Limo as arestas, sempre a limar arestas, a profissão mais monótona que consegui ter. Aprendi sózinho, copiando outros, fui apurando os gestos e a disposição para eles seguirem as ordens da cabeça. No inicio errei bastante, normal. Com o tempo, anos, veio a experiência. Hoje sou bom no que faço. Muito bom.
Não me sobra tempo para
nada mais e ainda assim, há instantes em que se instala a dúvida, sem certeza que foram convenientemente limadas. Creio que é uma missão. Não fui obrigado. As condições criadas e totalmente alheias da minha vontade, expressa ou imaginada, levaram-me por esse caminho. Outros são carrascos, outros banqueiros, outros amantes competentíssimos. Há de tudo.
Quando me apercebi já era tarde para mudar, deixei-me ficar: melhor fazer alguma coisa do que nenhuma. Quanto à importância do que fazemos, para o mundo em geral, o que isso altera ou influi ou conta, já não sei. é um assunto que ultrapassa o meu entendimento. Só sei limar arestas.
Temos que
ser sérios a limar, como nas outras coisas que fazemos. Para tudo é preciso mestria, engenho também. Muita dedicação,
neste caso, dedicação a tempo inteiro. Uma vida nisto, de cabeça baixa,
totalmente concentrado: para a frente e para trás, no balanço certo e
suficiente da lima sobre a superfície imperfeita. Quantas esquinas terei amaciado? Quantas encruzilhadas arredondei? Quantos
passeios aplainei? Milhares certamente.
Para quê todo este esforço, se ficaram para trás, se passaram por mim sem deixarem história , bons momentos, só grandes cansaços. E suspiros. esses foram milhões.
Se levantasse neste instante os olhos, deixando os trabalhos por segundos,veria o
que ainda tenho para lixar, na minha frente. Trabalho que não se esgota, para sempre. Não vale a
pena olhar, é melhor não saber.
O que ficará por saber é a resposta da minha pergunta, a única que
tenho, a mais importante, a fundamental: será que vou conseguir limar todas as
arestas?
Comentários
Enviar um comentário