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Está um grande dia.

Só porque sim e sinto-me supimpa.
Quero lá saber se o  sol cria cores extravagantes no céu, se o tempo fica quedo , dado a nostalgias parvas, se a brisa outonal se aquieta – só para mim porque não gosto de ventos - ou o calor está a ser  simpático para esta altura do ano.
Tenho esplêndidos polos  com um animal verde colado ao peito  e camisolas de caxemira, que  põem o clima na linha, tal como eu quero. Não vou em sentimentalismos de se ficar a olhar para a paisagem.

Fui banqueiro e por isso posso tudo!

Está uma grande manhã porque tenho um magnífico chapéu panamá que protege os meus pelos ralos e lindos, abrilhantados e alinhados com todos os cuidados no sentido certo, por um pente de marfim, que são os melhores para pentear o cabelo, e porque estou a bebericar uma flute de champanhe francês que desconheço a marca – quero lá saber! - mas é o melhor porque posso e mando e é tão bom que me deixa neste estado de grande felicidade.

O panamá e o champanhe são mais que suficientes para decidir se este é ou não é um excelente dia!

Sinto-me glorioso, como de resto sempre fui.  E se o chapéu vier a incomodar o meu bem estar absoluto,sou muito bem capaz de comprar um grande início de dia só para mim e um chapéu ainda melhor.

Os meus dias correm sempre bem. Sou eterno.

Bem cedo tomei um bom pequeno  almoço – podia ser melhor se tivessem os meus cereais preferidos, já não se encontram  em lado nenhum, mas se eles fossem profissionais mesmo assim tinham os cereais que eu gosto – neste hotel de todas as estrelas.

Apesar do contratempo –tratei suficientemente mal um dos empregados, o que me pôs de novo bem disposto -  reparei numa senhora, composta e de ares sérios, que estava sentada numa mesa adjacente à minha a tomar chá. Não sei se é da minha vista, mas ela pareceu ter olhado para mim. Indaguei a um dos criados se era cliente habitual do hotel. Não a conheciam, mas mandei – posso tudo o que quero -  entregar uma nota, convidando-a a visitar os meus aposentos, após o almoço.

Esta senhora apessoada ,  diria soberba,  recolheu no  seio o meu bilhete, dobrado e redobrado  e confirmou-me, num subtilissímo e quase imperceptível movimento de olhos, aceitar o convite.

Que dia tão agradável. Hoje devo comer pouco ao almoço.

Passei o resto da manhã junto da piscina, entretido com um charuto. Se a minha governanta me visse ficava muito zangada – por essa mulher faço tudo - mas enviei-a de volta a Lisboa num arrufo que me deu.

O charuto soube-me bem, mas está um calor dos diabos, e os miúdos andam como histéricos a atirarem-se para a piscina. Este hotel é tão bom , mas os miúdos chiam que se farta. Maçada! Se me apetecer, mando-os calar a todos e compro a piscina, mas hoje não estou para me chatear.

Devo receber condignamente tão distinta senhora, tão simpática e educada e a forma recatada como recolheu no seu seio o meu bilhete, causou-me muito boa impressão. Fiquei com a sensação de poder confiar nas suas boas intenções e isto pede uma preparação adequada do pormenor.

Afinal não vou almoçar.

Regresso ao quarto da suite habitual, tomo um banho com toda a dose de sais de uma marca francesa que encontrei , deixo-me ficar a marinar.

Liguei a música ambiente mas o raio da pilha do meu aparelho auditivo ou está a falhar ou então é o aparelho que está a ficar velho. Já nem os alemães fazem as coisas como deve ser!  Não oiço música nenhuma.

Saio do banho envolto num esplêndido roupão branco com o monograma do Hotel e estendo-me na cama king size, tão grande que me obriga a rodar uma volta de corpo inteiro para apanhar o comando do televisor Bang & Olufsen.

Já estou a gozar por antecipação.

 Vem-me agora à cabeça, que não sei se algumas coisas em mim ainda funcionam convenientemente . Não me lembro. A última vez já não sei se foi hà meses ou anos. Tenho uma ideia vaga de uma rapariga bastante simpática - creio tê-la conhecido no casino-  que depois me acompanhou a casa. Sinceramente, já não sei o que aconteceu . Se a minha amantíssima governanta desconfiasse disto!

Que horas são? Aproxima-se o meio-dia.

Tenho  algum tempo . Ao fim de três tentativas, levanto-me – estou mesmo em boa forma! – e opto por um copo de vinho branco francês. Volto para a cama e ligo a televisão: para relaxar.

Por acaso, o meu dedo – às vezes não é nada fácil que acerte no sítio certo, torna-se rebelde,  sempre a saltar de um lado para o outro. É coisa que me irrita - escolheu um canal  bastante interessante. Não sei  se é uma série, daquelas em episódios que nos obrigam a ver desde o primeiro para perceber o fio da meada.

A cena  passa-se numa mansão quase tão grande como a minha. Sou mesmo rico! O proprietário – vê-se  que tem pedigree, pelos ares que se põe - deambula com um roupão de seda e  a cada novo corredor, abre-se uma porta e uma lindíssima rapariga,  desnuda como veio ao mundo, só com uma espécie de antenas parabólicas pretas na cabeça, vem cumprimentar o senhor num abraço muito acolhedor.

Os actores são bons, está muito bem representado.

Vou-me deixando ficar distendido, deixei a porta da suite entreaberta, ela chega a qualquer momento.

Tenho frio.

Que barulho é este? Oiço vozes por um canudo.Porque estão a gritar e não percebo nada do que dizem?

Porque estou nu em cima da cama?  De óculos postos?

Durmo habitualmente com umas cuecas confortáveis  e não as tenho comigo. Às vezes parece que enchem , é como se tivesse um saco de àgua quente enfiado nas pernas. Gosto delas.

 Porque é que a minha governanta não me vestiu o pijama, não arrumou convenientemente o meu fato ? tudo espalhado pelo chão....nem a televisão desligou.  Estão a vender panelas de pressão.

Tenho que ir à casa de banho. A porta do quarto está aberta? Que raio!

Onde está aquele relógio tão bom, para eu ver a horas? A minha governanta deve-o ter levado, juntamente com a minha carteira, ando sempre a perder coisas! Na volta da sanita, ponho o blazer nas costas de uma cadeira. Onde raio anda a minha carteira?

Vou pedir na recepção uma limusine , para ir para casa.

Penso que vivo em Lisboa, isto aqui é Lisboa?

Quero lá saber, se me apetecer compro uma cidade inteira e dou-lhe o nome que muito bem me apetecer. Não puxem por mim que até compro todo um país!

Sou um grande banqueiro, tenho oitenta anos e a minha forma está no ponto.


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