Depois
da reforma, na antecâmara do tempo que prepara a saída de palco, muitos sonhos
esperam com as senhas na mão, a sua vez para serem atendidos a tempo. Uma noite
de sono, nove horas bem medidas, não são suficientes no balcão de atendimento
para satisfazer todas as expectativas dos que aguardam a oportunidade de serem
projectados em technicolor no
animatógrafo pessoal.
Este
acervo de trabalho inesperado, pede empenho suplementar, horas extraordinárias
na cama, é difícil contrariar um horário exigente e ordenar à mente que
desperte o corpo.
Até as
micções frequentes, se sentem prejudicadas: levantar-se para ir à casa de
banho, é desperdiçar tempo útil. Desafiando a virilidade, de pouco uso para quem está casado há
cinquenta anos, optou pelas fraldas, seja o caso de uma incontinência mais
premente. Ninguém sabe, não é pois uma fragilidade maior.
Com
papos nas pálpebras descaídas, poisa os
pés no chão num tapete gasto, não se lembra de outro, à beira da cama que lhe
deu filhos, prazeres, dores e muitas horas a olhar para o vazio que preenche a
trevas das noites.
Inicia
as rotinas do despertar: passar as mãos gastas do uso nos cabelos ralos que
descompõem uma cabeça cheia de crateras capilares, alopecia, diz-se; bocejar
porque tem de ser; esfregar com pouca convicção os olhos pequenos
descaradamente míopes, reposicionar os óculos de massa, voltar a ver
decentemente; pôr-se de pé, no seu metro e meio, rumo à casa de banho, primeiro
objectivo do dia.
Aí,
mais dormente do que adormecido, executa o exercício diário de vinte minutos
sentado numa bicicleta enferrujada pelas humidades normais destes locais e
porque também já se encontra aí estacionada desde sempre. Enquanto pedala
desmotivado, porque não vai chegar a lado nenhum, pendura os olhos nos azulejos
de cor indefinida e mau gosto. A estética ou a sua falta não lhe altera os
humores.
Alivia-se
prolongadamente.
Faz a
lide do corpo pelos processos tradicionais: para a cara, pincel, espuma, lâmina
num cabo de osso ; para a restante área corporal um duche rápido para poupar nas contas; ajeita a
camisola interior de alças por dentro das trusses igualmente brancas, que só se
mudam dia sim dia não. Olha para o espelho, não se acha nada de especial:
continua idêntico a ontem e espera ter a mesma opinião no dia seguinte.
Com
esta constatação, esfrega as mãos com colónia Ach Brito e esbofeteia-se, o que
é um exagero para dizer que perfuma o rosto recém escanhoado.
Regressa
ao quarto.
Vai ser
uma camisa extravagante comprada em viagens pelo mundo, nas excursões
geriátricas que pagam para andarem duas semanas a mudar de avião, autocarros, comerem comidas disfarçadas de exóticas, dormirem em quartos minúsculos em hotéis periféricos,
com vistas para nada, assistirem até à náusea
a sessões apressadas do folclore local, nos “lobby”.
Viajou
por tantos destinos sem se dar conta.
É certo
que as cores não conjugam mas esse é o critério da escolha, a sua imagem de
marca. Toilete concluída, do conjunto fica a impressão de uma desarmonia
intencional.
Na
cozinha pousa os braços na mesa de fórmica, forçando-se a comer um iogurte
natural e uma carcaça, sem conteúdos. Raramente toma café, apesar de apreciar
os seus aromas subtis.
Sai de
casa, faça chuva, faça sol, e pouca variação mais porque o clima é temperado.
Como é para o friorento, agasalha-se em demasia.
Dirige-se,
nem depressa nem devagar, ao quiosque que dista uns trezentos metros bem
medidos, na esquina da rua principal. Detêm-se eventualmente para cumprimentos
e interlúdios de circunstância: coisas habituais, sobre o tempo, as politiquices
do momento, os trabalhos que os filhos já pais de filhos continuam a dar...
Em
notas de descrição geográfica, a localidade onde habita é uma pequena cidade
dormitório, paredes meias com os limites da capital, mas sem fronteiras ou espaços
de fracturas reconhecíveis, tudo igual. Tem um nome desinteressante de origem
árabe, é um dormitório de velhos e emigrantes de segunda geração.
Todos
os dias compra o mesmo jornal, um matutino respeitado que se mantém mais ou menos sério – assim o
deixem os interesses – apesar do jornalismo já não ser como era antes, desabafo recorrente que os velhos usam para se
referirem ao presente: “no meu tempo é que…”
As
opções não são muitas: caminhar sem rumo, passear o cão, jogar às cartas,
sentar-se num banco de jardim e ler o jornal, ou remoer as agruras da vida, uma
modalidade que ele pratica assiduamente.
Opta
pela leitura do jornal. Indo-se para velho, as pequenas rotinas dão mais
segurança e conforto e o jornal continua a ser a sua ligação directa com a
realidade. Não gosta de ouvir ou ver as notícias. Notícia é palavra, e esta
lê-se.
Em
jovem transportava-as debaixo do braço, acabadas de chegar, aos senhores
cavernosos e taciturnos do lápis azul. O seu amor pelos jornais é um caso
sério. Nesse tempo desconhecia as maldades que esses senhores infligiam às
palavras que construíam as ideias, só mais tarde compreendeu.
Soubesse
isso e nunca as teria servido de bandeja à voracidade dos vermes.
Sempre
com ele debaixo do braço- com as palavras agora mais leves e soltas porque não
foram encarreiradas como alguém quis - postura tão banal que nem devia ser
referida, continua caminho, peregrinação
diária, absorto em pensamentos ou na falta deles.
Quem
entra no jardim pelo lado oriental, ou seja quem está virado de frente para o
rio, do lado esquerdo, é o décimo quarto banco. Identifica-se pelos dois
corações esculpidos, obra de canivete, que penetram um no outro com dois nomes
escritos, que não se revelam mantendo a privacidade dos amantes.
O banco
está pintado de verde como os outros. Goza de uma boa orientação, virado a Sul,
permitindo aos utilizadores, acompanhar o trajecto do Sol no seu apogeu diário.
Um plátano majestático, facilita sombra em dias de calor, mas há quem diga que
não é uma árvore saudável para os alérgicos.
O
jardim, não se pode dizer que seja dos mais frequentados, teve melhores dias.
Não havendo dinheiro para lavar a cara das casas e remendar ruas, como há de haver para regar plantas?
Ele
toma posse do seu banco, encostando-se à esquerda para quem olha de frente,
cruza as pernas, a direita por cima da outra, respira fundo e observa
atentamente o espaço circundante, certificando-se que tudo está igual à
véspera.
Endireita
o jornal, como se este tivesse aquele pau imaginário que se usava nos cafés do antigamente,
e deita o olhar na primeira e na última página. A partir daí, segue do fim para
o princípio: anúncios, temas triviais, social, programas de televisão,
desporto, cultura – pouca-
aproximando-se das coisas que pedem mais fôlego: as economias, as
políticas caseiras e as de fora.
Nos dias
em que o recheio pede uma degustação mais apurada, leva aproximadamente uma
hora na tarefa de ler.
Ao
terminar, segue em passo acelerado para o urinol publico. Durante o dia não usa
fralda, que incomoda os movimentos. Detêm-se o tempo necessário e suficiente ao
esvaziamento, com cuidados para não escapar nenhuma gotícula. Abana convenientemente.
Segundo
capítulo: de volta ao banco, senta-se no mesmo canto, mas desta vez não cruza
as pernas. Saca do bolso da camisa uma esferográfica Parker com banho de ouro, oferecida pelos colegas no jantar de
jubilação. A caneta tem o seu nome impresso, e uma data que identifica o dia em
que ele deixou de ser útil e passou à
categoria descartável.
Sublinha
detalhadamente alguns títulos, excertos de frases, frases inteiras e vai
salpicando o jornal com pontos de exclamação e de interrogação, que na
pontuação em geral, são os sinais pelos quais nutre mais afeição.
Aproveitando
os espaços livres de letras: as laterais, as fotografias, qualquer superfície
onde se possa escrever, rescreve os artigos, deita opinião, critíca, desencanta
na memória, já baralhada, exemplos do passado e sustentabilidade intelectual para
os seus argumentos.
Haja
dignidade, conceito vago que muito preza e de que não desiste.
Mais
uma hora nestes trabalhos. A manhã está quase.
Dando-se
por satisfeito, tira do bolso das calças
um sobrescrito dobrado e um pouco amarrotado , alisando-o cuidadosamente. Mais
cinco a dez minutos nisto. O sobrescrito vem com um selo, apenso na véspera e o
destinatário está escrito numa caligrafia que já não se aprende nas
escolas. Endereçado ao Conselho de
Redação do jornal.
Com uma
pequena tesoura de um canivete multifunções recorta e retalha os conteúdos da
sua análise, e depois de os colocar no envelope, certifica-se que este está
devidamente selado.
Levanta-se
devagar, depois de estar muito tempo sentado pode ter tonturas. Limpa o banco
com o lenço de assoar, e afasta-se olhando uma ou duas vezes para trás, em jeito de
despedida, que pode ser definitiva a qualquer momento.
A
caminho do restaurante, na Baixa - num eléctrico amarelo que demora aproximadamente
quarenta minutos até ao destino- deposita a carta num poste vermelho com uma
ranhura, resquícios de mobiliário urbano em praticamente extinto. Podia fazê-lo
num posto dos correios, mas como todos os velhos, há coisas de que já não se
abdica, e o poste é uma delas. Fiel a princípios.
A mesa
do restaurante, que é sempre a mesma há anos, tem cada vez menos comensais,
está a ficar desconfortavelmente vazia. Vão-se subtraindo cadeiras para
disfarçar, mas o espaço não preenchido dos corpos que faltam à chamada, não se
desocupa tão facilmente dos olhares presentes.
...
Nos
primeiros anos ninguém lhe deu atenção. Os jornais não ligam a anónimos, muito
menos excêntricos. Ninguém liga a anónimos e é por isso mesmo que eles o são.
Não é vontade própria.
Quem
abre a correspondência do chefe, não gosta do trabalho que faz. Gostaria que a
sua cara e o seu nome aparecessem, um dia, num editorial em primeira página.
Abrir cartas é um longo caminho para a fama.
Com um
estagiário destes há uma razoável probabilidade estatística de que as suas
cartas tenham sido enviadas directamente para
arquivo morto todos estes anos.
“Velho (não sabe se é velho ou
não) louco que não tem mais nada que fazer senão incomodar quem trabalha. Tanta
noticia importante para dar ao mundo! Porque é que não se entretêm com a bisca
em vez de me vir chatear a molécula!”
Lixo.
Mas
esta história não é recente, tem muitos anos de banco de jardim, de caneta, de tesoura
e de selos dos correios e os estagiários não são eternos, vão e veem.
Por
alguma razão misteriosa que se desconhece, visto não se saber o que se passa
nas redacções dos jornais, alguém começou a resgatar as cartas do lixo e as começou
a ler. As missivas iniciaram desta forma a sua passagem de mão em mão,
alimentaram curiosidades, atearam o fogo da imaginação: quem será este
personagem que assina como “Leitor atento” no remetente das cartas ?
Que
homem é este que não espera respostas, sinais de simpatia ou antipatia, que
nunca virá a saber que foi lido, porque nunca escreveu o nome da sua rua, o
número e o andar do prédio onde descansa os sapatos? Porque se dedica tão
fielmente a emendar textos, assinalar erros, imprecisões, a desafiar com
conselhos de emenda a noticia mal escrita, coxa de fundamento, insonsa de
ingredientes?
Vinte
anos de desassossego. Descontando fins de semana, para descanso e convívios, um
ou outro dia de baixa por doença, enviou pelo menos cinco mil cento e quarenta
cartas de que não guardou uma única cópia. Ninguém sabe o que ele escreveu, nem
ele.
Quando
chega a casa ao fim de um dia que nunca mais se esgota, ainda não morreu e o
tempo já lhe parece uma eternidade, come uma sopa de feijão e vai para a cama.
Pega no
trabalho dos sonhos, lavra de grandes responsabilidades, toda a atenção ,
não escape uma cena fundamental ao entendimento
no desenrolar das histórias bizarras projectadas no seu écran virtual.
Num
filme em reprise, apreciado pelo único espectador que é ao mesmo tempo o
projectista , um menino corre ofegantemente com uma pasta de cabedal debaixo do
braço. Procura a sala certa num corredor soturno. Deposita a medo o conteúdo da
pasta numa mesa de repartição pública onde um homem com cheiro a naftalina, com
um lápis enorme, amesquinha as notícias do dia.
Foi
assim, na violação das palavras, que o Américo se tomou de amores por elas.
As
vezes quando a meio da noite faz um intervalo, pensa que ainda
vai a tempo de as juntar sem equívocos. Se calhar tudo isto não passa de uma
alucinação nos intervalos da insónia.
Em todo
o caso, o banco do jardim existe, e ele cruza as pernas, a direita por cima da
outra com o jornal nas mãos.
Faz
grandes maratonas na cabeça. Quilómetros e quilómetros.
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