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O PRIMEIRO FOLEGO

  Leio um livro de Maria Zambrano, “ Clareiras do Bosque ”, uma mulher que irradia um pensamento denso, místico, que flui nos rios profundos e submersos da terra, num caudal de remoinhos e velocidade vertiginosa. Uma escrita também poética, e sou levado a acreditar – talvez por sugestão -, que tenho impressa em mim, a memória que recorda o instante do meu primeiro respirar, o momento que inicia a vida, que a torna a seguir irreversível. A explosão violenta e obrigatória, assustadora, acompanhando esse ímpeto, vindo do absolutamente escuro, para a agressividade de uma luz que encadeia, demasiada, insustentável. E aí, nesse ponto da ainda ainda não história, acontece um episódio fugaz, antes da primeira inspiração e da ânsia de não se conseguir expandir os pulmões. Uma projecção incontrolável de um acto, numa cena estática no tempo, que ainda não está a contar. Uma cena só nossa, num hiato de vazio. Nesse esgar, a possibilidade de futuro, está suspensa no vir a acontecer. E desse vácuo

Recordações de Sintra

    O príncipe, D. Fernando de Saxe-Coburgo-Gota, alheado do miasma humano que invade a entrada do palácio, cenário de uma invasão bárbara, pinta uma aguarela, uma vista com mar ao fundo. Enviuvou da rainha portuguesa, e casou com a cantora de ópera Helise Hensler, agora condessa d’Elba, que vive num belo chalet  de campo no bosque místico do palácio da Pena. Francis Cook, colecionador de Arte e mecenas, tomou-se de amores pela serra e construiu um palácio excêntrico (Monserrate), rodeado por um magnífico jardim com espécies de todo o mundo, uma pequena arca de Noé vegetal. Francis Bacon, o poeta romântico, numa visita anterior, sentou-se numa cadeira de jardim, nas ruínas que antecederam a nova construção, deliciado, e assistiu à quietude de um final de dia, na serra de Sintra. Quem sabe se flanando na sua cabeça, imaginações de poesias futuras, ele, um dos príncipes do romantismo. De outros palácios não se fala, que são muitos. Um monge, talvez frei Honório, que se diz ter v

O Caminhante

Recorta-se a figura do senhor Sommer, caminhando de manhã à noite, pelos sendeiros que marcam os limites de uma aldeia no remoto norte da Suécia. O Senhor Sommer passou a vida em movimento, até ao último dos dias em que visto visto, pois desapareceu completamente e nunca mais se lhe deu conta, e as pessoas - como é assim -, nos primeiros dias deram pela sua falta, e depois, com o pousar do tempo, esqueceram-no. Este homem, que deambulava com um rumo que parecia estar automaticamente inscrito na sua cabeça e decisão, existiu como personagem principal de uma história de ficção, um livro. Inventado, portanto, ou não, se concordarmos que as ficções também podem ser reais e se acreditarmos nas outras faces de mundos paralelos. Não se sabe nem desconfia, porque consumia ele todas as suas energias e empenho, executando esse movimento monótono de pôr um pé em frente do outro. Há quem diga que com essa monotonia se combate o tédio, o mais desaproveitado dos vazios. Outros e famosos, fil

SOBRE O CADERNO DE ABRIL E OUTRAS COISAS

Vej o silêncio na rua de casas brancas todas iguais Um homem, de semblante servil, alinha garrafas de vidro com leite, ao lado das portas. A melodia elementar de um amolador estilhaça o silêncio. Pode ser domingo Ao fundo da rua, um muro alto separa duas escolas primárias Os sons de um lado e do outro não se misturam nem materializam. As meninas, os meninos, dois mundos paralelos e separados. O encontro acontece na rua, depois das aulas, ainda assim cada grupo com as suas brincadeiras. Os rapazes mais acriançados, atiram bolas para as meninas, e elas com risinhos nervosos, mal fingindo que não gostam desse jogo do eclodir da puberdade Foi antes. Um passeio num carro eléctrico amarelo, com o seu bivaque de militar na cabeça, a sobrar-me no tamanho. Sempre gostei de fardas. E gostei dele, homem com cara de anjo, Sem tempo na ampulheta do tempo para nos gostarmos mais. Fascina-me o objecto estranho do revisor para picar os bilhetes. Fascina-me tudo no revisor.

CADERNO DE ABRIL - Canções Revisitadas - lançamento em Abril

  O Caderno de Abril é um livro que revisita canções que nos avivam memórias dos tempos escuros; canções de espanto e assombro em que o tempo ganha cores vibrantes de esperança; canções de quimeras e utopias. Uma biografia, uma crónica, um poema da existência de um homem banal, nos tempos que fazem a história.

UM CADERNO COM PALAVRAS

  Abanico Abantesma Abelharuco Abesoirar Abraço Abundância Acariciar Açoteia Acrobata Adeus Aerograma Afeiçoar Agrimensor Alfarricoque Alma Amor Anarquia Anjo Aperaltado Aresta Assombro Assombração Azul Beijo Bifanas Bonifrates Cachopa Calor Caos Deserto Desavindo Empatia Escrever Farol Hoje Gatafunhos Geografias Imaginar Jardim Liberdade Mão Mediterrâneo Melancolia Melro Metáfora Montra Morte Namorado Nascer Ódio Orelhudo Palavra Palmas Panegírico Patagónia Passarolar Piropo Poesia Proteger Quotidiano Roleta Separação Silêncio Sofá Sonho Utopia Vaguear Valdevinos Vida Voar   Os caligrafistas, ou calígrafos, que não são palavras bonitas mas de boa índole, são pessoas talentosas que se dedicam a embelezar as palavras. Um género de maquilhadores, de pintores de palavras, para gozo e alegria dos apreciadores e fruição do universo, pelo menos este, já que dos outros só em teoria e em sonhos. Ponha-se o tempo a andar para trás, 6000 mil anos. O aparecimento da escrita, no final do qua

O Cântico das Sereias

A fonte da vida está na conjugação certa dos elementos necessários. E depois, é no líquido primordial que se germina a vida, molda-se o desenho do ser e quando a obra está pronta, convida-se uma nova alma para tomar conta e dar um nome ao recém-criado. O mar Mediterrâneo foi nos tempos da aurora dos dias, um leito amniótico, berço de muitas espécies e homens, habitantes das suas margens e periferias.  Estes, prosperaram explorando os seus recursos naturais e viveram muito tempo em harmonia, vendo-se o aparecimento, o auge e a decadência de povos e civilizações, com as suas estruturas complexas, as suas sociedades, crenças, culturas e línguas. Os homens atravessaram esse mar interior e íntimo vezes sem conta, para praticarem as artes da pescaria, o comércio e as trocas, o transbordo de gentes e coisas, ou praticando a navegação dos aventureiros em busca de terras por descobrir. Um mar bonançoso com intempéries contidas, suave e feminino. Foi e ainda é, para muitas nações, o símb