Avançar para o conteúdo principal

DO AMOR INCONDICIONAL - 3 - DO ADEPTO








A história podia começar por o hábito fazer o monge, não se sabe ser faz, mas se os ditados existem, têm razões suas de serem ditados. Há por aí muito dizer que é pífio, mas os ditados, quase sempre na forma mais popular de se falar uma língua, revelam sabedorias e fornecem conselhos sobre os andares e os vagares do quotidiano. São para as pessoas, o que alguns sinais de trânsito são para as pessoas que conduzem os carros, sinais de aviso, de informação útil, guias para a bem-aventurança.

Alguém que alguma vez se tenha lembrado disso e tomado como missão sua, nesta caminhada sinuosa de penas e poucas alegrias que nos leva à força ao buraco negro da eternidade, também conhecida por vazio – e seguir os preceitos todos de todos os ditados – talvez chegue, no final, ao bordo do precipício, mais purificado, o maior dos inocentes, os meninos, que são todos, ao nascer.

A decoração exterior da pele pode ser honesta ou um bom sinal do que não se revela, escondido no remanso interior, no que está no sub-cutâneo, sem arejar a não querer revelar ao mundo a sua natureza verdadeira. E a decoração, também engana, posta a propósito para o equívoco, ou a encaminhar as apreciações para o mal-entendido, a levar para fora de pé, de controlo, ao embuste.

“Pela boca morre o peixe”. A aparência é licenciada em patranhas.

As cores e os seus adeptos, não elas; de umas e não de outras, eles; já causaram mais desavenças do que a contagem diária - cada vez menos porque apressados ou com um romantismo diferente – de amantes a abraçarem-se apaixonadamente sob o espectro de um arco-íris num céu fresco e cristalino acabado de chover. Esses não causam desavenças, estrumam a terra da fertilização do amor, bem escasso.

Mas os amantes contemporâneos banalizaram o arco-íris, preferem enviar os beijos que dão, imediatamente, ao mundo inteiro, o seu mundo inteiro, fotografando-os e esperando, nada mais que isso, a aprovação ou indiferença dos outros, igualmente ocupados a fazerem o mesmo: enviarem as suas fotografias de beijos, com ou sem arco-íris.

Qual é a mais bela cor de todas? O adepto sabe responder: a sua cor.



O equipamento é completo e depende da ocasião a que se destina (lá está). Neste caso, dólmen, cotoveleiras, luvas, joelheiras, caneleiras, tudo em Kevlar, um material resistente às balas e leve como penas de ganso. Uma grande invenção, o kevlar.

O bastão, longo, flexível, feito a si, de serem íntimos há muito, à mão que o agarra, ao braço que o impulsiona; o capacete – claro - com viseira de protecção à prova do impacto das pedras e que não risca para se poder ver, distinguir os maus. No ver o alvo certo, está parte do sucesso do mundo.

A separar dois mil anos, os escudos dos polícias contemporâneos são idênticos aos dos romanos, e continuam a usar a mesma estratégia de defesa deles: quando acossados por um bombardeamento de objectos e cocktails molotov, fazem com os escudos uma construção, como se fosse uma casa e deixam-se ficar quietos, lá dentro até que passe a tempestade, a fingirem-se desapercebidos, que não é nada com eles. Como são polícias e nervosos, não aguentam e acabam por passar ao ataque.

Armamento: teaser, pistola, shotgun com balas de borracha.

Algemas, agora de plástico, muito mais fácil, simples, rápido e com o mesmo efeito: decidir quando são colocadas, o momento que passa a distinguir a liberdade (ou a sua suposição enganosa) da falta dela, merecida ou imerecidamente. É agora muito mais prático com as de plástico, rápidas de colocar e não pesam na cintura dos polícias que já de si têm que transportar tantos objectos úteis.
Está tudo mais do que treinado, todos os procedimentos foram decorados, treinos e treinos, ao pormenor.

Os opositores conhecem-se mutuamente, são sempre os mesmos. Podiam até ser amigos, privarem publica ou intimamente. Mas não, estão separados pelas cores, e os que fazem essa barreira para protegerem ambos de um contacto violento, têm igualmente as suas cores preferidas, e nesses momentos de trabalho, a alguns, não poucos, custa-lhes tanto desempenharem esse papel de muros de contenção, de municiadores de castigos, de privadores de liberdade e terem de carregar sobre compinchas seus, da mesma cor.

O almoço é frugal, corre-se muito nestas situações, não convém estar enfartado. À noite quando voltarem, terão a recompensa. Os bem comportados têm direito a boas recompensas. A melhor refeição da semana, pode-se repetir, o único dia em que é permitido tomar um copo de vinho, e há sobremesa com sabor a sobremesa.

Na cidade a essa hora quase vazia de gente nas ruas e nos seus impasses, todos recolhidos no quentinho do prazer melancólico das últimas horas de descanso, antes de iniciarem mais uma volta no estonteante e vertiginoso poço da vida e da morte: uma nova semana.

São poucos, só os adeptos e os polícias que os vigiam, e aproximam-se do estádio. Cânticos incompreensíveis, rimas a insultar os que gostam da cor diferente da sua, gestos indelicados com sinaléticas a mandar todos para o dito objecto fálico, empurrões, very-lights, sabe-se lá para quê, de bonito não têm nada e o fumo deixa todos a tossirem como tísicos.

Escoltados como animais. As entradas do estádio parecem os currais de abate das bestas, nos matadouros. Filas de baias metálicas a acabarem numa apalpação intensa dos corpos.
Belo espectáculo.



Jogam os dois rivais da cidade. Um clássico. Porquê chamar a isso clássico, será porque se repete muitas vezes, e os comentadores desportivos que não têm formigueiros filosóficos, mas andam convencidos que sim, gostam de falar bem, para impressionar.

Apresentam-se nas televisões com os mesmos fatos repetidos todos os dias, porque se apresentam todos os dias em horário nobre nas televisões e ninguém os patrocina, dizem eles. Para além dos mesmos fatos, apresentam as golas a querem sair da badana do casaco e as camisas descamisadas a ensinarem peitos que já tiveram músculos tensos e delineados; os lenços são os mesmos, colocados em simetria com a banda do bolso de peito lateral dos casacos, a mostrarem-se pouco, uma risca, branca, nada mais do que isso. É moda.

É por serem assim, no falar e no vestir, que chamam “clássico” a esse jogo, o encontro dos rivais. O Hábito tem dias que faz o monge.

Quando vem alguma equipa de fora, complica-se a logística. Os autocarros têm que parar num local amplo mas controlável e fazer-se um cordão de segurança para os encaminhar, a pé, para as entradas do estádio. Basta um, cá atrás tropeçar, bêbado ou drogado, ou distraído, simplesmente parvo e que tropeça, que empurre dois tão parvos como ele que estão à frente, e gera-se uma confusão desgraçada. Aquela coisa do efeito dominó.

Se houver pontes pedonais ou túneis e estiverem adeptos contrários a mandar moedas de dez cêntimos ou até mesmo bolas de golfe, instala-se a desordem. Se começam a bater logo aí, é muito cansativo, porque vai ser bater até que eles estejam de novo nas camionetas a caminho de casa. No dia seguinte ficam derreados, doem os músculos todos, de tanto movimento feito nos bastões. É uma profissão desgraçada.
A sua função fala mais alto que o clubismo, mas há alguns camaradas, não se vai estar agora a ditar nomes, que batem mais levemente nos da sua cor. Não se discute, compreende-se.

Desconhece-se a existência de um agente da autoridade que não goste de umas vergastadas, e é para isso que se querem. A saberem bater nos sítios certos, imporem respeito, senão era a república das bananas, mas não, é serviço público.



Do adepto e do seu amor, esta história, um amor de fidelidade extrema, que não conhece outro, da primeira à última inspiração-expiração da vida. E por ser tão bonito e puro assim, para quê contar desgraças. Recomece-se a história, com o mais belo e emocionante momento de amor: o nascimento de uma criança.


«Finalmente o gajo nasceu, levou tempo, fui ver a mãe. De fugida, não me dou bem com o ambiente dos hospitais, fico enjoado, não sei se é do cheiro dos desinfectantes, o que seja. Estonteio, deixo de ver as coisas e as direcções certas, parece que começo a rodopiar a cem à hora às voltas sobre mim mesmo, tão tonto, que se não me agarro ao que está à mão, se não me sento ou encosto, caio redondo no chão. E depois, também, não sei, mas os hospitais põem-me triste, com vontade de chorar. Onde já se viu eu alguma vez chorar!

Não é parecido com ninguém, é feio, mas ela já vinha com uma conversa de que sai ao avô materno, com a boca deste, os olhos desta, a orelha daquele, e despachei a visita, que não estava ali a fazer nada e havia um engarrafamento de familiares à porta à espera da senha para entrarem com prendas de merda, amaricadas, pompons, pimpins, e essas conversas. Apareceu malta que eu nem conhecia. Nestas ocasiões é como os casamentos, aparece gente só para mamar à conta. Não sei para quê, ali não ia haver nenhuma festa. 

Nem devem ser da família! Alguns nunca vi, primos 
afastados, designação onde cabem todos os familiares longínquos e os conhecidos menos próximos, incluindo vizinhos que gostam de se meter na vida dos outros, para depois irem dizer mal para a vendedora do peixe, ou a das verduras.

Despachei a coisa, uma festa de fugida na testa da mãe (está gorda que nem um texugo, inchada, ainda mais feia do que já era), esbocei um beijo na criança, minúscula, também feia, está dito, e fui directo à secretaria, do clube pois então, tratar do cartão de sócio. Isso é que é importante, antes do jantar de comemoração na cervejaria da Almirante Reis, com a malta do coração, os meus, os verdadeiros, os únicos, irmãos da irmandade da cor, a melhor de todas, não venham com conversas.

Adeptos como eu, da maior, da mais grandiosa, irradiante, ofuscante, das cores que existem, a nossa cor do coração, melhor não há.

Se fosse rapariga era pior, mas inscrevia-a na mesma. Hoje em dia as mulheres já vão aos estadios, até já percebem do assunto e não se ensaiam nada de deitar umas bojardas pela boca fora. Nisso estão como nós. Igualdade.

Camarões e bejecas e haja quem pague, dívidas não são dívidas, para que serve o cartão de crédito, a prestações. Para o polir a passar na máquina, pois concerteza! Desconta-se a bochechos.

Vamos comemorar a vinda ao mundo de mais um apoiante do fervoroso. É um amor para toda a vida, o do fervoroso.
Não há nenhum mais forte do que este, só o da nossa querida mãezinha ocupa ainda mais espaço no coração. É para a vida e para a morte, damos tudo e apoiamos nos bons e nos maus momentos. É como um casamento mas melhor, não tem divórcios.

Conhecem alguém, alguma coisa, que não se tenha pelo menos uma vez separado? Pois aqui isso nunca aconteceu. Não há um único adepto seja de que cor for, mesmo das que são um vómito, que mude para outra. Se tiver no seu perfeito juízo claro. Se for maluco, está despirolitado e não há nada a fazer. São esses os perigosos. É doença, não conta.

O nosso clube é a única gaja não gaja que nunca se atraiçoa. É o amor mais fiel que existe, qual cães qual carapuça.

Já está! Mais um sócio do glorioso, esplendoroso, luminoso, triunfante, mesmo quando perde. Agora vou comprar a camisola – deve haver para o tamanho dele. Há para todos os tamanhos - e mal se ponha a andar, vai comigo ao estádio e vai fazer a procissão a pé com a malta, para se começar a ambientar. Ali, a mandar os bófias para a pata que os regurgitou, para não dizer puta, que os pôs, que é para isso que eles estão ali, para os mandarmos de volta ao útero das devassas das suas mães, filhos da pata, lá porque têm bastões, julgam-se no direito de arrear a torto e, agora como se remata isto? A insistir demasiado no lugar-comum, o caminho mais fácil, que seja então direito.

É uma festa. Há jogos inteiros que nem os vejo, não importa, importa é ganhar. Passo a maior parte do tempo virado para a malta, a animá-los, a puxar por eles. Temos cânticos e tudo. Ou então a provocar as claques inimigas, filhos de uma grandessíssima.



E as bandeiras? E os cartazes? Lindo de se ver. Trazem a lágrima ao olho. Já se percebeu que sou um banano de um sentimental.

Não preciso de ver, eles jogam sempre bem, e se não ganham é porque fomos roubados. Os nossos jogadores são sempre os maiores, os melhores. Jogam sempre bem e se perdem mal é porque os cabrões das equipas de arbitragem estão feitos com os outros. Escumalha. Se pudesse arrancava-lhes as órbitras. Esta malta da arbitragem ainda é pior do que a bófia.

Fazemos os cartazes e as faixas durante a semana, para ocupar o tempo – não há trabalho decente, só nas obras. É bom para os emigras, os pretos, que o façam eles, não merecemos isto, um país sem oportunidades –, grandes cartazes com frases para incentivar a equipa, ou então para mandar o inimigo para aquelas partes que já se sabe. As vezes lá passa um erro numa palavra ou outra – é da maconha - mas o que interessa é a mensagem. A malta percebe.

A minha mulher também gosta de futebol, mas não a trago. Não sou de facilitar. É por ter havido todas essas mariquices das facilidades, de sermos iguais, que deu no que deu. Fica em casa que está muito bem.

O mundo baralhou-se, virou do avesso. Cada um no seu lugar. Assim deve ser, assim vive-se em paz. Igualdade, pois.
Mas esta conversa não interessa, o que interessa é a cor da minha camisola, que nunca trocarei por nada deste mundo, sou-lhe fiel até à morte.

Se isto não é amor, que nome é que o amor tem?»

...

«Amaldiçoado o dia. Como me deixei levar na cantilena? A rondar a minha saia como um menino do coro. Um anjinho, com asas e tudo. As nossas mães eram – e são – amigas. A culpa também é delas. Quando eramos miúdos vinha sempre com uma camisolinha do clube. Queria ser jogador. Quem não quer ter um namorado jogador? Animei-me. Fui com ele assistir, mas tinha mais jeito para a sarrafada do que para alinhar numa direcção concisa e correcta o esférico no sentido de penetrar dentro das redes. O seu futuro ficou-se logo pela intenção. Considerou que tinha muito mais jeito para a apreciação continuada do lúpulo e do malte de cevada e dedicou-se a eles a tempo inteiro. Nisso é um profissional, mas neste país ninguém reconhece os méritos.

Quando me tinha engatada, já só servia para o servir a ele e aos amigos, as litrosas de cerveja com que se encharcavam antes de irem assistir aos jogos. Iam de tal maneira que deviam ver o jogo a dez dimensões. O polícia também lá andava. Eram amigos. Tudo da mesma laia. Choram que nem crianças, não veem mais nada, vivem para a camisola.
Pôs-me no estado que acabo de parir, veio cá ver o miúdo, de fugida, a medo, e que tinha de sair para o inscrever.
Gosta mais do clube do que da mãe dele, de mim e da filha, todas juntas e por atacado.

A vida dele resume-se a isso: ler os desportivos todos os dias, mamar, à noite todos os programas – não deixa ver ninguém ver mais nada, tenho que andar a gravar novelas para ver no dia seguinte - e mandar bojardas aos comentadores, parece ele que está do lado de lá, do ecrã. Consome os dias da semana a pintar faixas idiotas. As quotas estão sempre em dia mas não dá nenhum para casa, tenho que pedir fiado.

E tudo acaba ao domingo, mal ou bem, para mim está visto. Quando aparece em casa, só lhe conheço dois estados: eufórico ou enjoadinho, duma forma ou outra quem leva sou eu. Ou então, não é raro, aparecer à segunda-feira, todo pisado, da porrada valente que levou na esquadra, vá-se saber porquê.

E diz que o clube é tudo, o atrasado. Mais do que arrependida, se soubesse tinha estudado, fui na conversa e agora levo porrada.

Tem parecenças ao pai, a mesma boca. Olha, parece que está a sorrir. O meu Jonas é lindo. Vai ser jogador, ganhar para os pais, deus o abençoe.»

….

«Hoje temos que acompanhar a equipa visitante, azar dos azares, a minha equipa. Sou amigo de alguns deles, mas se tiver que impor a ordem usando o bastão a gosto, não me ensaio, executo. Não é uma missão que me agrade: acompanhar adeptos desde que saem dos autocarros até entrarem no estádio. Prefiro manifestações, das que dão para o torto, não temos muitas. A gente anda toda a dormir em pé, é frouxa, aceita, é incapaz de dar uma bofetada e acertar. Nem tem gosto nisso, prefere dizer mal no balcão do café e ter inveja do carro comprado em quarta mão do vizinho do segundo direito.

Tirando essas atrações, que são raras, é a rotina de sempre: guardar embaixadas, andar um dia inteiro nos corredores do aeroporto a olhar para as cámones podres de boas, fazer perímetros de segurança para que não cuspam na cara dos políticos. Alguns mereciam, mas como já disse, esta malta nem para isso serve. Os que cospem são sempre os mesmos, os gajos dos sindicatos. E mesmo assim também os conhecemos todos. Vivem disso, vendedores de sonhos falsificados aos crédulos que pagam quotas, e quando toca à falência deixam-nos a falar sozinhos, vão para outras manifestações.

Custa fazer este serviço quando estou do lado da claque visitante, mas é a minha profissão e tenho que fazer um esforço. Se pudesse mesmo, onde estava era a arreganhar os dentes à escumalha dos apoiantes desse clube de... que nem tenho palavras.

Mas o amor ao emblema é isto: fazer sacríficos, aguentar, sangue-frio. As grandes vitórias são muitas vezes as maiores derrotas, que fazem crescer mais e mais, o fermento  do amor»



Do adepto, é um amor incondicional porque coloca os seus seguidores numa posição difícil, atados dos movimentos, espartilhados em si, sem fugas nem libertações. É comparável aos enredos das tradições: «eu não sou nada, senão o fio continuador». Prossigo e imito, não discuto, questiono, transporto o andor da família, com uma dor imensa, para honrar a memória dos ascendentes directos que já foram assim. E o maior dever que me exige a dignidade, é honrar sem custos até ao último dos custos, a memória dos meus, replicando em mim e nos que me sucederem, o exemplo recebido. Só pretendo ser uma cópia, o mais fiel executor dos comportamentos da gente do meu sangue. Um perpetuador.»

É pois, um amor do antigamente, o do adepto.

Pode ser tão forte que leve a todos os excessos, ou ao mais amplificado dos vexames, de figuras tristíssimas. É, no cardápio dos amores, dos poucos que nunca falham, não se extingue numa última chama exangue, sem alimento, sem oxigénio. É imaterial está sempre presente, em qualquer parte para onde se vá. É algo que se alimenta e vive dentro do corpo, e nesse aspecto, pode ser talvez um dos mais genuínos

Do poder, do narciso, do adepto, três amores da mesma categoria. Sem um objecto, o ser amado, com contornos fotografáveis. Não existe em figura, existe em imaginação, ou no coração, e por isso bate fortemente até ao último bater.


Comentários

Mensagens populares deste blogue

AI DO QUE GOSTEI E DO QUE GOSTO

  Gostei da alcofa pousada na marquise onde entrava o sol com abundância e a minha avó costurava. Gostei do colo da minha avó.   Gostei que me afagasse os lençóis ao deitar.   Gostei de alguns tons escuros, os das noites, outros não.   Gostei do silêncio da noite, gostei em geral dos silêncios. Gostei de ouvir num radio a pilhas músicas que me fizeram sonhar sonhos bons. Gostei do cão Tôto, de caça, onde cavalguei no pátio, a imaginar-me cavaleiro. Gostei daquela casa onde só me lembro do parapeito da janela, onde presumo que aos fins de dia eu e a minha avó víamos as pessoas a passar na rua e nós, abeirados do beiral as cumprimentávamos. Gostei de odores que já não identifico. Gostei da tia Rosa, mulher ainda mais pobre que nós a quem dávamos de comer e ela, em troca, me dava todo o seu amor porque nunca teve ninguém seu. Era eu. Gostei do carro de bombeiros que o meu avô me ofereceu. Tinha uma sirene. Era único. Gostei do primeiro livro de quadradinhos, contava

BERLINDES

Eram berlindes e guelas, os primeiros mais pequenos, os outros, mais vistosos, abafavam os berlindes. Eram de vidro cheios de cor, muitas, com padrões que davam ao girar a sensação de movimento encantatório. Compravam-se nas papelarias de bairro, pequenas superfícies habitualmente familiares que vendiam de tudo de uma forma absolutamente eficaz e personalizada. Estabelecimentos, não superfícies, designações de um presente deselegante, um nome que soa estranho e é frio. Os proprietários e os empregados sabiam os nossos nomes. Podíamos levar e pagar depois, numa contabilidade honesta que se fazia no livro dos devedores, preenchido a lápis de carvão. Este calhamaço era uma história do negócio, onde se desfiavam listas de nomes e produtos e datas. Raramente era usado para lembrar os atrasos: ninguém queria estragar relações de boa vizinhança, num tempo em que a honra e a honestidade eram valores não transacionáveis. Uns buracos no chão com uma distância entre si, medi

COPOS E GAJAS BOAS, DE PREFERÊNCIA

De manhã se começa o dia, dizia a minha querida avó, mulher avisada, que vestia de preto, tinha um buço pronunciado e gostava da pinga às escondidas. Como quem sai aos seus, aos seus sai, já enfiei dois medronhos, para dar energia a enfrentar o dia que dá trabalho, e até chegar ao fim, é uma peregrinação quase religiosa ao botequim do chico. Pelo menos tenho fé em ir lá, é uma espécie de purificação do meu interior. Agora só bebo sininhos, estou em dieta alcoólica, só pequenas quantidades (de cada vez claro). Não se pode dizer que saia caro. Cada sininho são 30 cêntimos. Um copo de três, cinquenta cêntimos. Apesar de alguém desavisado poder estar em desacordo (está longe, não vê, está mal informado), sou uma pessoa poupada: só bebo um de cada vez. Se descontar de todos os que bebo, as ofertas, os brindes às efemérides de cada parceiro que frequenta o botequim, e os que o Chico se esquece de cobrar, gasto realmente muito pouco. Sou portanto no Sul, um dos homens mai

CAVALO-MARINHO

  Na distância do tempo que leva a vida a passar, as imagens mais antigas confundem-se, fundem-se mesmo, é difícil apurar certezas. Vejo-me a olhar fascinado e miúdo, a primeira vez, um cavalo-marinho. Ressequido, mas conservado, pousado na palma da minha mão. Se na altura conhecesse uma palavra mais pomposa do que renda, diria filigrana. Aconteceu quando estava de visita a uma casa liliputiana, de tios meus. A meu ver uma casa cheia de misteriosos e pequenos tesouros, que ia descobrindo na curiosidade de criança, abrindo gavetas e mexendo em prateleiras. Uma casa que tinha um olho de vidro da vista direita da minha tia, pousado no fundo de um copo cheio de água na mesa de cabeceira, a olhar para mim com um olhar espantado, esgazeado, e eu a olhar para ele, a princípio receoso,  depois a querer saber o que havia por trás de um olho, já que os vemos sempre colocados nas órbitras dos usufrutuários e não sabemos o que está por trás. Este olho de vidro é a prova óbvia que a minha tia ficou

DO AMOR INCONDICIONAL - 1-DO PODER

Nesta pluralidade que é a natureza, nesta obra dos acasos ou de causas superiores insondáveis, há seres cuja beleza cativa o mundo. A beleza é o argumento mais forte do poder. Dança à sua volta, danças do ventre, sensuais, húmidas, viciantes. Sabe rodeá-lo e tecer a sua teia invisível mas inquebrável, ata-o de mãos e pés, imobiliza, inteiramente hipnotizado. Perante a força irracional que irrompe de uma obra sinfónica, para pôr um exemplo de beleza superior, o homem baixa as defesas, entrega a sua sorte no embalo da música, extasiando-se é levado por essa torrente de emoções. Os efeitos dessa mistura explosiva, do casamento da beleza com o poder leva os seres a atitudes que não se alcança imaginar, coisas fora da lógica. Práticas do bem e o mal, sem noção, do bem e do mal, coisa subjectiva que leva por vezes a equilíbrios no fio da navalha. O aparecimento fugaz de um tigre listrado, meio visto, meio escondido no restolho dos arbustos, hipnotiza quem o vê e olha,