Vista do céu, a Terra é uma bola de azul intenso, que sobressai
como primeiro plano das outras cores que a pintam. Pinceladas de castanhos e
amarelos, não é monótona.
Algum marinheiro dos céus, viajante de uma barcaça espacial, de braços
nus, tatuados, apoiado na amurada do seu navio interstelar, que neste preciso
instante a veja e se detenha com atenção, pasma-se da sua beleza, por mais não
seja que o tempo milimétrico de uma suspensão do respirar.
Pode acontecer que se emocione, na forma de emoção que seja a
sua, um ser de mundos desconhecidos, desarmado inesperadamente por uma profunda
sensação de plenitude, fenómeno possível de acontecer quando desprevenidamente
se dá de caras com uma manifestação do belo e não se esperava.
É, sem dúvida, uma alta
concentração de emoção. Levar a um aperto do peito, uma pressão intensa,
carência momentânea de ar, ligeira tontura a isso devida, algo de inesperado
que vai ficar gravado na memória de uma viagem, a que mais marcou, a desse simpático marinheiro, que só
fazia naquele momento, naquela hora da eterna noite universal, o mesmo que
todos os marinheiros fazem: pôs-se encostado ao beiral do seu navio, a olhar
para o mar de estrelas, balouçando num magma invisível, ausente de peso e de
atritos. Uma total escuridão, salpicada pelo piscar incessante desses
pirilampos estelares. Encostou-se para espairecer e estarreceu.
Não se sabe com certezas de comprovação científica aceite por
todos os pares, da existência de marujos galácticos habitantes de outros
planetas, exploradores do universo. Desconfia-se, quer-se muito acreditar que
existem. Os homens, apesar de gabarolas e arrogantes, têm momentos de solidão e
procuram novas companhias.
Como serão as caravelas voadoras destes seres do espaço? Têm
também velas a impulsionar as suas barcarolas, belas e latinas como as nossas?
Têm símbolos pintados nas suas superfícies? Representam o quê? Ou são alvas sem
mácula de grafismos, ou transparências, enfunadas pelos ventos que não existem.
De qualquer forma que sejam ou se imaginem ser, devem ser magníficos esses
cruzadores dos mares espaciais.
Presume-se como ficção científica que se quer verdadeira, que
existam marinheiros desses navios que estejam a contemplar a Terra, nas
amuradas dos seus barcos impossíveis de imaginar feitio, e que ficam pasmados,
exactamente como os homens se pasmam quando voltam o rosto admirado para uma
lua cheia, prenha de intensidade luminosa. A reflectir a luz que lhe dá a
terra, quando rompe descaradamente extrovertida na linha do horizonte, e os
homens abrem bem abertos os olhos de a ver toda, captá-la toda, no que vai ser
um grande acontecimento do seu dia.
Os humanos com sensibilidade, vivem esse privilégio umas poucas
centenas de vezes na vida, os outros, os insensíveis, também vivem uma vida e
não dão por terem perdido nada, e na realidade, para a sua natureza, não
perderam nada de relevante.
Assistir ao nascer da lua, bem como do sol, os dois sempre ao
despique, é sempre uma primeira vez, um esmagamento sem explicação.
Havendo alguém que esteja de mão dada – suposição ainda mais
difícil do que a do marinheiro - sentado num banco debaixo de um caramanchão
constituído por flores de nomes desconhecidos, eventualmente sem cheiro mas com
outras fragâncias sensoriais, num banco do que se possa imaginar ser um
sucedâneo dos bancos de jardim, feito de feitio e matéria diferentes, num
planeta próximo, a olhar a Terra, enquanto namora com outro alguém na sua
maneira de namorar, divagará no intervalo de um afago, no mesmo tempo do
suspiro, como que sonhando sobre os mistérios deste planeta azul. E quando
assim o observa sente palpitações no coração ou o orgão que faz as suas funções.
E usufrui de duas emoções diferentes e fortes ao mesmo tempo: a do amor, e a da
contemplação de uma coisa bela. Não há ninguém, nem nos universos paralelos,
que consiga viver só rodeado do feio. Por isso existe a arte e estes cenários
de realidade, que são igualmente arte, para amaciar as más vistas.
Fará esse ser alienígena a pergunta que se espera que faça numa
circunstância a pedir essa pergunta: «há vida nesse lugar que agora contemplo?»
Organizada, complexa, com seres, que no momento em que o casal extraterrestre
se questiona, cumprem com a maior das naturalidades a normalidade do
quotidiano, com os previstos e imprevistos que o constituem, e com os
sentimentos, as emoções e as razões à flor da pele, que será dizer: dando-se à
representação apoteótica dos seus papéis de personagens na vida?
Fazem-se tantas perguntas, anseiam-se tantas boas respostas!
Pode mesmo haver marinheiros desse mar lácteo, ou só namorados,
que simplesmente olham para ela, sem pensamentos ou sentimentos que encadeiem
alguma forma de apego. Têm um ligeiro formigueiro na camada que envolve os seus
corpos (pode ser pele) uma indelével sensação de prazer, e basta. Quem não
pergunta tem menos inquietações, é porventura mais feliz, descomplicou a vida.
Por onde andará esse alguém, não se sabe, mas é da mais elevada
poesia pensar que existe e anda por aí.
Quem agora está a pensar em tudo isto, numa cascata de
pensamentos engasgados e confusos é Alexei, o astronauta.
Quando se liberta das suas obrigações diárias - ele tem por
cumprir uma agenda cheia de experimentações científicas com protocolos
rigorosos - encosta-se ao óculo da escotilha da Estação Espacial Internacional
e põe-se a olhar para o silêncio azul do seu querido planeta Terra. E enquanto
vê o azul e os esquissos das outras cores, é embalado por um torvelinho de
pensamentos, uns acessórios, outros a serem levados em conta. Ele não vê
obviamente o silêncio, impalpável e invisível e inaudível, mas não há nenhuma
dúvida que o azul e o silêncio são companheiros que conjugam bem para saírem de
passeio juntos.
Quem agora o visse, via um puto pequeno, maravilhado, como se estivesse
na sua primeira visita a um oceanário, com a cara espalmada no vidro dos diferentes
aquários, admirando a hipnotizante dança dos peixes exóticos, dos grandes e
poderosos tubarões, das mantas, certamente um dos animais mais gloriosos da
criação, todos coloridos e raros, flutuantes no seu meio de andamentos em
câmara lenta, a dar tempo de captar todos os detalhes dos seus movimentos
aquáticos.
Terminadas as tarefas do dia Alexei deixa-se ficar esquecidos
minutos, a adorar o seu planeta. Tão intensamente que hiberna do espaço
claustrofóbico da nave, e entra numa outra dimensão, num registo tépido, numa
tristeza suave que o embala noite
dentro, num espaço em que é sempre noite, sempre breu, salpicado por piscares
de luz das estrelas e das outras categorias de objectos planetários.
Todos os fins de dia, como se fosse um primeiro encontro, ele
vive o intraduzível sentimento do espanto, arrepiando-se, ao repousar o olhar
no planeta Terra. E essa credulidade de olhar como se fosse o de uma criança, é
uma das provas da sua humanidade, uma especialização exclusiva das máquinas de
palpitar que são os homens.
Numa nave que se imagina aconchegada demais para o convívio
forçado de instrumentos e astronautas, esta escotilha é o seu refúgio de
tranquilidade, o seu ponto de fuga.
Nem tudo o que naquele instante está a acontecer na Terra é bom,
belo ou justo, mas ele está distante dela e por esse facto, o do
distanciamento, não vê o cinzento do mundo. Só o azul, o glorioso azul,
cobrindo tudo.
Alexei olha o planeta e boiam na sua mente, como que ausentes de
gravidade, memórias-imagens, pensamentos de passados borbulhantes, episódios
pessoais, histórias alheias, perguntas fundamentais, dúvidas sempiternas.
As voltas que as perguntas dão, que acompanham a vida, sempre as
mesmas, sem respostas algumas, desconfiando-se que se sabe, de outras.
O astronauta partilha há seis meses a missão com dois colegas de
outras nacionalidades, um americano, um japonês um russo que é ele. Entendem-se
apesar do convívio prolongado em espaços fechados não ser fácil. Eles vivem
numa pequena sociedade das nações. Quando se juntam dois homens, nasce a
necessidade da política, o que aumenta o esforço da diplomacia.
Quando amuam e acontece, falam nas suas línguas, entredentes e é
essa a forma de desabafarem e diminuírem as tensões de um espaço confinado,
pouco respirável, de muitas concessões. Não têm pontos de fuga, coabitam um
ambiente asfixiante rodeados de infinito que também asfixia por ser
desavergonhadamente interminável e escuro. Não se pode sair, ir lá fora, dar
uma volta, sacudir o peso dos ombros, e voltar mais leve do passeio. Uma
escapadela temporária é uma impossibilidade prática, e assim se descreve uma
prisão, que não são as paredes nem as grades que a delimitam, mas o não haver,
mesmo sem nenhum muro, liberdade possível de alcançar.
Onde há dois homens, há entendidos, mal-entendidos,
subentendidos. Comunicar não é fácil mas é o que os faz humanos, trocam
opiniões e aceitam-se. Alexei é uma pessoa que se leva bem, e os companheiros
também, falam entre si das suas coisas particulares, contam histórias, uma
anedócticas outras sérias, e assim se levam, assim vivem juntos.
A missão decorre sem incidentes o que é conveniente aos bons
trabalhos da comunidade científica, que procura os avanços do mundo, a que
chama conhecimento. Estes homens têm um trabalho com significado.
No entanto o afastamento prolongado dos seus, e o silêncio – é
destruidor o silêncio quando é forçado – esticam os fios elásticos da
paciência, a ponto de uma permanente tensão. Na ausência de gravidade, os
minutos não medem só sessenta segundos, são muito mais prolongados e há mesmo
minutos que são eternos.
Durante o dia (sempre escuro lá fora, sempre noite), ele
distrai-se nas suas múltiplas actividades, a sua curiosidade não tem limites e
há muita experiência para fazer. Quando termina o turno sofre os efeitos do
acabrunhamento, baixa a guarda, e como antídoto vai espiolhar a Terra. Envolve-se
num manto de uma saudade cinzenta, num processo que se instala devagarinho e só
se liberta quando se sacia de ver os desenhos e as cores das geometrias dos
continentes e das águas que rodeiam os continentes, tudo isto enquanto o
planeta gira, e a nave também, mantendo o movimento que se espera deles. Alexei
olha pela escotilha e vê um magnífico e lustroso berlinde de vidro num
caleidoscópio.
Se pudesse abraçá-la ali mesmo, a Terra, inteira, num abraço
lento, demorado, absorvendo tudo o que a constitui, dando ele tudo o que o
constitui, era o que faria. E dava-se logo ali, imediatamente, uma fusão de
Amor, uma reacção nuclear, pelo impacto da união dos átomos bons do Universo.
Seria suficiente esticar o braço e tocar na sua superfície,
acariciando como se acaricia um boneco de peluche. É difícil encontrar uma
lógica para o que se está a dizer, mas é assim que as coisas acontecem quando
se passa demasiado tempo fora de si. Perde-se um pouco ou toda a razão,
fazem-se e pensam-se coisas pouco comuns. E vem a saudade, como chuva miudinha.
Há dias em que as memórias não jorram dos teclados da sua
máquina de pensamentos. Aparecem do nada, vindas de fora, circunstanciais. As
palavras como que pairam no ar ausentes de gravidade e aproximam-se umas das
outras, encaixam, produzem sentidos
Algumas excêntricas.
Desde que o foguetão o levou à estação espacial, o tempo a
contar para a sua vida em calendário terrestre, interrompeu-se na sua ausência,
entrou num modo de intervalo. A terra reteve-lhe como prova de boa fé, o
passado, não podia ser de outra maneira, cobrou uma garantia. se voltar
recupera-o, se não fica para herança. Se não for reclamado, recicla-se porque
já há muito pouco espaço disponível de armazenamento de todos os passados dos
passados na terra.
O que Alexei vê quando olha agora para a terra não existe, já foi.
Um desfasamento. Se o presente é uma quimera, a escapar para o futuro, ainda
mais nesta situação, em que se olha para um ponto no universo e o tempo que
demora o olhar a chegar a esse ponto, transforma o que se vê no que já foi. Os
residentes fixos que não saem dela até porque ainda não podem, não se dão
conta, destas subtilezas.
Todas estas conjunturas para dizer que Alexei por nenhuma razão
especial, mas porque isso lhe ocupa a cabeça, e ele precisa de distração,
começou a desenvolver uma teoria.
Desenvolver uma teoria exige pensamento, abstração e inteligência,
tempo para tudo isso não lhe falta. Afinal de contas ele é um astronauta, e
para o ser, teve que demonstrar a muito boa gente que reunia as condições
pretendidas, entre as quais se incluem as referidas anteriormente.
Sendo um cientista, pragmático portanto, achou que não seria má
ideia construir uma teoria das ciências humanas, mais amaciada na rigidez da
exigência das exactidões, elaborada por uma cabeça formada no puro pensamento
racional, experimental.
Uma nova metafísica, das que encaixem na forma de pensar de um
cientista, um experimentador, um comprovador das relações de causa e efeito,
validadas por modelos matemáticos.
Ao mesmo tempo que fosse um modelo ajeitável ao “talvez”, “era
melhor se fosse assim”, que não seja monolítico, que dê espaço à poesia.
A sua tese, construída e calibrada nos seis meses em que é
inquilino num apartamento estreito na órbita da terra, defende que o planeta tem
uma função oculta, que poucos iniciados sabem.
O seu interior não é só magma incandescente. Isso é uma
barreira, para que não se chegue ao âmago, ao centro, onde funciona uma imensa
biblioteca de armazenamento das memórias dos homens, de todos eles, desde o
primeiro que abriu os olhos ao mundo e pensou, até ao que vai morrer no próximo
segundo. É um servidor gigantesco e todos estão ligados por cabos virtuais, não
palpáveis nem visíveis, ao servidor. Um
computador gigante, auto-alimentado que processa, cataloga, inventaria,
armazena tudo o que de inimaginável e imaginável foi alguma vez e será alguma
vez, concebido pela mente humana. Esta
motherboard tem toda a história do planeta terra. Aquilo a que vulgarmente
se chama alma, é o módulo de conexão com esta máquina, que quando se dá a morte
do seu portador, faz o download final
dos conteúdos remanescentes do ser defunto, para o servidor principal.
Quando os utentes por força da morte ou outra ausência não
explicada (por exemplo o caso dos astronautas como Alexei, que saiu
temporariamente da influência gravitacional do planeta) desligam-se da matriz,
ficam assim fora do sistema de armazenamento.
Entram numa espécie de limbo, num tempo suspenso, que não gera
memória. Quando se desliga a ficha do cabo virtual, ao fim de determinado tempo
que não interessa agora revelar, todo o acervo que estava no “computador” deixa
de estar identificado com o ser a que corresponde um código de série e lote (é
por anos de nascimento) e passa a ficar disponível como matéria pensada fertilizante
de ideias.
Explica-se. Os novos seres que nascem todos os dias, dada a sua
imaturidade, ainda não dispõem da quantidade específica de memória exigida e
necessária para poderem arrancar com os seus processadores mentais, pensarem e
decidirem por si próprios. Assim e para facilitar o processo de adaptação e
crescimento e até que atinjam essa autonomia, é oferecida a possibilidade de
utilizarem um concentrado de memórias esparsas de anteriores utilizadores.
Estas memórias são previamente recicladas e limpas de referências a lugares,
situações especificas e pessoas, para não gerar confusão.
É um kit de
sobrevivência intelectual, para se lidar com as primeiras impressões da vida. À
medida que vão crescendo e criando o seu próprio acervo, essa espécie de
enxoval, esfuma-se, e apaga-se naturalmente.
Isto não passa de uma teoria sem pés nem cabeça, mas boa ou má é
como outra qualquer e pelo menos serve para passar o tempo e diluir a solidão
de Alexei, o cosmonauta russo, homem que gosta de se entreter com teorias.
Mesmo estapafúrdia, não deixa de ser interessante, e vinda da
cabeça de um homem da ciência, ganha uma ponta de credibilidade, que não teria
se viesse da cabeça de um trovador.
Quando arruma as coisas da ciência e não está a desenvolver a
sua teoria que espera vir a apresentar oficialmente depois de afinada e se
tiver pernas para se sustentar – apesar dos riscos de insanidade que comporta,
a serem talvez desculpáveis, pelos efeitos deletérios causados por uma
permanência demasiado prolongada num ambiente fechado e falho de ares puros e renováveis, Alexei só
se interessa por coisas simples.
Não tem ambições de saber a vida dos outros, para além do que
pode saber e entender da sua, que é muito menos do que julga que entende. Por ser assim, não procura
mais intimidade com os companheiros. Não lhes rebusca os passados. Não
pergunta. Não tem uma curiosidade contida sem esforço.
Quando não está a divagar na sua nova e impraticável teoria da
terra como servidor da memória de todos os homens, ele dedica a sua cabeça
imaginando quais serão, naquele momento, as rotinas da sua linda mulher, loura
e distante - preconceito que os meridionais têm sobre as russas, o que nada
interessa porque não há nesta missão nenhum astronauta meridional que possa
pensar que Alexei é russo e louro e por isso distante, como a sua linda mulher.
Há momentos, nos intervalos desse estado quase contemplativo dos
seus sonhos que se turvam com pensamentos taciturnos, que estão sempre a serem
gerados, sem querer, pelas máquinas dos pensamentos: quais foram as piores
tragédias do alinhamento do dia na sua querida e longínqua terra? No balanço do
dia, houve mais sofrimento ou mais prazer? Medições cientificas impossíveis, não se
inventou ainda uma fórmula matemática para aferir dados desta natureza.
Ele fica ligeiramente perturbado com essas nuvens, brumas nos
seus sobrolhos, mas depois desanuvia, especado no óculo da escotilha da estação
espacial. Hipnotiza-se, deixa-se levar pela sedução – a sensual sedução - do
silêncio azul do astro a que chama lar, e perdoa tudo. Perdoa ao mundo a
poluição dos acontecimentos nefastos e trágicos, porque visto àquela distância,
com a beleza que tem, fica inconcebível que possa existir mal, num local tão
perfeitamente extasiante.
Há momentos em que o astronauta Alexei dá sinais de falta de
lucidez, talvez seja o cansaço prolongado da missão, o desgaste de se estar
confinado muito tempo a um espaço reduzido. Não erra no trabalho - os
procedimentos estão automatizados, foram treinados e executados mil e uma vezes
-, a sua cabeça é que não para de pensar na mesma coisa, voltas e mais voltas,
esperando a chegada do fim do dia, para o reencontro obsessivo com o seu
planeta azul, separados por uma escotilha côncava de um material que não vidro,
altamente resistente às pressões adversas.
Esta é a relação de um homem com um objecto celestial, um
planeta, e pode-se utilizar a palavra paixão, que é a antecâmara do amor, um
quarto que muitas vezes nem se chega a entrar.
Quando acontece o reencontro, baixa-lhe uma paz irrequieta, uma
contradição que alguém entenderá, que não se explica, um controlo emocional na
eminência de explodir a qualquer instante.
Durante o dia Alexei imagina-as e junta frases bem arranjadas,
soubesse e seriam versos, em quadras e rimas, para depois as dizer, parecendo
que está a fazer uma figura tonta mas não, como uma recitação de um mantra, com
um olhar que não pestaneja, fixo, uma ode à sua amante Terra.
A poesia desta é seu azul avassalador, e é assim que lhe
retribui, brilhando ainda mais azul, quando Alexei, no final do dia, recita as
suas juras de amor.
A Terra pensa e tem sentimentos – não se sabe se tem um servidor
de memórias, mas isso agora não interessa, é só uma teoria a comprovar -,
também ela se oferece, a quem mostra estar incondicionalmente apaixonado de si.
É um amor para sempre, palavra traiçoeira. Não é um amor de
volúpias, nem licenciosidades. A sua intenção é tão purificada pelo
deslumbramento, que roça o espiritual.
Por vezes é preciso haver um afastamento, uma viagem, para que a
sua falta queime a pele, seque a boca, invente palavras doces, meigas, que
antes não se conseguiam dizer e agora se gritam, e não são ouvidas, perdem-se na
distância do espaço que separa os dois seres amantes sem condições, para além
de se amarem incondicionalmente.
A distância chora, ou ganha imunidade. Neste caso cola.
Para Alexei, este amor é para o que der e vier, até que a morte
separe, e não restam dúvidas que ele e ela, os dois, lindo casal de noivos, vão
cumprir esse compromisso, porque foram feitos um para o outro. Não há melhor
conjugação.
Enquanto estiver em órbitra, Alexei vai continuar a olhar todos
os dias para a Terra, e a cantar-lhe poemas de amor que ele não sabe que o são,
mas desconfia que começa a ganhar o jeito de os cantar.
Este amor incondicional, é o amor que se purifica e sublima pelo
afastamento da coisa amada. Esse alongamento por vezes desfoca o objecto, por
vezes aumenta como uma lupa.
Longe dos olhos, perto do coração, pode ser o ditado apropriado
e já se sabe, de mais para trás, que é sensato tê-los em boa conta, não seja de
uso numa situação mais difícil, que algum venha em ajuda, compor o que parecia
irresolúvel, porque os ditados, mesmo quando duros, são pensos apaziguadores
das feridas dos homens. Manuais simples de sabedoria.
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