Estive
toda a noite a ser eterno, contemplando ausente de pensamento, uma música de
Wagner: a abertura da ópera Lohengrin. Foi nesse flutuar, que tomei as rédeas
ao tempo e algemei o espaço.
Na
dimensão do vazio, ou do pleno de tudo, os únicos espectadores dessa
experiência, reconheci, aproximei-me e cumprimentei deus, que entretanto
apareceu. Foi tão simpático que passarei a dizer Deus. Não tendo dualidade dúbia
de critérios, cruzei-me com o diabo e acenei-lhe porque sou educado. Sem
esperar que me considerasse, foi curioso, polido, pelo que lhe devo um
tratamento futuro com maiúscula.
Resolvidas
questões metafísicas, segui em frente com a minha vida sem que ninguém me
importunasse. Percebi que na eternidade, cada um é como cada qual. Fiquei confortável
com isso.
Acabei
por vir a adormecer, já que a ausência de pensamento ao fim de algum tempo dá
sono e não resisto em nenhuma circunstância a uma boa soneca. O que aconteceu após
a audição continuada dessa abertura do romanismo. Embalei-me e cai para o lado,
forma de dizer que todos entendem.
O gira-discos, menos inteligente, podemos
mesmo dizer que nada inteligente, ficou a repetir versões iguais até o dia
seguinte, consumindo energia e eu penitenciei-me pelo descuido.
Depois
da eternidade, despertei rejuvenescido, o que faz sentido. Lavei a cara com
água fria, vesti roupa limpa, tomei um café de máquina e comi com ânimo uma
torrada barrada com manteiga dos Açores, porque considero esta a melhor
manteiga de todo o mundo, independentemente de ter tido na véspera experiências
místicas ou não, e de não conhecer todas as manteigas remotas ou próximas.
Saí
de seguida para a rua com a intenção de ir trabalhar.
Os
primeiros momentos foram normais. As ruas em si, o percurso por elas, as
pessoas distantes de se cruzarem connosco ou não, o bulir da cidade nas tintas
para se estão a bulir ou não, tudo igual, o mesmo de todos os dias, expectável.
Em determinado momento que não se especifica por que não estava de todo atento, baixa-me uma lucidez súbita, um pouco assustadora. Fico ali nu, isso sendo, a melhor imagem que me ocorre para ilustrar o momento. Nu e ensopado por uma enorme nostalgia, que se abate subitamente, uma saudade que me asfixia, que me impede a uma compostura conveniente de pessoa banal e anónima que vai normalmente a caminho do seu trabalho.
Em determinado momento que não se especifica por que não estava de todo atento, baixa-me uma lucidez súbita, um pouco assustadora. Fico ali nu, isso sendo, a melhor imagem que me ocorre para ilustrar o momento. Nu e ensopado por uma enorme nostalgia, que se abate subitamente, uma saudade que me asfixia, que me impede a uma compostura conveniente de pessoa banal e anónima que vai normalmente a caminho do seu trabalho.
Na
realidade não estou nu, é o exemplo que dou, é como me senti, se bem os
transeuntes possíveis de terem olhado para mim naquele momento, não terão visto
nada de estranho naquilo que eu sou enquanto corpo físico vestido com alguns cuidados.
Esse
vazio por preencher quer referir-se a que de repente me senti falho de eternidade,
com quem privei na véspera e fiquei de não me querer despegar mais dela. Senti-lhe
a ausência, voltando assim ao passado antes de ter tido essa experiência
noturna que poderei qualificar de mística.
Assim,
desprevenido, no meio da rua rodeado de pessoas, tento de novo canalizá-la. Dou o meu melhor, fecho os olhos e tudo. Nada.
Novo esforço. A insistência do ambiente quotidiano agravado pelo ruído
agressivo que o mesmo produz por ser um quotidiano numa cidade, anula o meu
esforço de canalização. E quando mais se tenta, mais nervoso, sabemos que é
assim.
Sou
obrigado a aceitar que o banal habitual me vai acompanhar na jornada, até
regressar, ao fim do dia, de novo, ao local onde acumulo os objectos domésticos
que constituem a minha pele. Chamo a esse local casa. Lar, na nossa intimidade.
Talvez aí, rodeado de todos os objectos que acumulam e conservam o meu
magnetismo individual, consiga, ao ouvir uma música, voltar ao convívio de mim
mesmo num estado mais subtil.
Experimentei
a eternidade e já não quero ser simplesmente humano. Não me refiro a ser
imortal. Isso é para os deuses. O seu buraco negro, sem tempo, nem espaço.
Eu
sou homem, o tempo e o espaço são as roupas que me visto para sair à rua. Não
tenho outras e quero-as. Mas também quero a eternidade, porque a experimentei, gostei
e cheguei à conclusão óbvia, não sei porque nunca a tinha concluído, que
suspendendo a cronologia e ausentando-me da medição do espaço que ocupo,
temporariamente hipnotizados os dois, consigo atingir a glorificação do meu
conseguimento.
Sinto-me
Deus, logo homem.
Comentários
Enviar um comentário