Vej
o silêncio na rua de casas brancas todas iguais
Um homem, de semblante servil, alinha
garrafas de vidro com leite, ao lado das portas.
A melodia elementar de um amolador
estilhaça o silêncio.
Pode ser domingo
Ao fundo da rua, um muro alto separa
duas escolas primárias
Os sons de um lado e do outro não se
misturam nem materializam.
As meninas, os meninos, dois mundos
paralelos e separados.
O encontro acontece na rua, depois
das aulas, ainda assim cada grupo com as suas brincadeiras.
Os rapazes mais acriançados, atiram
bolas para as meninas, e elas com risinhos nervosos, mal fingindo que não
gostam desse jogo do eclodir da puberdade
Foi antes.
Um passeio num carro eléctrico
amarelo, com o seu bivaque de militar na cabeça, a sobrar-me no tamanho. Sempre
gostei de fardas.
E gostei dele, homem com cara de
anjo,
Sem tempo na ampulheta do tempo para nos
gostarmos mais.
Fascina-me o objecto estranho do
revisor para picar os bilhetes.
Fascina-me tudo no revisor. Em particular
uma pequena pasta de couro onde guarda os bilhetes, o dinheiro e esse objecto
magnifico.
Foi o último passeio que fizemos
juntos, era o meu padrinho. E tio.
Projecto inacabado de cantor nos
serões da Emissora Nacional
A última vez que o vi.
Vi-o tão pouco.
Foi a guerra
Vejo o meu avô depois do jantar,
Os membros da família, mudos e
expectantes, os olhos compenetrados no chão encerado da sala acanhada,
ele a ler-nos o aerograma quase
telegráfico do filho.
Dizia sempre que estava tudo bem
quando nunca esteve tudo bem.
Vejo-me com um emblema com quinas
bordado no peito da minha camisola branca a executar coreografias inúteis, num
dia da raça.
O meu irmão, entretanto, asfixiava
com um rebuçado e o meu pai salvou-o, mas não assistiram à minha sincronia com
os outros,
eramos milhares e não percebíamos
porque estávamos ali.
Eu, estava ali pelo meu pai e pelo
meu irmão.
Os corvos, muito negros, perfilados
na tribuna principal.
Nem palmas batiam.
Salazar nunca valorizou o meu esforço
nesse dia, e isso, não lhe perdoei.
O povo, exultante, batia palmas, em
vez de assobiar.
Nos calabouços despidos do que agora
é um prédio de luxo,
Um telefone,
adereço pendurado na parede em frente das
celas,
quando ele toca, cai o número num
quadrado de uma caixa de madeira ao lado do telefone.
É o número da cela.
Som chirriante a chamar o guarda para
levar o preso à tortura.
Passa noites inteiras a tocar sem
levar ninguém.
O som do telefone é a pior das torturas.
E aquela mulher, grávida do quarto
filho, tão jovem, num dia de Maio, assassinada à queima roupa.
Reivindicava pão.
E as Malas de cartão cheias de nada,
A liberdade está depois dos montes
ermos e da guarda armada,
Se eles soubessem que fogem para
continuarem a ser escravos,
Vivendo em casas de cartão e sobras,
arriscariam na mesma.
Eles Fogem da guerra,
Fogem da ausência de futuro
Fogem porque o chão onde antes tinham
raízes, lhes fugiu dos pés .
Denunciar para não ser denunciado.
Sussurram-se as conversas nos cafés
Desconfiar de tudo e todos é uma
espiral de loucura.
Os bufos, um país de bufos.
Vejo um miúdo adolescente mal-amanhado,
a entregar panfletos extremistas, nos recreios do liceu.
Ele não sabe bem o significado dos
slogans impressos, mas considera-se um rapaz corajoso por estar a cumprir uma
missão muito importante.
Os folhetos, esconde-os na dispensa
da cozinha.
A avó não sabe ler e permite-lhe tudo.
Ela e ele são uma pequena célula
revolucionária improvável.
Vejo um sistema de castas, um
clericalismo opressivo.
O elevador social é a cenoura,
recompensa inalcançável que nunca se saboreia
Ainda hoje é assim.
Nem tudo era mau, era quase tudo mau.
As canções:
Estranha forma de vida A minha casinha Que força é essa A morte saiu à rua Os vampiros Trova do vento que passa A tourada
Traz outro amigo também ...
As palavras: OPRESSÃO MEDO
Um dia, os cravos vermelhos impediram
as espingardas de dispararem.
Foi no dia das canções e da alegria
contagiante.
No nevoeiro adensado na grande Praça
das comemorações do Império, um soldado anónimo – lembram-se do nome? – não
disparou o canhão do tanque, contra as ordens do brigadeiro.
Na mira, outro herói, o seu peito, o
nosso peito, oferecido a essa bala definitiva que não foi disparada.
E neste episódio anunciou-se
finalmente o dia claro e límpido.
Desfez-se o regime em nada,
Desfez-se em pó.
E o calendário do tempo voltou ao dia
primordial e começou uma nova contagem.
As pessoas que só sussurravam,
enrouqueceram a quererem dizer tudo.
Saiu-se à rua sem medo, cantando com
os pulmões cheios de refrões de palavras belas,
Foi a ingenuidade dos dias utópicos,
de todos os sonhos e de todas as quimeras.
Anunciou-se Abril e os ecos das
canções chegaram a todos os cantos do mundo. Muitos homens ganharam novas
esperanças de que também a primavera acontecesse no seu país.
Foi a festa pá,
cá tão contentes, com cheirinhos de
alecrim.
O homem que um dia me pôs o bivaque
de soldadinho na cabeça, não voltou de uma guerra inútil, perdida desde o
primeiro dia.
A ponta romba do lápis azul partiu-se
e deixou de riscar algemas e prender as palavras.
O povo amordaçado, no momento
seguinte potencia um caos de gritaria.
É assim o povo.
Fazem-se todas as festas, todos os
excessos.
A liberdade, à solta, também causa
acidentes.
Nesse dia, o mundo, o meu, deixou de
ser a preto e branco.
A palavra o ASSOMBRO.
E vieram todos os amigos e cantou-se
pelas madrugadas dentro.
Caíram as paredes das fortalezas, derrubou-se
o muro da escola,
o homem do leite sorriu,
o amolador, esse, continuou desconsolado
e pobre, contaminado pela única melodia pungente que sabe tocar:
um ensaio de fado triste.
Acabou-se, ainda bem, já não há o dia
da raça, mas ainda se comemora o dia desse país com desfiles militares e discursos
vãos.
As canções:
E depois do adeus Grândola, vila morena Queda do império Verdes anos
A palavra UTOPIA
não há melhor do que viver em
democracia.
Como nunca tínhamos vivido neste
regime,
tivemos de aprender, à nossa custa,
autodidactas , professores de nós
mesmos.
Arranhámos muitas vezes os joelhos e
as mãos,
Perdemos o equilíbrio em poses
arriscadas e desconhecidas,
Assobiámos para o ar e recebemos de
volta os perdigotos,
Fomos por caminhos que deram em nada,
Vivemos, nos cinquenta anos de
democracia, um processo de aprendizagem contínuo:
novos desafios estão sempre a
acontecer,
e só nos resta ser bons cavaleiros
andantes, com Dulcineias no coração, lanças a rasgar os ventos e a ferir as velas
de moinhos,
defensores de causas imaginárias ou
reais,
ingénuos e puros porque acreditamos
no futuro.
Temos ainda tanto para aprender:
Que a liberdade responsável é
inestimável.
Que a empatia, é uma ligação mais
forte do que a compaixão e que vale mais a mão aberta do que o punho cerrado
Que o outro, é o nosso reflexo ao
espelho,
E a cidadania é a melhor das honestidades
Que a soberba e as verdades absolutas, são
ácidos corrosivos.
E,
Que também aprendemos com os erros:
Se tivéssemos feito tudo certo,
teríamos feito tudo errado,
Passou o tempo, fizeram-se coisas, muitas
por fazer.
Algum governo, muitos desgovernos.
As utopias não se realizaram, porque
nunca se realizam
Os poetas e todos os artistas
continuam a ser considerados loucos e bobos das cortes.
A cultura, essência primordial do
humano, não entra nos orçamentos nem nas estratégias.
O kitsch é suficiente para alimentar os
festejos,
E o que o povo quer são foguetes e
gaitadas,
porque não sabe
porque não aprendeu
porque não se investiu:
a cultivar o gosto
a educar o pensamento,
a alimentar o espírito crítico
construindo uma sociedade a pensar
pela sua própria cabeça, vestida de justiça e oportunidade para todos..
As canções:
Mudam-se os
tempos, mudam-se as vontades
Tanto mar
O barco vai de saída Pedra
filosofal
O rapaz que um dia brincava com as
caricas e os carrinhos da matchbox, nas bermas do passeio da rua das casas
brancas, também emigrou um dia,
Precisava de respirar.
Esse rapaz feito homem nessa aurora
dos dias coloridos e livres, poderia talvez ter feito mais, mas o atraso era
tanto, a distância tão grande que 50 anos não foram suficientes para entregar
aos seus, o que ele queria dar:
Um país risonho,
Justo,
Desenvolvido,
Um pequeno jardim das delícias.
E é assim a espuma da minha
biblioteca interior:
O que vivi e o que sou.
Escrito neste CADERNO DE ABRIL, em
que se revisitaram algumas canções que são o nosso património, dessa cultura
que só se recorda em datas e comemorações.
Vivem-se de novo dias estranhos e escuros
e desconfortáveis
Voltou o grasnar dos corvos
perfilados na tribuna.
Hoje, vi o povo a assistir, nas
costas, aos festejos, quando a banda deveria estar virado para ele a tocar as
nossas canções.
Parece que falta cumprir Abril, mas
as flores mais resilientes do que nós, persistem em desabrochar, lembrando-nos
que a vida para ser plena deve estar pintada de todas as cores.
Sou um homem que viveu uma existência
banal nos tempos que fazem história,
ESPERO DIAS RISONHOS PARA TODOS NÓS.
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