Cresci numa família que usava ceroulas, os homens. A sociedade dividia-se entre os que usavam e os que não usavam, fui parar sem escolher, ao primeiro grupo. E como está de se entender, eu também as usei. Confesso que achava ridículo (palavra que lá em casa não se empregava e tenho pena porque não desgosto dela), quando de manhã via o meu avô ou o meu pai na casa de banho, em ceroulas, pareciam-me pinguins, a passarem com todos os cuidados a brilhantina pelos cabelos, revoltos nas voltas das noites, prazeres ou insónias, alinhados durante o dia em concordância com as normas das repartições públicas: o meu avô nos correios, o meu pai empregado de escritório.
O que nunca perdoei nas ceroulas, o que me
denunciou tantas e tantas vezes no recreio da escola primária, era aquela faixa
mais ou menos branca, a sobressair aos olhos do mundo, por debaixo da bainha
das calças e nem as meias pretas, cumpriam a tarefa de esconder a vergonha alheia,
ou porque o cano dos tornozelos era já de si curto, ou por ter encurtado de
tanta lavagem. A vida nesse tempo não estava para comprar meias.
Quando ganhei o poder (essa foi uma das
minhas mais conseguidas libertações) de dizer “NÃO”, nunca mais enfiei, calcei,
ou vesti ceroulas brancas e esqueci-me da sua existência nefanda.
Só que as coisas fazem círculos – o vento
que um dia soprámos com pirolitos, mais tarde ou mais cedo vai-nos voltar a
estalar, desta vez na nossa cara – e voltei-me a lembrar das ceroulas. E
lembrei-me delas porque vim viver para o interior serrano e o frio que eu não
sabia que existia e que sinto, me levou a ponderar e considerar a possibilidade
honesta de todos os ângulos com que vemos uma coisa poder vir a ser válida, e
depois de pesar todos os prós e os contras, conclui sabiamente espero, que de
manhã, na minha casa de banho ninguém, a não ser o senhor Darwin que não
expressa esse tipo de opiniões, me vai ver de ceroulas, a parecer um pinguim
imperador da Antártida, a pôr brilhantina no cabelo, o que já não vale a pena, pois
já conquistei o que tinha a conquistar.
O frio aqui é tanto, que mesmo um ligeiro
deslize, uma imprudência, um movimento involuntário e distraído, na padaria
onde compro o pão e tomo café, pode levar a que se denote uma ligeira linha
branca, em vez de pele genuína e minha, a pespontar do meu atavio, ou porque
cruzei as pernas, vício que não consigo largar ( do tabaco já me livrei), ou pelo tal problema das meias que pelos
vistos agora também me afecta. Estou em querer que isso não importa: os
clientes têm quase todos cataratas ou para lá caminham, e eu, o que quero agora
da vida, é gozá-la à tripa forra, que nem um jovem inconsciente, e estar
quentinho e satisfeito.
No entanto, vou comprar umas ceroulas
pretas.
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