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MÚSCULOS

 

Fui sempre um trinca-espinhas. Com pena própria, pois  gostaria de ter sido um Adónis, um Apolo, um Hércules, um Silvester Stalone (só o admirei no primeiro filme, era adolescente e não me apercebi que ele era um bronco, sou mais tarde), musculado, imponente e belo, fosse de que Olimpo fosse. Era isso que eu queria, mas a natureza não me fez assim. Em catraio, ingeri a contragosto, lembro-me disso com algum enjoo biliar, a farinha trinta e três, um «alimento saudável composto unicamente por ingredientes naturais: amido de milho, farinha de trigo, amido de mandioca, açúcar, cacau puro em pó, dextrose e vanilina. E um sabor a chocolate que continua a deliciar todas as gerações», seguindo a indicação da bula que nem sequer contesto, mas a minha mãe e a minha avó recomendavam vivamente (não havia alternativas).

Quando conclui, a custo e à custa, que não saia vencedor -nos intervalos na escola primária -, das questões resolvidas a murro e pontapé (os grandes, só de os ver desistia logo; os mais pequenos que eu: tinha pena e resolvíamos as coisas falando), comecei a tomar consciência de que a coisa para o meu lado estava difícil, e flagelei-me freneticamente a praticar a tortura da ginástica. O meu pai, achava que estava perante um futuro maratonista medalhado, um nadador olímpico a defender as cores do Sport Algés e Dafundo, um ciclista a ombrear com o Agostinho, o nosso maior ídolo de sempre depois do Eusébio.

A princípio, desconhecedor das dinâmicas do esforço necessário para o ganho que se pretende, comecei a correr que nem um louco, até em casa, à volta da mesa de jantar, e a executar dezenas e dezenas de repetições dos exercícios que ensaiávamos na escola, uma coreografia ao estilo da Coreia do Norte, para apresentarmos no dia da Raça, ao nosso Deus na Terra.

Cansei-me muitíssimo (tenho-me cansado a vida inteira e para nada), e os resultados se os houve, foi a estimulação do apetite. Comecei a olhar para as iscas envinagradas com batatas cosidas com um olhar libidinoso, não fosse essa palavra por vezes mal-entendida, pois que queria dizer que olhava agora para as iscas com vontade de as querer comer.

Não obtive resultados visíveis e já adolescente, descobri o mundo cheio de oportunidades do levantamento e exercícios com pesos, numa época em que as grandes superfícies de tortura masoquista em que ainda por cima se paga um rim para se ser enxovalhado por um personal trainer jovem, garboso, com sotaque, e com uma musculatura de nos deixar de queixo caído, ainda estavam para ser inventadas neste país onde quase tudo chega tardiamente, e muita coisa nem devia chegar.

 Era um pequeno casinhoto no Estádio Nacional, quando o carro eléctrico ia quase até lá, e no verão o matagal era tanto que tínhamos de o desbravar para chegar a esse pequeno ginásio. Era como se atravessássemos a nossa Amazónia.

Encontrei nesse tugúrio com pesos e barras de ferro ferrugentas, o meu Eldorado e dediquei-me com todo o empenho e uma vontade inabalável para deixar de ser lingrinhas, completando claro está com as iscas, para obter bons resultados.

Foi uma fase da vida em que as coisas se tornam socialmente muito competitivas, as hormonas começam a provocar estragos, porque ainda não estão afinadas e disparam picos que dá muitas em vezes em parvoeira pegada, e apesar desse meu esforço, para qualquer rapariga que eu olhasse, caia logo redondo de paixão (era por quase todas), eu parece que me estava era a hipnotizar a mim próprio, passavam ao lado, só tinham olhos para os espadaúdos e eu transparente como uma alforreca.

Posso agora revelar à distância do tempo e porque começo a dar menos importância a certas coisas, que andei bastante tempo preocupado por não ter dado ainda nenhum beijo na boca, lábios com lábios, e muito menos outras penetrações linguísticas: para mim eram vendavais molhados em noites de sonhos intensos. Realidade virtual.

A mecânica dos pesos também não resultou e entrei na idade adulta convencido de que afinal o importante mesmo era a riqueza interior, o recheio, os sentimentos puros, a boa índole, a defesa apaixonada de grandes causas, mesmo que quixotescas, as ideologias e as utopias. Tudo mentiras. Estava em negação. O que interessava mesmo era a aparência física e com ela ganhava-se o mundo.

Lá consegui dar o primeiro beijo, sofrível, com melhorias acentuadas com a prática, acabando por dominar com alguma mestria todas as suas declinações. Entretanto, alguém olhou para mim, mesmo palito, e não desgostou, e fui criando  a nossa “casinha”, e os filhos (a quantidade de fraldas que se muda até que eles, julgando nós que a licenciatura estava feita,  chegam à adultos e aí é que a história começa) sempre com essa ideia de uns músculos jeitosos, bem torneados e o peito rijo e insinuante a querer rebentar as costuras abertas das camisas de verão.

Não fui lá. Desisti. Mais de quarenta anos a fazer flexões para os meus bíceps mal sobressaírem, timidamente sobressaindo, da manga recortada da camisola de praia.

Com a acalmia das hormonas, pacifiquei-me com o corpo e de há uns tempos para cá comecei a ganhar um volume na cintura abdominal, sem fazer nada por isso, achei que há coisas muito injustas que se pegam a nós e não nos dão descanso : ando uma vida inteira a querer parecer um campeão de bodybuilding e agora que mal me mexo é que começo a ganhar musculo! Está bem, é na barriga, mas podia não ser em lado nenhum. Melhor do que nada. O perfil é estranho, estará torneado de uma forma algo peculiar, mas é o que se tem. Pela primeira vez fiquei contente por ter algo para mostrar: uma bela barriga, rija e redonda.

Este ano quando chegar o calor, a camisa não vai estar aberta até ao peito, é até ao umbigo, para que se veja a potência dos meus músculos abdominais, parecem feras a querer rasgar a camisa. Tenho ainda uma vaga esperança de causar sensação e espanto, lá, em Armação, quando as cinco da manhã, for estender as toalhas e o guarda-sol, para marcar o lugar na praia, e aqueles velhadas todos a fazerem o mesmo, empenados das cruzes, a olharem para mim cheios de inveja, dos meus magníficos músculos abdominais, eu a fazer-lhes pirraça. E quando as mulheres deles me virem…..

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