Fugi porque tinha uma ferida aberta, sangrando muito. Uma traição, provocada por uma paixão que foi um vendaval, que levantou telhas dos telhados, pedras de calçada, vasos com flores. Remoinhos incontrolados que me viraram do avesso e assim fiquei, até que nasceu uma pele nova, e pude continuar a viver.
Dizem que um ama e o outro é amado. Talvez
seja verdade, continuo sem saber, não acredito muito em vaticínios alheios,
prefiro a experiência pessoal.
Fugi, porque a cidade e os transeuntes para
sempre anónimos e que nunca virei a conhecer, asfixiavam-me com o seu andar
inconsequente pelas ruas, apoderavam-se distraídos do ar que eu precisava para
respirar e gritar a minha dor. A cidade ficou pequena para nós os dois. E
então, sai.
Fui o mais longe que pude: mil quilómetros,
nada mal. Cheguei nos finais do mês de Setembro, num dia de grandes e trágicas
inundações, e não conhecia ninguém, não sabia o nome das ruas, não conhecia a
língua, nem dizer a palavra inundações, e chegava no dia de elas acontecerem.
Como são um povo generoso com o futuro e
batem quando é preciso a porta na cara do passado, três dias depois da
catástrofe, na praça principal desta cidade, ofereceram-se um grande espetáculo
de música e fogo de artifício, uma sinfonia de Mendelssohn. No meu país
chora-se, aqui comemora-se a aurora do dia seguinte, acreditando-se que vai
nascer cheia de todas as possibilidades e realizações. Rendi-me a esta gente.
Deixei-me ficar sozinho e transparente, até
que comecei a reconhecer as pequenas coisas, as banalidades das pessoas, a
aprender o que diziam os seus rostos. Aprendi a dizer “olá” e “bom-dia”, e
quando recebi o primeiro sorriso porque tinham entendido o que tinha dito,
aceitei como viável viver nesse país tão diferente do meu.
Três meses depois, treinador de cães,
quando o único com quem tinha convivido foi o Tôtu, cão-caçador, meu
companheiro de equitação e faenas tauromáquicas, no quintal da nossa casa na
Afonso III, vinte e cinco anos antes, andava ainda eu de cueiros. Aprendi a profissão
a olhar para os outros, a repetir o que faziam, ajeitei-me, sobrevivi.
Durante algum tempo só o meu irmão e os
meus compadres e afilhada sabiam onde eu estava.
No dia 24 de Dezembro espero-os na estação
de comboios de Bilbao. A inquietação da espera. A saudade. No apeadeiro e
sorrindo com os sorrisos mais belos com que me lembro de ser agraciado (só a
minha avó sorria melhor), um trazia na mão um bacalhau inteiro, outro um
garrafão de vinho, de vime entrançado e o outro uma verdadeira e descomunal couve
portuguesa. Os três reis magos. Os meus reis magos. O Paulo, o João, O José.
Desarmámo-nos tanto, somos uns lamechas
empedernidos, brindámos tantas vezes no caminho da estação para minha casa (um
povoado a vinte e poucos quilómetros), que já nem fizemos ceia de consoada.
Nesse dia memorável, renasci em Bilbao e os
reis vieram oferecer-me prendas e desejar bons augúrios.
Passaram quarenta anos. Tenho ainda de lá
voltar, para desejar um bom dia a essa gente que me adoptou. A seguir, posso
regressar à minha nova casa.
Ni ere euskalduna naiz
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