Não sei se já vos contei a história do epílogo épico (depois desse episódio não a vi mais), da minha tia Belarmina. Era uma mulher excêntrica, se bem naquele tempo não usássemos essas palavras para descrever personagens que por alguma razão tinham comportamentos despirolitados que levam à risada mas também a situações embaraçosas. Se a sua preocupação fundamental não fosse inventar estratagemas para pôr, todos os dias de preferência, comida no prato, poderia ter sido artista. Comediante talvez.
Casou com um dos irmãos mais velhos, do meu
lado materno, e o seu marido, um festivaleiro de gema, esgotou num pestanejar
de olhos as suas fichas existenciais, em tertúlias até às tantas, casas de
pasto e de fado, touradas e largadas na Moita e no Montijo, sendo que o mais
longe onde se deslocava era a Vila Franca de Xira. Claro que tinha apontadas na
sua agenda mental as festas populares e os arraiais dos bairros de Lisboa,
sendo conhecido de todos , e sempre bem recebido. Era um bom homem. Com ele
ninguém estava triste. Como é comum a este género de pessoas, ele esquecia-se
frequentemente que estava casado e tinha uma mulher, em casa, à sua espera. A
minha tia, mulher que se afastava das complicações e que queria uma vida
simples, aceitou esta vida de abandono. Nunca tiveram filhos. Felizmente para
ela, o meu tio deu cabo dos filtros por excesso de ingestão de líquidos e não
havendo naqueles tempos peças de substituição, foi prematuramente acompanhado
até à morada final por um coro de anjinhos. Menos um para lhes dar chatices, a
eles e à vizinhança terrestre, pois é de querer por histórias contadas na
carvoaria do bairro, que quando ele chegava finalmente a casa, altas horas,
ensaiava com impudor e a plenos pulmões, magníficas árias napolitanas, fenómeno
da ordem do inexplicável, por ser um lisboeta nado e criado, e para além do
fado vadio, era de acreditar ser estatisticamente impossível, ter alguma vez
ouvido uma canção siciliana, e menos provável ainda, conhecer a letra, do
principio até ao fim. E mais, cantá-la, ainda que, chegados a esse ponto da
apreciação, quem de fora, olheiro, assistisse ao espectáculo, não poderia
deixar de concordar com os vizinhos e augurar-lhe, logo ali, desejos de que
fosse rapidamente arder nos caldeirões dos infernos, conselho que ele seguiu à
risca.
Se a minha tia Belarmina antes de estar viúva,
pouco saia de casa, fosse para exibir o seu atavio negro, de alto a baixo,
fosse por questões de gestão pessoal de recursos, começou a visitar as cunhadas
com alguma regularidade. Aos Domingos. Por sorte elas eram em número de quarto,
o que quer dizer que só privávamos da sua presença, um Domingo em cada mês.
No Domingo que nos tocava a nós, e não
avisando nunca, já sabíamos que pela hora do jantar, ela ia aparecer. A minha
avó podia perfeitamente pôr mais um prato e talheres, a contar com ela, mas
propositadamente como se fossemos apanhados na surpresa, fingíamos que não esperávamos
pela sua visita.
- Aí filhos, eu não vos quero incomodar,
mas passava por aqui perto e lembrei-me de saber como estavam.
-Já jantaste? Queres comer alguma coisa?
- Não, ainda estou enfartada do almoço.
Sento-me só aqui a fazer-vos companhia e vou já embora.
O
jantar começava, servíamo-nos e comíamos e a dado momento ela saia-se:
- Olha que esses carapauzinhos estão mesmo
com bom aspecto. E o arrozinho de tomate também tem boa cara.
- Come connosco mulher. Anda. Vou buscar um
prato (dizia a ninha avó cansada de saber e nós também, que assistíamos a uma
cena repetida inúmeras vezes).
Para quem estava enfartado, era
esplendoroso e muito, o apetite que aquela mulher tinha, e se não nos acautelássemos
previamente, nessa noite tínhamos que ir às bolachas, para compensar.
O melhor de tudo era quanto o jantar
terminava e a nossa sala de refeições se transformava numa sala de estar,
havendo por alteração única, as cadeiras todas viradas na direcção do
televisor, que jazia majestático sobre as vestes de um naperon, num móvel de
madeiras baratas com embutidos, para causar impacto. Ela ganhava a fila da
frente e como estávamos nos começos das emissões televisivas, ou teríamos
tourada, ou teatro, ou filmes românticos inócuos e estrangeiros, ou missa, nas
situações extremas e solenes, que eram muitas, a que este povo estava obrigado
a participar por vontade divina, irmanada de São Vicente de Fora, onde o santo
cardeal comia no silêncio monacal, os seus peixinhos da horta acompanhados por
um magnífico clarete, produção própria dos seus vinhedos beirões.
Fosse qual fosse o programa, a minha tia,
assumia sem que ninguém lhe pedisse e muito menos desejasse, o papel de
comentadora. Mesmo nas peliculas estrangeiras, ela, que não conhecia uma letra
das portuguesas, traduzia irrepreensivelmente os diálogos de todos os
personagens, mal ou bem, mas aparentemente bem poois dava-lhe um fio à meada e
todos chegávamos ao fim a compreender o que se tinha passado. O seu forte era o
relato das touradas. Fosse por ter absorvido, por osmose, os conhecimentos
técnicos do nosso tio, seu marido defunto, fosse por informações privilegiadas
vindas de um algures que desconhecíamos, esta mulher, não só sabia o nome de
todos os artistas em arena, como sabia esmiuçar ao pormenor os feitios e jeitos
da cornadura das bestas, e os nomes que isso tinha, e tecia comentários
animados e sabedores sobre as faenas e a descrição das verónicas, das
chiquelinas, e outras figuras de estilo tauromáquico. O grande problema é
quando ela embalava, nunca mais se ia embora e nós tínhamos que ir para a cama
e os adultos descansarem pois no dia seguinte ser dia de trabalho.
Esse episódio que marcou o auge da sua
carreira, e a recordação carinhosa que essa mulher sofrida e ao fim ao cabo
frugal, aconteceu nas bodas do casamento de uma prima nossa, ser encantador,
que felizmente está viva e de boa saúde, e quando esporadicamente falamos pelo
telefone, acaba por vir à espuma da memória esse episódio delicioso.
Ela ficou na nossa messa, porque dizia
sempre que tinha uma grande admiração pela sua cunhada, minha avó, que a tinha
ajudado, sendo ela igualmente pobre, no início da sua vida matrimonial com o
meu tio esgrouviado. E por isso procurava a sua companhia. Tudo correu bem, até
ao momento em que o empregado, de libré e lacinho, como ditam as regras dos
casamentos, mesmos dos mal arremediados, serviu a primeira sobremesa. Ela, que
certamente via mal, arregalou os seus olhinhos mínimos e crédulos, suspirou num
suspiro que pelo ribombar com ondas de choque nas mesas vizinhas, mais pareceu
uma tempestade, gritando inflada de júbilo e uma alegria que nunca lhe tínhamos
visto:
- Queijinhos frescos! O que eu gosto de
queijinhos frescos!
Sem dar tempo a ninguém, nem ao empregado
que estava a servir os clientes e acedia às suas vontades, a minha tia
Belarmina, desencantou um saco de plástico da mala, abriu-o e pediu-lhe que
pusesse uns quantos para levar para casa. Voltou a fechar a mala e executou o
sorriso mais conseguido de toda a sua vida. Uma felicidade!
Os queijinhos frescos eram bolas de gelado
de baunilha, mas deixámo-la ser feliz, porque todos merecem e a sua vida, como
as nossas, são dois dias mal medidos.
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