Com as juntas desgastadas e uma lubrificação
fisiológica já insuficiente, artroses dolorosas e circulação sanguínea
deficitária, a posição de lótus não é nada confortável.
O estado meditativo não se compadece com maleitas do corpo. É um bálsamo da Alma, mas
os seus efeitos físicos não estão ainda devidamente documentados pela medicina
baseada na evidência.
“Noblesse
oblige”, ofereça-se a carne ao esforço para ganhar a vida eterna.
O dia
desafia-se num corropio de actividades que tiram o peso do tempo e do espaço.
Cumpre-se o roteiro do despojamento.
Desquitada de
um cristianismo com cheiro a naftalina, deu por concluido o capitulo da profissão de fé,com
o enterro do amantíssimo esposo, vai para seis anos na campa 357-AB no
cemitério dos Prazeres, num local recatado.Nem sempre se tem essa sorte, dá gosto visitar e quem lá mora não se queixa de humidades, o torreão dá de caras com
o sol todo o santo dia.
O contacto fugaz com a presença absorvente do
Senhor, dá-se ao puxar o brilho do
crucifixo de estanho quando vai de visita à campa, visitas estas cada vez mais espaçadas. Mas mesmo quando dá lustro ao relicário
,a fé não atinge níveis terapêuticos. Apenas ténue impressão magnética,
talvez da fricção repetida, e pouco mais.
Sendo mulher sensata e precavida e como
as potestades andam por aí, ela deixa a porta entreaberta, não vá algum querer entrar.
O tempo passa, faz-se acompanhar de mais incertezas, e indo-se para velho
não se pode andar desprotegido de seres ubíquos, de objectos de
culto, de rituais, da parafernália que acompanha a espiritualidade, que
dá jeito em momentos de necessidade.
Após leituras compartilhadas com as amigas mais
chegadas, abriu os braços e o peito generoso
à Nova Era, a religião “light” dos tempos modernos.
Pequenas porções do divino, sem sal nem
condimentos, mas coloridas a gosto. Uma dieta da Alma que baixa os níveis de colesterol do abuso dos confessionários , das promessas cumpridas com sofrimento , das idas santuários mal frequentados dos cilícios que apertam as coxas - e maltratam- das banhas das religiões oficiais.
Não sendo mulher de meias tintas, quando se mete num assunto, leva a experiência ao limite, explora todas as fronteira da aventura.
Inchada de tempo, preencheu com actividades de enriquecimento
espirirtual os poros do dia.
Workshop
esotéricos, biodanza, regressões e
progressões, círculos de luz, cristais que custam os olhos da cara, sempre na
mala para que as boas energias a acompanhem. Tanta movimentação levou-a a um patamar
superior, mas finge que não em falsas modéstias, apesar do umbigo a trair
quando menos espera.
Desperta todos os dias pelas 7h00 , executa séries
de três respirações abdominais profundas, para centrar a mente e o corpo, e
veste-se com um mau gosto dificil de ir para pior.
Túnicas
floridas, mix de cores e venham mais,
calças incomodamente largas e sapatos
rasos, com sola de pneu de viatura motorizada, passados de tempo e contexto. Tivesse
mais unhas, contadas as das mãos e pés,
com mais cores as pintaria: catálogo Robialac do Merlin.
Às 8h00,
nos jardins da Gulbenkian: Tai-chi chuan.
Um chinês possivelmente mudo, nunca se lhe ouviu um
som, executa uma dança em câmara lenta, de costas para a audiência. Os alunos imitam
com a melhor das intenções, não se sabendo se o resultado é satisfatório, posto
que o mestrenão
corrige as posturas e os movimentos.
A sessão faz-se acompanhar pelo chilrear dos
passarinhos e pelo ruído dos carros, não completamente
abafado pelo arvoredo circundante.
Às 10h00 infusão de ervas medicinais, numa
conhecida casa de Campo de Ourique.
Houvesse
mais tempo para o ritual japonês do chá, mas a correria da cidade e a agenda
apertada , contentam-se com esse estabelecimento aprimorado.
Às 12h00
aula de Reiki, segundo nível. criada em 1922 pelo monge budista japonês Mikao
Usui. Energia vital universal "Ki"
manipulável através da imposição de mãos. Com esta técnica, os
praticantes canalizam o fluído universal restabelecendo o equilíbrio natural da mente,
da emoção e do corpo físico.
Quando o simpático mestre morreu acabaram-se as
boas intenções, e os discípulos mais
chegados, fundaram três escolas
diferentes.
A avidez do nosso olhar ser a verdade universal!
A avidez do nosso olhar ser a verdade universal!
Das 13h00 às15h00 refrigério e sesta retemperadora.
Acorda e entretêm-se uma boa meia hora com renda de
bilros, herança da falecida mãe, gente do Norte. A renda é boa para as articulações
da mão, ginástica para manter a funcionalidade
e saúde dos dedos. Também dá folga à mente.
16h00 aula de pintura de Mandalas na Associação Budista.
Um caucasiano europeu com um rosário na mão , de nome Mala – o rosário - balbucia uma ladainha indecifrável, meio
cantada meio falada e projecta numa parede branca figuras geométricas que
representam a dinâmica da relação entre o homem e o cosmo .
Os mandalas são utilizados para concentrarem a atenção, afastar as distrações dos aspirantes e
adeptos, são uma ferramenta que ajuda a abrir o espaço do sagrado, Ajudam na meditação e induzem ao transe que é um estado difícil
de explicar.
Os participantes da sessão escolhem do cardápio uma
figura e projectam-na numa folha de papel
de cenário onde traçam os contornos a
lápis. Preenchem minuciosamente os espaços com cores, embalados na doce
recitação de um mantra tibetano, que sendo em sânscrito não se entende, mas que produz na mente o efeito
libertador do abandono do "eu", seja o que isso for mas que soa bem.
O workshop
vai ocupá-los durante um mês. Até ao fim do ano já se inscreveu na “meditação
dos corações gémeos”, no“ sistema de cura do corpo espelho” e no “trabalho transpessoal das mulheres que
correm com os lobos”. Este, particularmente, estimula-a bastante. Depois
de ter visto a saga do “Crepúsculo”, fascinou-se
pelos lobisomens, que afinal em condições normais, parecem bons rapazes. Quando se tranfiguram ficam menos simpáticos.
Haverá ainda para encerrar a temporada, uma sessão especial
para praticantes avançados de técnicas de visualização do lamaísmo Bon, onde espera ela com alguma inquietude, aprender a domar os demónios que invadem a
mente, transformando-a num reflexo do Nada. Com esta aprendizagem final, conta poder aquietar-se definitivamente.
Quase se esgotou o dia e a Maria do Carmo sente-se cada vez mais ausente de peso, o que para uma
mulher seja de que idade for é a maior das bençãos.
18h00 Num conhecido restaurante vegetariano da
cidade onde no andar de cima, há um pequeno templo budista
tibetano,
Meditação para ocidentais. Vinte euros por mês,
duas vezes por semana. Cada seis meses sobe-se de nível. Podemos ser lamas
tibetanos em três anos.
A sala está em penumbra a boa insonorização do
prédio impede que os sons dos talheres dos clientes que trincham os bifes de
seitan criem interferências sonoras no processo de tranquilização da mente.
Nas paredes pintadas de cor de vinho, máscaras medonhas
, pinturas com caretos e figuras de arrepiar cabelo, emparelham com personagens anafados e rechonchudos
sentados em mantos de flores de lótus .
Um fumo branco de cheiro intenso adocicado e agro,
desprende-se em espiral de um incensório de madeira finamente trabalhada.
Existe um altar. Todas as religiões têm um altar.
Num dos cantos, quase esquecido,um homem envolto
numa manta cor de tijolo, olhos
semi-cerrados, pousa a mão ao de leve
nas cabeças dos alunos, que as trazem juntas em sinal de prece reverência.
Os que podem, sentam-se na posição de lótus, os
outros trazem almofadas e conforme as autorizados do esqueleto acomodam-se.
Tranquilizados os ruídos, executam-se algumas
respirações profundas para acalmar a
mente. Instala-se o silêncio, o monge recita os mangras e esse estado de quase anestesia a juntar
à inalação dos fumos do incenso , transporta-os para um local diferente Há até quem afirme já
ter visto alguns adeptos a flutuar no
ar. Não importa que seja muito , qualquer milímetro conta.
O dia chegou ao fim.
De volta a casa com tempo para acender uma vela de cinquenta cêntimos a Nossa Senhora, na Igreja da Misericórdia.
Não vá o Diabo tecê-las!
Pela frente mais uma infindável noite de insónia. Queiram
os seus novos deuses e energias que passe rápida que ela ainda não se habituou
a dormir sózinha naquela cama enorme com lençóis de flanela estampados. Já se
esqueceu de ter os pés quentes.
Os tibetanos quando morrem são esquartejados e deixam os seus restos expostos às aves necrófagas.
“Isso
é que já não sei se gosto. Prefiro o aconchego de uma urna almofada e forrada
de cetim. Uma pessoa fica mais recatada”.
A Maria do Carmo deixou-se ficar na escuridão do
quarto a marinar nesta decisão futura.
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