava costas e ia a sair, ouviu:
- Quando sair daqui vou-te apanhar.
O soldado virou-se e viu uns olhos
inflamados de ódio.
Desde esse episódio e até que veio
a ordem de transporte para Luanda, o terrorista passou a repetir a ameaça,
todos os dias igual, nenhuma outra palavra acrescentada.
O destino não perde uma ocasião de
pregar uma boa partida, e os homens que nunca aprendem, são sempre apanhados
distraídos. O cabo leva os prisioneiros para Luanda.
Não chegam ao destino. A meio do
caminho, num descampado, o Cabo manda parar a viatura, ordena aos soldados para
alinharem os negros na berma, ajoelhados, e como se fosse num filme em câmara
lenta, um a um, dá-lhes um tiro entre os olhos. Deixa para último o dos olhos
inflamados e diz:
- O teu nome é: Póstumo.
Depois disto embrenhou-se no matagal
denso e nunca mais ninguém o viu.
Esse foi o dia em que começou a verdadeira
guerra de África, o dia em que as balas se transformaram em ódio e raiva. Não
foi um dia assinalado. O menino da mamã transformou-se num monstro.
«A Alcina é a minha motivação.
Anseio que os dias acabem, vivo, para lhe escrever, ou reler inúmeras vezes, as
cartas que me envia. Esta savana imensa, a perder-se na linha longínqua do
horizonte, este céu que não acaba, transformou-se numa prisão sufocante, todo o
ar respirável está viciado.
Pensar que um dia a poderei
conhecer, que corresponde aos tons que os meus sonhos a pintam, é a minha
libertação, a minha esperança.»
Uma carta para Alcina:
Passou
um ano desde que cheguei, já todos perdemos a ingenuidade e o medo, não é
perder o medo, é um desleixo de não se querer saber. Vencidos por um grande
cansaço. Vivos ou mortos é um jogo, de sorte e azar e nós somos as peças desse
jogo que alguém está neste momento a jogar, divertindo-se sem remorsos.
Da
história dos caga-lume à monstruosidade praticada por Elias, num momento de
loucura, foi uma aceleração brusca e inesperada do tempo, tudo muito rápido,
como viver uma vida no espaço de um ano. Deixámos de ser puros para estarmos
cobertos de nódoas sujas, e todavia, isso nada vale, é um simples e entediante
jogo que não se conhecem as regras.
Aguardo
ansiosamente pelo nosso futuro minha querida Alcina. Construímos um amor com
palavras que no início diziam pouco e eram contidas, tímidas. A princípio só
serviam para transportar ideias e notícias, de aqui e de aí. Com o tempo,
começaram a levar e a trazer sentimentos. Gostámo-nos e avançámos para as
encomendas postais, transportando frescas caixas de beijos repenicados, bombons
dos sentimentos. Agora, cada aerograma é um vendaval de mercadorias do amor.
Espero
encontrar-te bem, se chegar são, vou reconhecer o teu rosto desconhecido por
entre a multidão que acena os lenços brancos das boas-vindas, no cais onde
atracam os barcos na nossa cidade. Porque olhei milhares de vezes a tua fotografia,
e decorei todos os pontos que fazem os contornos que constituem o teu rosto,
para mim o mais belo de todos. Dar-te-ei um abraço que será único e o melhor
abraço que jamais darei em toda a vida, treino-me para isso, imaginando-te.
Seguir-se-á um beijo longo, prolongado, doce, carnudo, independentemente dos
olhares ou reprovações dos outros, que não quero saber.
Até
lá, continuarei a amar-te, minha madrinha de guerra, anelando a paz.
Uma carta para o Mário:
Meu
amor,
Como
o tempo que passa com tanto vagar, parece hoje ter sido o tempo de um
relâmpago. Demorou tanto e agora aproximam-se os dias do primeiro encontro. Que
ansiedade, que anelo, que insegurança.
A
tua história, para mim, não será mais contada. É um esquecimento de um tempo
que vamos apagar os dois, fazendo uma nova história, colorida e muito mais bem
escrita. Só conta o nosso tempo, aquele que nos espera de felicidade e
respeitos mútuos.
Não
tenho a mais pequena dúvida que te irei reconhecer, na mancha informe dos
homens fardados a verde, que vão atracar num barco também verde e informe, num
cais com as paredes pintadas com seres imaginários, onde estarei à tua espera,
para assinalarmos o primeiro dia da nossa vida.
No
tempo que resta, cuida de ti, que é de nós, não arrisques nada. Desejo-te
assim, como te penso, não quero um herói cujas carícias recebem o frio de um
corpo sem vida. Quero-te vivo e meu, amor.”
Este é o amor da espera, o amor que
se imagina, impalpável, desconhecido, ansioso, pelo qual se dá tudo, se aposta
o futuro no escuro.
Não é este um amor incondicional?
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