Quando se vai
para velho, dorme-se menos e já que mais
tarde ou mais cedo vai ser uma eternidade seria sensato aproveitar a vigília. Mas isto é um contrasenso já que quando se vai
para velho, o tempo em si, custa uma eternidade a passar.
Os minutos levam uma eternidade a dar a volta à hora, muito mais que sessenta.
Com a companhia da solidão cada um amanha-se como pode, a
única e derradeira companheira que não fenece antes de nós. De
braço dado, leva-nos até à última porta, solenemente revestida do seu papel de meretriz.
Maria da Dores, acordou numa grande excitação. Tem 73 anos, pelo que a excitação advém de uma ânsia especial por algo que vai acontecer, presumindo-se que com essa idade, não será uma questão hormonal.
Todas as primeiras
quintas-feiras do mês, fins de tarde, reúne-se a tertúlia das letras.
Grupo reduzido, pessoas avançadas, faltam jovens.
Maria da
Dores dorme habitualmente mal e toma depois
de um jantar frugal, resumido a uma sopa
anémica,u ma dose apreciável de Xanax. A valeriana há muito tempo que não
vai lá.
Até que o comprimido faça permita um sono com efeitos saltitantes, agora
durmo, agora parece que não, faz a contabilidade da vida, para ter a
escrita em dia.
Mesmo assim
o efeito é retardado, adormece ao raiar da manhã, e fica achatada na cama como
um linguado inerte, já que não é habitual ter compromissos inadiáveis a horas
tão matutinas.
Por volta
das onze da manhã consegue ouvir decentemente as noticias de um pequeno
radio-relógio despertador com uma luz estridente com números que até com
cataratas se veem. Está pousado na mesa de cabeceira , onde também se
encontram estacionados um copo de agua, tapado por um pequeno pano de renda circular – arqueologias do
passado-, livros do momento e um candeeiro com um elaborado abajour de seda
mesmo na fronteira do piroso, dependendo da perspectiva.
É
friorenta e não tem quem a aqueça. Vai para a cama com meias de feltro, e tirá-las para calçar os
chinelos de quarto, que trouxe de um hotel numas férias
longínquas na Isla Cristina em Ayamonte, é o primeiro exercício da manhã.
Hoje a Maria
das Dores desperta cheia de energia.
Um gato
compõe a cena. As pessoas espirituais preferem os gatos.
Enquanto agua do chá anda à procura do ponto de ebulição, põe um disco a rodar numa aparelhagem do seu tempo,. Qual foi o seu tempo? Uma efeméride de plenitude arrumada na
memória poeirenta de quem já viveu muitos anos.
A aparelhagem
é uma relíquia com valor de mercado nos sites de leilões, mas vai ficar ao
critério dos filhos quando um dia vierem inventariar os móveis e dividirem-se
entre si pelo que cada um mais deseja. Junta-se uma história e ninguém nos fica com ela, só lhes interessam os objectos.
Gosta dos
românticos, pelo que se serve todos os dias de uma dose generosa de Chopin.
Como o
efeito do comprimido ainda se faz sentir, ainda momentaneamente zonza, fica-se por
casa, desentretida nas pequenas lides do lar, sempre infindáveis.
Leu algures
numa revista que os ingleses tinham mais prazer numa casa arrumada e a cheirar a
limpo do que na actividade sexual regular,
o que a reconfortou bastante, apesar de já ter uma ideia distanciada sobre o
assunto.
Uma pessoa
que vive acompanhada de si mesma, poupa-se nos gestos e nos hábitos: tem seis cadeiras
de palhinha, mas senta-se sempre na mesa. Repete igual princípio com os
sofás, o lado certo da cama, o copo, o prato, a toalha de banho. Nesta fase da
vida escolheu de uma vez por todas os objectos mais íntimos, e não perde nem
mais um segundo a olhar para os outros. Constam do acervo museológico da inutilidade nada
mais.
Depois de
passar o pano do pó e pouco mais, no bric-a-brac
da vida, o dia chega a meio. A tarde vai se alentejanar, a noite então, anda para trás.
Maria das
Dores frequenta o mercado biológico porque tem dinheiro para isso e está convencida
que os produtos orgânicos lhe garantem mais um par de anos .
Convencimento encorajador já que de si o tempo custa tanto a passar , com os produtos biológicos vai custar na mesma, mas de uma
forma muito mais saudável.
Prepara para
ao almoço uma mistura de legumes, que em sobrando, se repete ao jantar,. Quanto à sopa alterna-se na ementa,dia sim outro não.
As carnes entopem
as veias, pelo que foram banidas, desde que o Coronel morreu, esse sim um
carnívoro de primeira. No entanto, há dias em que a recordação de um de belo um
cozido à portuguesa, desperta alguma palpitação.
Duas ou três
vezes por ano permite-se ao desvario de uma dose de cabrito assado com arroz de miudezas e grelos,
depois das caminhadas com as amigas, na
serra de Sintra.
Nesta
quinta-feira, o grupo vai assistir a um painel de convidados especiais que vêem
falar sobre os escritores malditos, e sendo um tema estimulante, fica esclarecida a excitação da Maria.
Estudou
aturadamente o assunto, e preparou-se : a designação nasce com os românticos franceses, Paul Verlaine, como
título de artigos publicados no Boletim Lutèce, para nomear o seu amante
Rimbaud, a quem chegou a dar um tiro, onde nos leva o amor e a loucura.
A partir daí
foi um ver se te avias a nomear de maldito tudo quanto escreve, pinta ou faz
música.
Leva as notas e apontamentos, num caderno moleskine,
no caso de fazerem falta.
A meio da
tarde vai à Neide arranjar as unhas e dar um toque no cabelo. Desta vez sai
laranja, que é verão e este ano está na moda.
Às sete horas
em ponto, entra na livraria no Chiado e escolhe um lugar na primeira fila.
Os horários
nunca são cumpridos, não importa, deixa tempo a que os seus olhos
procurem as amigas retardadas e se troquem comentários de cisrunstância.
Do painel do
dia consta uma jornalista com cara séria,de se dar ao respeito, que atira perguntas como isco aos peixes.
Três
peroradores aconchegam-se com prurido em sofás de orelhas antigos - relíquias perdidas no armazém da livraria, recuperados para a função. Uma
Crítica literária, um Sociólogo e o Filho de um escritor maldito, entretanto
falecido, compõem o ramalhete.
A Crítica ,
mordaz e ácida, enumera de uma lista do Ipad poisado no colo , os vícios dos malditos com as drogas, o alcool e os excessos na
vida. E fá-lo com uma expressão rubicunda, não seja
a vermelhidão prenúncio de apoplexia eminente.
O grupo da
Maria das Dores, entrado em anos mais muito energético, vai acenando com a
cabeça e validando numa frenética sem contenções, as valiosas informações da
crítica.
Sim senhor,
o Bukowsky era alcoólico. Está certo, o mesmo vício para o Hemingway.
Senhor que se segue…
Senhor que se segue…
Cocainómanos,
heroínomanos, os mistos, e sempre que a crítica enuncia um nome do panteão,
o coro exprime-se em sururu numa surdina intelectual, corroborando o elevado
conhecimento e excelso coturno da mestra.
O sociológo
escreveu um livro sobre o tema, e fala de cátedra, o que o reconforta bastante,
já que só ouve a sua própria voz.Tendo conhecido em vida o pai do filho que se sentava à sua esquerda, era o único na sala que, se saiba, que tinha convivido directamente com essa espécie, o que lhe deu ascendente na audiência.
Quando algum
dos companheiros ensaia uma opinião, ele interrompe e leva-os ao tapete. Exprime-se mesmo bem.
O filho do
maldito está quase sempre calado e aceita, nem sabe porque o convidaram: ser-se
filho não habilita a nada.
A Crítica , porque tem muita prática nestas
tertúlias e sentindo a audiência em suspenso, ainda presumiu de o ofuscar- o do livro - mas o raio do
académico é irredutível e sendo assim ela numa última estratégia, opta pelo beicinho e amua.
A audiência está
a gostar, ninguém interioriza discursos de olhos fechados .
A moderadora
pergunta ao filho que significado teve para ele ter sido filho de um artista maldito. Boa pergunta,
esta de se ser filho dos pais que saiam nos bingos do céus.
Ele, criado despudoradamente na omissão de pai, referiu educadamente não ter sido agradável ser agredido com uma faca pelo
progenitor, independentemente da sua genialidade enquanto artista.
A conversa
ficou por aí.
Acabou a
sessão e ficou por dizer que a maldição do artista, de todos, é que a obra
imaginada é sempre maior que a possibilidade da sua criação. Por isso somos seres mancos, incapazes da perfeição: é a inquietação suprema do homem. Mas isto são outras reflexões.
As pessoas vão
saindo e já se arrumam as cadeiras, quando a Maria se aproxima do grupo
reduzido dos discursantes que são massajados nos egos pela sua corte de
seguidores. Não vai perder uma oportunidade para redimir-se de argumentos com
esta gente da cultura.
O dia fez-se
longo, já não há romenos nas esquinas a pedir dinheiro, os transeuntes escasseiam, caminha-se agora tranquilamente.
Chega a casa
por volta das nove. Toma o comprimido. Aquece as sobras no micro-ondas e estende-se no sofá, para ver a
novela da noite.
É o seu momento
do dia, de repouso entenda-se.
Com as pernas
esticadas sobre duas almofadas com flores estampadas vermelho vivo espera que
a circulação sanguínea normalize e lhe devolva
as pernas . Dormita.
Acorda ao
som das televendas e arrasta-se para a cama. Recomeço do lento pingar dos
minutos que consomem uma noite.
Comentários
Enviar um comentário