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A QUIMICA DAS CORES


Se fosse lobo seria siberiano, do Ártico, grandioso, por ser lobo e pelo manto volumoso que o reveste. Seria, no porte e pela atitude, uma macho alfa, como poderia ser uma fêmea alfa, desconhece-se se no reino animal há preconceitos de género.

Mas não era lobo, era um magnífico exemplar dos cães pastores-alemães. Inteligentes como os seus compatriotas humanos, quase todos, porque há sempre excepções.  Qualquer treinador de cães nesses idos anos oitenta do século passado, gostaria de ter algum no seu curriculum de ensinador de cães, e eu, que mal me ensinei a mim mesmo, mas que não deixo de tentar, senti o meu ego piscar faíscas de autoestima, por estar a ensinar um cão-pastor alemão a defender o património do seu dono, um bar em Portugalete , uma periferia operária da Bilbao de então.

Eu bem tentei, e o curso que deveria ser de um mês já ia nos três. O animal era encantador e estabelecemos uma boa relação de amizade apesar de eu não saber falar basco, e ele também não porque era cão, mas sendo inteligente percebia com certeza algumas frases do dia a dia.  Cada um é para o que nasce, e ele, não tivesse nascido canídeo, mas cá dos nossos, teria tido uma brilhante carreira nas relações internacionais, de tão educado que era. Insisti e insisti, usei como isco todo o tipo de agressores fingidos: operários, domésticas, betos, tudo o que aceitou desempenhar esse papel, e nada, nem uma única vez mordeu a manga de corda e couro, que nós, treinadores encartados usamos como instrumento de ensino.

Deu-se a casualidade que não o foi, mas uma sincronia decidida pelo universo, que quando os meus três reis magos, o Paulo, O Gil e o José, se anunciaram à porta da Estação ferroviária de Bilbao no dia 24 de Dezembro, com o bacalhau, o garrafão de vinho, a couve tronchuda e portuguesa e um galo de Barcelos (que leitura tão criativa que eles fizeram desse episódio bíblico e eu comovido fiquei) , quando lhes fiz uma visita ao canil onde trabalhava, o pastor alemão bonacheirão,  à passagem do José, perdeu toda a lisura que tinha e extravasou num episódio de loucura, de demência, mostrando os dentes todos, e que grandes eles eram!

Percebemos naquele momento, que tinha acabado de haver uma química entre os dois. O cão ficou como que possuído, transformou-se num carrasco de Treblinka, queria morder este mundo e o outro.

Na semana em que eles me visitaram, o José amavelmente acedeu ao meu pedido ingrato de aceitar ser “mordido” em todos os cenários e mais alguns, e o dono do cão ficou tão contente, que teve a gentileza e, por mais de uma vez, nos agraciou com um delicioso Txakoli, um vinho branco espumoso, basco, que eles esguichavam para as suas bocas treinadas, mas que a nós lavava mais o rosto do que se deglutia, mas enfim, era bom, e o dono, não me canso, foi bastante gentil.

Porque o bendito animal olhava para o José com toda aquela ânsia assassina, foi coisa que não explicamos. Só podemos dizer a seu favor, o nosso amigo José, que ele era e é um grande sedutor, um belo homem negro e angolano de alma e coração, mas também um bocadinho nosso, e vai gostar que eu me tenha lembrado deste episódio que partilhámos juntos, num passado longínquo e onde começa a cair uma certa névoa que vai esbatendo os contornos e tornando as figuras e os lugares espectrais, mas diáfanos.

Não sei se quando eles vieram embora e eu perdi o rasto, se o cão terá mordido a mais alguém: é que em Bilbao, diziam, só havia cinco emigrantes: dois galegos, dois alentejanos e eu, nascido e criado em Lisboa, e o cão - estava provado - não mordia aos seus conterrâneos.

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