A fonte da vida está na conjugação
certa dos elementos necessários. E depois, é no líquido primordial que se
germina a vida, molda-se o desenho do ser e quando a obra está pronta,
convida-se uma nova alma para tomar conta e dar um nome ao recém-criado.
O mar Mediterrâneo foi nos tempos da
aurora dos dias, um leito amniótico, berço de muitas espécies e homens,
habitantes das suas margens e periferias. Estes, prosperaram explorando os seus recursos
naturais e viveram muito tempo em harmonia, vendo-se o aparecimento, o auge e a
decadência de povos e civilizações, com as suas estruturas complexas, as suas
sociedades, crenças, culturas e línguas.
Os homens atravessaram esse mar
interior e íntimo vezes sem conta, para praticarem as artes da pescaria, o
comércio e as trocas, o transbordo de gentes e coisas, ou praticando a
navegação dos aventureiros em busca de terras por descobrir.
Um mar bonançoso com intempéries
contidas, suave e feminino. Foi e ainda é, para muitas nações, o símbolo da
vida, da procriação, da perpetuação das gerações.
Contam as histórias contadas pelos
velhos, aceitando-se o risco que podem estar imersos nos seus sonhos e
poetizarem por isso os acontecimentos passados e a verdade das histórias que
contam, que o Mediterrâneo foi igualmente o berço das sereias, seres híbridos
de uma grande beleza, meio mulheres, meio peixe – há que diga que também
pássaros - que atraiam e hipnotizavam seduzindo, quem ouvia o seu canto.
Tiveram a sua origem num lugar no mar
tirreno, mas espalharam-se por toda a extensão desse mar-poesia.
O Mediterrâneo tem tantas histórias
para contar como as suas águas, que num fluxo imparável, passam pelas colunas
de Hércules, na viagem final até se unirem com o grande oceano que atravessa o
mundo de norte a sul.
No regresso a Ítaca – nome tão belo
para se chamar uma ilha antiga– depois da guerra de Troia, a do famoso cavalo construído pelo engenho
dos homens, para os esconder no seu interior oco, e ganhar por esse golpe de
estratégia criativa ao inimigo desprevenido, o herói grego Odiceu, também chamado Ulisses pelos
romanos, avisado dos poderes encantatórios das sereias, deixa-se amarrar ao
mastro da embarcação que o traz de volta, e os seus homens tapam os ouvidos com
cera, para poderem assim ultrapassar esse obstáculo do fascínio inconsequente
pela beleza que cega a vontade e faz esboroar o tino.
Os Argonautas, também se defrontaram
com esses seres mitológicos na viagem que fizeram para trazer o Velocino de
ouro, também conhecido pelo Tosão de Oiro, que contam os mitos ser a pele de um
carneiro, em ouro, tesouro dos tesouros do rei da Cólquida, agora Geórgia.
Um dos Argonautas, Orfeu, que tinha o
dom mágico da música, cadenciou com o seu talento, os trabalhos dos remadores e
com a sua voz abafou o canto das sereias.
Mais recentemente, um poeta grego -
os poetas são os que melhor cuidam das palavras -, escreveu sobre o regresso a
Ítaca, a viagem. Não é o ponto de partida ou o de chegada que importa, é o
caminho que se caminha, pelo que partir ou chegar é só iniciar ou finalizar uma
jornada. O destino final não tem nada para nos dar, senão o que trouxemos da
vigem que fizemos.
Nunca fui a Ítaca mas gostaria.
Contento-me a imaginar a minha Ítaca, que não existe em nenhum ponto cardeal.
Nunca me apaixonei por uma sereia,
nunca vi nem ouvi o seu canto. No entanto, já atravessei o mar mediterrâneo, em
tempos recentes, que é possível, que o som dos barcos que o atravessam, ofusquem
o cântico dessas belas mulheres híbridas, e talvez por isso o atravessei sem
cair perdido de paixão por uma melodia irresistível. Cheguei a porto seguro e
posso agora contar o que conto.
Correm notícias que elas continuam a
banhar-se nas águas desse mar e, como está na sua natureza, serem como sempre
foram. Levam consigo para as profundezas desse útero agora infértil, muitos
homens e mulheres e tantas crianças, que por não serem homens-peixe com
guelras, e terem pouco folego, esgotados pela exaustão, morrem quando
procuravam, perdidos e desorientados, o Norte das suas vidas frágeis, um
eldorado de sonhos, uma nova terra a que pudessem chamar de sua.
Não há certezas do que se está a
afirmar, só suposições, ou então, o que é ainda mais resvaladiço, fantasias que
por serem muito sonhadas, se fazem de verdades inquestionáveis e até teimosas.
Mas, dizem esses sussurros e não são poucos, que as sereias continuam a cantar
belas canções de falsa sedução e a levar consigo os incautos e os indefesos.
O mar Mediterrâneo deixou há muito de
gerar vidas. Foram os seus próprios filhos gerados, alimentados e criados pelas
suas águas já não transparentes nem benfazejas, que as tornaram ácidas,
corrosivas, mortais, que o inquinaram, envenenando e comprometendo um tempo
futuro.
Nos seus fundos, outrora coloridos de
corais e mil e uma espécies marinhas, jaz um cemitério, sem inscrições nem
flores. Nem símbolos de religiões. Um número incontável de homens morre todos
os dias no engano do canto das sereias que os puxam inexoravelmente para a
asfixia e a ausência de amanhã. São poucos os que chegam às suas margens e já nem
aí podem vir a prosperar, porque nas margens do Mediterrâneo já não florescem
oliveiras, os limões mirraram, os pássaros estão a deixar de migrar, as abelhas
andam desistentes, os areais e as praias de seixos, os penhascos que lambem a
linha da água fazendo a marcação de fronteira entre o mar e a terra, são agora mantos de partículas plásticas que imitam as areias douradas de tempos perdidos..
Os que ainda assim chegam com vida à
ilha de Lampedusa, resgatados por homens que põem cera nos ouvidos para se
protegerem dessas ninfas da sensualidade, é como se tivessem chegado mortos. O
seu interior desertificou e esvaziou-se.
Ficaram ausentes de amanhã, esquecidos de ontem. Deixou de haver futuro
certo e Ítaca é uma miragem a que nunca mais se chega, porque já não existe uma
Ítaca, só que os homens não sabem disso.
Lampedusa e outras ilhotas flutuantes
nesse mar delirante no seu leito de finitude, apagaram dos seus faróis, a luz
que orientava os barcos, indicando-lhes a direcção da terra firme. A escuridão
que se abateu, densa como matéria podre, desorienta as pequenas embarcações
dirigidas por homens que nunca foram marinheiros, que não sabem olhar nas
estrelas a direcção dos caminhos.
É no seio deste mar tenebroso e
delirante, que as sereias na falsidade da sua sensualidade, continuam a enganar
os homens tristes que tentam atravessar um mar afinal traiçoeiro, para ganharem
a eternidade, chegar as margens do mundo das riquezas, uma quimera que não
existe, mas que os homens fugidos do deserto desconhecem, encantados que vão
pelo som das melodias doces, que não são mais do que as brisas sibilantes do
vento que passa.
Afinal não é o cântico das sereias
que se ouve, é o som da agonia do Mediterrâneo e o carpir dos que velam a
imensa sombra da morte que se aproxima para cobrir tudo no breu.
A Pintura é do Paulo Robalo
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