Nas contabilidades impossíveis por falta de acento nos livros do “Deve” e do “Haver”, não foram muitos os dias em que não tenha tido a companhia de um livro. Se saio de casa e por distração me esqueço de trazer um, se já estiver demasiado afastado para voltar atrás, não descanso enquanto não termino o que vou fazer e regresso incomodado. Nesse lapso de tempo não estou inteiro, falta-me algo de mim. Não vou todo para onde vou porque me esqueci de levar um livro. E quando tenho uma ausência mais prolongada, de dias por exemplo, escolho os que acho adequados para a viagem, mesmo que seja uma primeira visita, que não saiba o que vou encontrar e ver. Ainda assim tento imaginar um ou mais livros que se adequem à ideia artificial que construo do sítio para onde vou, naquelas expectativas que quase todos colocamos quando partimos ao encontro de um lugar novo.
Sei bem o que é a solidão, estar um dia sem
falar a não ser com a minha interioridade, mas não sei quanto tempo aguentaria
viver sozinho numa casa sem livros. Não poder contemplá-los, saudá-los de manhã
quando preparo o café, despedir-me deles à noite, quando encerro ao desligar o
último candeeiro, a minha alternância do dia para a noite. Não consigo conceber
não poder sentir a sua calorosa presença nas prateleiras que preenchem as
paredes.
Já deixei muitos livros para trás em casas
que fechei a porta com estrondo; em inundações inesperadas; mas nunca me
esqueci de nenhum, e se os abandonei, sempre que as tempestades amainaram e se
renovaram as oportunidades, voltei para os salvar, resgatando todos os que pude
e os que perdi causaram-me grandes tristezas.
Recomecei, quase do zero, umas três vezes. E
o vazio pesado e taciturno das estantes por preencher imprimiu-me um sentimento
ácido e intenso, que me ia deitando abaixo.
Uma casa com livros enche-se de vida e se
bem considere uma atitude sábia exercitar agora a arte do despreendimento das
coisas rumo a uma simplicidade mais despojada, penso o que será dos meus livros
sem mim. Eles, os que tenho, estão habituados a estarem juntos, ao excesso por
vezes caricato dos meus mimos, aos passeios que fazemos juntos, à forma carinhosa,
mas solene como os afago nas minhas mãos, sinto um pulsar de vida quando passo
as suas páginas, quando sublinho a lápis, ao de leve, para não os magoar, e não
tenho a mínima dúvida de que eles têm vida.
Seria muito difícil, talvez impossível,
caso me fosse imposta a decisão de escolher entre todos, uns poucos, os que
mais gosto, para levar para uma morada longínqua onde todos não poderiam estar.
Os livros da minha vida. O grande e insolúvel problema que tenho é que não sei
quantos são muitos, e quais são os livros da minha vida, e haverá mesmo alguns,
espero, que ainda estamos por nos conhecer e que viremos a desenvolver um
enamoramento sem regras nem limites, esperando-nos noites de loucura e de prazer. São os que
ainda não lhe sei os nomes e terei um dia.
Espero que depois de mim (ponho um ênfase
demasiado nessa expectativa) os recebam bem, não os separem, porque são todos
irmãos gémeos, filhos do mesmo pai e da mesma mãe: essa intrigante máquina
biológica que transforma coisas comezinhas em arte e assim, faz a nossa vida mais
aprazível e plena. Espero que os levem
como eu, a passear, que os leiam sentados nos bancos dos jardins pois eles
desfrutam do colorido das flores e apreciam os seus doces perfumes. Espero que
os pousem nas mesas de esplanadas soalheiras no tempo do verão, em que o tempo
para e tudo se aquieta em paz. Que sejam abertos e declamados com grande
convicção e projecção de voz, nos piqueniques intermináveis que tanto
apreciamos. Que os levem a ver o mar, porque eles, os meus livros, sabem como
eu sei quando ambos olhamos o mar, que aprendemos ainda mais da liberdade, que o
seu ondular nos ensina que tudo é transitório e fugaz, mesmo a eternidade, que
por teimosia e casmurrice acreditamos ser possível.
Espero que os cuidem e os tratem com
respeito. Assim sou eu e os meus livros.
Deixa-me olhar outra vez para eles, que já
me falta um piscar de olhos seus para me desarmar. Até na felicidade sou de
choro fácil.
Comentários
Enviar um comentário