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DO AMOR INCONDICIONAL - 6 - DA MÍSTICA







O meu amor rasga-me o corpo, como uma faca de gume afiado, finíssimo, penetrante, violentando as minhas entranhas indefesas porque esperam por esse acto, dor insustentável, uma volta às avessas do meu corpo e da minha alma através da dor, no entanto é amor. Levo-me até aos limites do sacrifício. Só nos limites se operam os milagres. No outro lado nasce o prazer sem nódoa, virgem do pecado, imaculado. Ultrapassado esse ponto de não retorno, a grande janela do nosso coração escancara-se, ingénua de boas intenções, plena de esperança, convida-se a entrar uma luz nova, um ar puríssimo, a renovação, a paz. Somos invadidos pelo Espírito Santíssimo, alimento de todos os alimentos, panaceia mística do amor.

o Amor a Deus, o maior amor, o mais sofrido, o mais despojado, só esse amor é o amor.

É por isso que luto e sofro e doo-me e vou aos impossíveis para ganhar o mais glorioso dos amores, para o qual não há condições, só dádiva. Dar incondicionalmente, sem expectativa. Sem recompensa.

Para chegar a Deus – ser a eleita - devo despojar-me das pústulas do mundo, e esperar, nada mais que estar pronta a recebê-lo, inteiramente, eternamente.

O nosso caso é um amor terreno que se celebra no céu: eu humana, ele o imperador dos anjos. É a união perfeita com o amado de todos os amados: Deus, o Senhor, o Criador do absoluto e de mim.
O seu olhar doce, o seu amplexo, valem todos os sofrimentos, todos os flagelos, todas as privações. Negar o convívio com os outros, renegar filhos e pais, congelar os sentimentos, castigar as emoções, enjaular a palavra, entrar num retiro de silêncio para o mundo que me rodeia.

Contemplação, prece e trabalho, nada mais. Repetir, repetir, esperando um sinal, a correspondência do seu amor, aguardando pela mensagem, sem desistir, persistindo, obstinando na contemplação e na prece, e no trabalho.

O trabalho redime, o trabalho purga, o trabalho purifica.
É este o segredo da obra.

Já vivi como os outros, já tive essa normalidade, emaranhada nas coisas mesquinhas e pequenas do mundo. Os pequenos e monótonos diversos que fazem as rotinas das coisas, sem sentido, sem continuação, isso não é viver, é passar por aqui. Eu quero mais. Desde cedo que senti algo em mim diferente dos outros. Não estou a falar de tudo o que é diferente dos outros, isso é o que faz a individualidade de cada um. Falo de qualquer coisa, talvez um impulso, ou ainda não, uma intencionalidade ainda em construção, desconhecida, mas sabendo-se que já existe, está algures em nós, um dia virá à superfície. O azeite vem sempre à superfície.

Não o sabia explicar, era uma força que brotava de dentro, que nessa altura não sabia ler. Não era uma pulsão religiosa, que me impelia a rejeitar as rotinas normais das pessoas normais. Eu procurava refúgio em mim, cada vez mais em mim, e não compreendia, só muito mais tarde, e foi preciso uma epifania, ou uma clarividência, como se queira dizer. Durante anos, na minha infância, um sinal dessa estranheza interior que ainda desconhecia o desfecho, deixava-me ficar quieta, nalgum local recolhido, de preferência o meu quarto, onde conseguia estar fugida, desaparecida durante dias, nessa casa enorme onde vivi a minha juventude. Não tinha necessidade dos outros, só de mim. Pratiquei durante anos, a arte da invisibilidade com sucesso. E a minha família mais próxima ajudou-me, era desprendida de mim, deu-me espaço, e o espaço que eu necessitava era o do recolhimento no meu quarto, numa preparação para os votos eternos, sem o saber, muito longe mesmo de imaginar que essa minha diferença dos outros era o prenúncio de algo maior, grandioso que estaria por acontecer.

A minha família , burguesa a querer parecer aristocrática , epítome da pureza do espirito conservador desse tipo de famílias, tradicionais, delegou as obrigações de educação que tinha com esta filha estranha, diferente em tudo dos seus quatro irmãos, centrados, obedientes, apreciadores da tradição, respeitadores da palavra do Pai, do exemplo da mãe, numa jovem perceptora russa – vá-se lá saber porque contractaram uma russa, nos tempos em que dos russos pouco mais se sabia que o czar e a sua família tinha sido chacinada pelos bolcheviques, que estes tinham feito uma revolução , que o Estaline matou mais concidadãos que o Hitler matou judeus, que fazia imenso frio nas terras da rússia, que quase toda a sua literatura era genial e ponto.
Por cá não havia russos, eram todos maus. Agora por cá já há russos, têm todos muito dinheiro, não parecem bons, mas deve ser um preconceito.

Naquela época vá-se la saber onde os meus pais foram desencantar uma para cuidar uma menina meridional, eu. A coincidência – que não existe, é como tudo, um encontro final de uma série de acções e movimentos encadeados que levam ao preciso desfecho de qualquer coisa, a qualquer momento -, dela se ter atravessado na minha vida, precisamente nos momentos cruciais da construção da personalidade, a minha, que na altura não percebi e só depois valorizei, marcou a minha decisão, a escolha desta dedicação incondicional ao amor mais difícil de todos, mas que pode dar a maior das recompensas.

A russa Lizá, era dada a inquietações místicas. Esse povo das estepes extremas e inóspitas, tem a marca de Deus tatuada na cabeça, comete os maiores excessos na terra, da santidade absoluta à mais horrenda das práticas do mal. Era também uma pessoa de grande disciplina mental, a sua cabeça, parece que no geral eles são assim, estava rigorosamente compartimentada e com post it, com os nomes escritos de todas as coisas, nos lugares certos, que lhes competiam. Todos as suas acções são devidamente planificadas, encadeadas numa cronologia de acções, executadas sem mácula e no tempo exactamente certo a que estão destinadas. O sentimento mole dos do sul não encaixa na sua compreensão. Nós achamos que eles são frios.

Não precisei das desculpas de ser feia, portadora de uma deficiência, ou traída numa relação, para justificar o meu desapego pelo apego ao amor do Deus que me chamava para o seu seio. Nenhuma dessas condições me afectaram graças a Deus, nasci saudável e escorreitamente bonita. A escolha foi genuína e absolutamente descomprometida e imparcial, sem outros argumentos que a minha vontade, ou melhor será dizer, a minha paixão ardente por Ele. Mas isso foi muito mais tarde, que a seu tempo conto. Até chegar ao dia milagreiro fui uma pessoa destituída de fé, com qualquer coisa de inexplicável cá dentro, mas que não sabia que viria a ser fé, ou crença.

A decisão de fazer este caminho, compreendo agora, estava gravada em mim desde o momento em que o óvulo da vida iniciou o trabalho da construção do ser que sou eu, antes disso até, no determinismo de uma vontade Dele, que nos criou a todos, Ele, o verdadeiro e único Director-Geral do Arquivo de Identificação.

Tive durante o tempo que teve de ser uma vida monotonamente normal, já o disse. Nunca disputei amores, nunca olhei nem escolhi nenhum, deixei-me levar, como todas, era natural, era jovem, as minhas amigas influenciaram, namorei um rapaz com quem acabei por casar e constituir família.

Fui uma mulher de alguma beleza, sem floreados nem artificialismos, a suficiente para sentir agrado no que via ao espelho, de linhas apuradas por gerações de conjugações de boas famílias, a sublimação das boas cepas, conseguidas na experimentação cuidadosa e nos cruzamentos estudados, em castas que acabam por dar vinhos de excelência, se se aceitar uma comparação assim.

Fui sempre saudável. Nunca me acometeu nenhuma doença aguda ou crónica, chagas no corpo, impedimentos e nós na cabeça, difíceis de deslaçar. Os homens não me traíram, serviram-me. Tive toda a liberdade de escolha e só a mim couberam as decisões que tomei.

O meu pai foi a figura, sem contestação do patriarca, mais por obrigação do cargo familiar em que o investiram do que por vontade própria. Era um homem desligado das coisas de família. Cumpria as obrigações com responsabilidade principalmente as de ordem financeira e pouco mais.

Prestava-se aos rituais habitais de ser o primeiro sempre a falar, o primeiro a começar as refeições, e esgotava-se nisso o seu papel familiar. A minha mãe era uma pessoa ausente por outras razões. Era mundana. Gostava de viajar com as amigas, só se lembrou de ser mãe quando os filhos eram adultos, para uns foi tarde de mais, outros perdoaram.

Eu vim ao mundo para ser do céu, num intervalo curto, a ganhar fôlegos, para me preparar com decência para o nosso encontro nupcial, eu e Ele, lá, onde não há dia nem noite, só a paz eterna, o tempo parado, que na quietude definitiva, anulado de passados e futuros, marca o presente, o tempo da fruição permanente.

O meu casamento e a minha vida mundana tinham um fim anunciado, mas não fui desonesta com o meu marido, aguentei até onde pude. Tratei-o sempre com a decência que as conveniências do meu meio impõem.

Voltando ainda atrás, fui uma criança normal como todas as outras e cheguei a mulher nessa banalidade dos dias que se seguem a dias. Brinquei, aprendi bons costumes, cumpri as obrigações de cidadania, conheci, experimentei emoções calorosas e casei com o homem que julgava amar – devo tê-lo amado assim creio -, tive filhos e preocupei-me deles ao mesmo tempo que alimentei a carreira académica, com os altos e os baixos de todas as carreiras.

Socialmente, cumpri os compromissos habituais de uma burguesa bem-nascida: visitei e retribuí as visitas, acompanhei o meu marido, não faltei a uma festa da escola das crianças. Organizei sempre convenientemente as suas comemorações de aniversário e nunca errei nos temas para os bolos de anos e apesar de não os saber fazer, comprei-os nas melhores casas.

Sempre fui bastante prática nas coisas da vida e como me dediquei à área do comportamento, numa perspectiva científica – a dimensão teológica veio mais tarde, não a comportamental, a minha -, filtrei os meus à luz da razão, da análise, da lógica, os sacrossantos pilares da ciência. Nunca dei oportunidade à fé, ao religioso, por achar uma adição, como todas as outras, amarras de um vício que não se sacia. 

Entregar-se a uma força imaginária, dando a resolver os imbróglios e os nós que não conseguimos desatar, as decisões importantes que temos que assinar, eram para mim uma espécie de cobardia, fraqueza de carácter. Pensava eu, enganada estava.

Pensar assim não me impedia de ir à missa aos Domingos, mas confesso que na altura, fazia-o por obrigação social e não me lembro de ter tido algum arrebatamento interior, nem mesmo quando tocavam o órgão, solene, muito metálico, que apesar de ser bonito o som que inunda uma igreja se ainda por cima estiver adornada de belas talhas douradas, preenchendo o espaço interior da catedral de uma pacificação do espírito, elevando o pensamento a outros níveis, que ajuda na concatenação espiritual com o divino, não foi pelo som que tive uma visão, um chamamento, a epifania, como se quiser chamar. Esse ambiente nunca me trouxe nenhuma revelação, e não estava a contar – nos planos que fazemos das nossas vidas – que isso me acontecesse. Sempre pensei que esse desconforto interior se esbateria com a idade e prosseguiria na missão da vida, que é criar os filhos, chegar ao topo da carreira, conseguir não me divorciar, mesmo a custo de aceitar um que outro deslize do meu marido, é humano, chegar a uma reforma decente, e por fim dedicar-me ao que gosto, que com este encadeado todo de coisas por fazer, já não se sabe o que se gosta, se calhar acabar os dias não fazendo nada, só olhando, nada mais do que olhar.

Via para as minhas amigas beatas – nas famílias numerosas e conservadoras há muitas – com sobranceria, achava que era uma infantilidade de adultas não conseguidas, frustradas, fugia-lhes das mãos o controlo da vida terrena e procuravam-no no consolo da água benta, nas conversas das sacristias, nos chazinhos onde combinavam as suas acções de caridades, coitadinhos dos pobrezinhos, tão pobrezinhos e tão sujinhos. O cheiro que eles deitam é o que mais se lhes entranha, mas elas fingem que são boazinhas e ficam ansiosas enquanto não lavam as mãos e aspergem os pescoços com perfumes caros.
As piores, as dissimuladas, fingiam falsos puritanismos, só virtudes, infladas de vícios escondidos nos reposteiros, e noutros locais que de dizer o nome envergonham.

Até que um dia aconteceu. O episódio que tudo mudou, não estava à espera, ninguém se prepara antecipadamente para mudanças nos seus avessos, ficamos completamente à mercê do imprevisto.

Foi na altura em que estava a fazer o doutoramento, que começou bem. Sentia-me animada, positiva, o tema da tese era original, a fase inicial decorreu com ímpeto e muita energia. Escrevia finalmente de uma forma tão fluída que houve momentos em que considerei ter sido uma patetice minha não o ter feito mais cedo. Comecei mesmo a gostar de escrever, apontamentos soltos, frases, palavras, num caderno de apontamentos, dos banais, de supermercado. Acho até que era amarelo. Ainda o devo ter, se bem não tenha interesse nenhum em vasculhar o que tem escrito, é passado e era uma tentativa frágil de ser uma imitação de textos poéticos. Inúteis.

Enganei-me durante anos inventando desculpas para não terminar a tarefa e fui adiando, as coisas do costume: a chama do casamento, sempre recente, a ter de ser alimentada convenientemente; os filhos tão novos, dependentes de apoio e cuidados; mais para a frente, em esforço, ambos, a relação desgovernada nas águas do tédio, a resgatar mais atenção para se manter e sem vontade para isso.

O tempo foi passando e quando dei por mim ou fazia o doutoramento ou a minha carreira docente tinha um fim próximo anunciado. Se não fossem os meus pais, os pais a ajudarem os filhos, amarras até ao fim, com quase quarenta anos, sem nunca ganhar dinheiro de uma forma regular, ganhar para ser independente.

A ideia inicial foi boa, o tutor gostou, motivei-me, os primeiros passos foram bem dados, com ritmo e ânimo. Mas a chama apagou-se, entrei num pântano escorregadio, a enterrar-me, a afastar-me de um porto seguro. Fiquei vazia de ideias, não sabia como continuar, assustei-me, achei que não ia conseguir, e deprimi. Descurei o marido, afastei o meu interesse pelos filhos. Descuidei o corpo aceitando sem resistência a escravatura da bulimia. Vejo agora que essa catadupa de acontecimentos inesperados, que poderiam ser a perdição de quase todos, era a úlitima provação, o teste final: descer aos fundos dos infernos, conviver com todos os demónios e os seus carrascos, para poder fazer a ascensão da luz.

No quotidiano estamos distraídos, com as malas carregadas de coisas sem préstimo, não vemos os sinais, não queremos ver. Poderíamos se quiséssemos estar despertos, apanhar as pistas que estão ao alcance de um abrir decente de olhos, mas não, ficamos, somos cegos, é mais cómodo fingirmos que não vemos, cansamos menos a vista.

Um dia, como os outros, em que deambulava sem bússola, a consumir em nada os minutos do dia, entrei sem dar conta disso, num museu. Quase todos os museus são muito pouco frequentados. São feitos para isso mesmo: Turistas que vão ao engano, velhos a fazerem tempo para a hora do almoço, criancinhas das escolas em excursão, obrigadas a irem e os professores também, aos museus, com alunos sem interesses fora o espaço dos seus ecrãs móveis e muito interactivos.

A etnografia atrai pouca gente. Sentei-me numa sala indiferenciada, para mim, que entrei desatenta, sem saber realmente porque estava nesse sítio. Uma quase penumbra, e sentei-me numa cadeira de braços, na esquina da sala. Só havia essa, e estava vaga. No formalismo de um espaldar alto de madeira sem o conforto de uma almofada, sentei-me sem objectivos.

Focos de luz a incidirem deficientemente sobre os objectos pendurados em paredes escuras: máscaras, do mundo inteiro, imaginei que seriam. Nesta terra pequena não haveria espaço para tantas máscaras diferentes, e anónimas. 

Rostos fingidos, ou a fingir, moldados por matérias orgânicas, que já foram, mortas, sombras, fantasmas. A máscara que mimetiza um rosto, que o esconde, que o é.
Poderia ser intimidatório, um ambiente saturado de olhos, vazados ou cheios, que olham nada, sem luz, ou subliminares achando-se levianamente que não olham nada, mas não, ou seja, sim. Incomodam.

Havia demasiado silêncio, numa escala de medição do silêncio, que não é possível, porque o silêncio é sempre absoluto. Não é, neste local era demasiado.

Tudo naquele espaço ao mesmo tempo amplo e acanhado era funerário, transpirava ausência de vida, para além da minha. Apesar das condições adversas, como já estava sentada deixei-me ficar. Estava cansada sem saber porque, precisava de estar ali, senti isso.

Encostei a cabeça na parede, e apoderei-me de todos os detalhes da sala, depois, abstraí-me sobretudo a olhar para o silêncio, e foi me penetrando uma paz insidiosa, porque a senti aproximar, entrar em mim sem justificações, com um escandaloso à vontade, eu nem sequer  fiz perguntas, deixei aceitei entrar a paz em mim.

Terei adormecido – o que sempre se diz para afastar as responsabilidades -  talvez. Perdi a noção do tempo, não sei se estive sentada nessa esquina da sala muito ou pouco, não tenho relógio, odeio essa ditadura. Não acordei sobressaltada, nem a meio de algum sonho que fosse bom ou mau. Não me lembro sequer de ter estado a sonhar, despertei banalmente abrindo os olhos, como pela primeira vez, ou imagino isso, porque sinceramente já não me lembro do que vi ou senti da primeira vez que abri os olhos.

E percebi! Luz! tanto e tão forte espanto só pode ser graficamente traduzido pelos pontos de exclamação.

 Todas aquelas figuras difusas, inertes, sem temperatura, que apesar de virem a ter, fugazmente, algum sinal de vida, dado por alguma cor com que sejam pintados, são bonecos.
Afinal não o são, parecem. São pessoas, gente, indivíduos, que parecem ser bonecos. São homens verdadeiros feitos com o amor de Deus, que lhes põe a centelha da vida numa pequeníssima cápsula junto aos seus corações. Não se encontra nas radiografias, mas está lá. Essa centelha faz a combustão que alimenta os seus movimentos, os seus pensamentos, as suas realizações materiais, as carícias que fazem. Essa indetectável chama, é a chama de Deus, o sopro seu.

Foi uma revelação e tanto. Esbarrei de cara esborrachada com uma revelação. E logo a da existência de Deus, e tudo isto a acontecer num museu de etnografia, uma ciência mais do que humilde, dos homens, das suas coisas, só para os homens. Mas é mesmo assim, pelos sinais contraditórios e pequenos, se revelam os grandes segredos.

Naquele dia, naquele local improvável, naquele momento, despertei e vi a realidade. Vi Deus, e apaixonei-me irreversivelmente por Ele.

Estava perdida e encontrei o caminho. Desanuviou o nevoeiro, lúcido, transpareceu. Num instantâneo, numa nesga de tempo impossível de medir com instrumentação, entendi o passado, reconciliei-me com o presente e brotou como a mais cristalina das fontes, em clarividência a minha tarefa, a missão, da existência, da minha neste entreposto de passagem. Vi Deus pela primeira vez, na imagem das máscaras do museu. Senti em todo o meu corpo e no meu ser, um arrepio sísmico, assustador porque desconhecido, mas também bom, o primeiro amor, que é igualmente a primeira paixão, e que irá ser invariavelmente a primeira desilusão. Mas isso é com os homens, com Deus não há desilusão, há um saciar que não se esgota, cada vez mais, melhor, mais puro e mais profundo sentimento, esse amor corrente de ligação dos Universos infindos.

Apaixonei-me como se uma adolescente no confronto com o seu primeiro Amor e não me envergonhei, mulher mais do que feita, por isso. Pelo contrário, enalteci-me orgulhosa e grata.

Marcado o dia, começou a grande aventura, a maior das caminhadas para a morada do Senhor. Desde que nascemos que começamos essa caminhada na direcção do fim, a morada eterna. Há quem não queira ir, há quem vá a contragosto, todos vamos, mas eu vou porque O amo mais do que tudo, pelo que vou ansiosa por chegar.

Serei a sua mais fiel e virginal concubina, virginal sim, porque nesse dia, tudo voltou ao principio, à pureza fundamental. Este Amor vive-se num plano subtil, imaterial, é um amor cerebral. Foi também nessa epifania que se realizou o processo da entrega, o desprendimento, cortar os elos que me ligavam prendendo, à mesquinhez da pequenez humana.

Nesse dia de ruptura e de união, os dois opostos juntando-se no balanço, anunciei a mudança - nem seria preciso anunciar, a minha cara que não a olhei deveria transbordar de alegria mística - a família não percebeu, não aceitou, mas a nova inusitada força do amor a Deus que agora jorra em mim, ajudou-me a compreender e desculpar os seus constrangimentos. Perdoai-lhes Senhor, eles não entendem.

Cada um tem o seu sendeiro para realizar, o meu marido, que já não o é porque descobri o meu verdadeiro Amor, é um líder nato, e na política irá longe. Quanto aos meus filhos, serão com certeza felizes. Foram bem educados e esses princípios são activos que se levam pela vida fora.

Bem-fadado dia este, dia do milagre. Não irei viver mais na solidão desértica do desassossego da vida humana, vida bocejante, indecisa, sonâmbula, tristonha. Vida às pingas de conta-gotas, intermitência de feliz-infeliz, coisa pouca, muito pouca, para a esperança que se gasta toda na ilusão de uma realização que nunca vai acontecer.

A menos que se encontre Deus, e lhe façamos uma declaração de amor. E aí, dando-nos conta, aceitamos que vale a pena esta pena que se vive, só para chegar a Ele, descarregando todos os cansaços com a energia do Amor-paixão.

Agora chamo-o e encontro-me, Ele está em mim, fundidos alquimicamente. No rosto de quem me cruzo nas ruas, nas gotas de orvalho pousadas nas pétalas das flores dos jardins, num corredor deserto de um hospital, tudo é ele, todas são as suas faces, e eu aqui para o adorar.

O mundano perdeu o sentido, é um filme de reprise mal legendado. Afastei-me das relações sociais, das diplomacias cínicas dos convívios, das preocupações com  pagamentos, com o aspecto da casa (se está limpa, se há pratos por lavar há três dias). Sinceramente perdi o apetite por este quotidiano feito de futilidades tóxicas.

Quando nos baixa e vivemos a bênção da paixão, deixamos de ter olhos para os outros. Só Ele, e nós, numa relação sem espectadores desnecessários.
Nesta busca do caminho para chegar a Ele, juntei-me à Obra. Não há maior fascínio, maior contentamento pessoal de realização, que rasgar o coração, pelo trabalho.

 Concentrarmo-nos no trabalho, não afastar nunca o foco nisso, dar o melhor, é a via rápida para o encontro com Ele. E no dia-a-dia, fortalecemo-nos na penitência, que penetra na carne, dilacera, uma grande dor, uma boa dor, que nos lembra a todo o momento, a necessidade do sacrifício para se atingir o céu.

Sou uma voluntária de Deus.

A minha dedicação é a causa, estou ainda neste mundo, mas já não sou deste mundo. Sou a Sua companhia, amante eterna.

Este Amor incondicional que lhe tenho a Ele, só Ele, só Eu, é o mais puro dos amores, não há outro igual.

Sou a imaculada concubina de deus.

Vivo num fervilhar místico, num cadinho de alquimia, a alquimia da fé, o néctar indispensável, o alimento.

Tudo é Deus, está em Deus. Mesmo o mal, a ideia que o homem faz do mal, as imagens violentas do quotidiano, o sofrimento, tudo é para nos pôr à prova, enrijar, fortificar, transmitir a palavra e o exemplo, para nos consolidarmos no amor dos dois, o nosso amor, genuíno e irreplicável.

Não há tristeza, não há desesperança, não há dor, não há injustiças, tudo é uma prova de Deus, e quem a ultrapassa, as ultrapassa todas, ganha o privilégio do mais criativo dos amantes, do mais estimulante dos amores.





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