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SOBRE O CADERNO DE ABRIL E OUTRAS COISAS


Vej


o silêncio na rua de casas brancas todas iguais

Um homem, de semblante servil, alinha garrafas de vidro com leite, ao lado das portas.

A melodia elementar de um amolador estilhaça o silêncio.

Pode ser domingo

Ao fundo da rua, um muro alto separa duas escolas primárias

Os sons de um lado e do outro não se misturam nem materializam.

As meninas, os meninos, dois mundos paralelos e separados.

O encontro acontece na rua, depois das aulas, ainda assim cada grupo com as suas brincadeiras.

Os rapazes mais acriançados, atiram bolas para as meninas, e elas com risinhos nervosos, mal fingindo que não gostam desse jogo do eclodir da puberdade

Foi antes.

Um passeio num carro eléctrico amarelo, com o seu bivaque de militar na cabeça, a sobrar-me no tamanho. Sempre gostei de fardas.

E gostei dele, homem com cara de anjo,

Sem tempo na ampulheta do tempo para nos gostarmos mais.

Fascina-me o objecto estranho do revisor para picar os bilhetes.

Fascina-me tudo no revisor. Em particular uma pequena pasta de couro onde guarda os bilhetes, o dinheiro e esse objecto magnifico.

Foi o último passeio que fizemos juntos, era o meu padrinho. E tio.

Projecto inacabado de cantor nos serões da Emissora Nacional

A última vez que o vi.

Vi-o tão pouco.

Foi a guerra

Vejo o meu avô depois do jantar,

Os membros da família, mudos e expectantes, os olhos compenetrados no chão encerado da sala acanhada,

ele a ler-nos o aerograma quase telegráfico do filho.

Dizia sempre que estava tudo bem quando nunca esteve tudo bem.

Vejo-me com um emblema com quinas bordado no peito da minha camisola branca a executar coreografias inúteis, num dia da raça.

O meu irmão, entretanto, asfixiava com um rebuçado e o meu pai salvou-o, mas não assistiram à minha sincronia com os outros,

eramos milhares e não percebíamos porque estávamos ali.

Eu, estava ali pelo meu pai e pelo meu irmão.

Os corvos, muito negros, perfilados na tribuna principal.

Nem palmas batiam.

Salazar nunca valorizou o meu esforço nesse dia, e isso, não lhe perdoei.

O povo, exultante, batia palmas, em vez de assobiar.

Nos calabouços despidos do que agora é um prédio de luxo,

Um telefone,

 adereço pendurado na parede em frente das celas,

quando ele toca, cai o número num quadrado de uma caixa de madeira ao lado do telefone.

É o número da cela.

Som chirriante a chamar o guarda para levar o preso à tortura.

Passa noites inteiras a tocar sem levar ninguém.

O som do telefone é a pior das torturas.

E aquela mulher, grávida do quarto filho, tão jovem, num dia de Maio, assassinada à queima roupa.

Reivindicava pão.

E as Malas de cartão cheias de nada,

A liberdade está depois dos montes ermos e da guarda armada,

Se eles soubessem que fogem para continuarem a ser escravos,

Vivendo em casas de cartão e sobras, arriscariam na mesma.

Eles Fogem da guerra,

Fogem da ausência de futuro

Fogem porque o chão onde antes tinham raízes, lhes fugiu dos pés .

 

Denunciar para não ser denunciado.

Sussurram-se as conversas nos cafés

Desconfiar de tudo e todos é uma espiral de loucura.

Os bufos, um país de bufos.

Vejo um miúdo adolescente mal-amanhado, a entregar panfletos extremistas, nos recreios do liceu.

Ele não sabe bem o significado dos slogans impressos, mas considera-se um rapaz corajoso por estar a cumprir uma missão muito importante.

Os folhetos, esconde-os na dispensa da cozinha.

A avó não sabe ler e permite-lhe tudo.

Ela e ele são uma pequena célula revolucionária improvável.

Vejo um sistema de castas, um clericalismo opressivo.

O elevador social é a cenoura, recompensa inalcançável que nunca se saboreia

Ainda hoje é assim.

Nem tudo era mau, era quase tudo mau.

 

As canções:

Estranha forma de vida    A minha casinha   Que força é essa    A morte saiu à rua    Os vampiros    Trova do vento que passa    A tourada     Traz outro amigo também ...

As palavras:       OPRESSÃO        MEDO

Um dia, os cravos vermelhos impediram as espingardas de dispararem.

Foi no dia das canções e da alegria contagiante.

No nevoeiro adensado na grande Praça das comemorações do Império, um soldado anónimo – lembram-se do nome? – não disparou o canhão do tanque, contra as ordens do brigadeiro.

Na mira, outro herói, o seu peito, o nosso peito, oferecido a essa bala definitiva que não foi disparada.

E neste episódio anunciou-se finalmente o dia claro e límpido.

Desfez-se o regime em nada,

Desfez-se em pó.

E o calendário do tempo voltou ao dia primordial e começou uma nova contagem.

As pessoas que só sussurravam, enrouqueceram a quererem dizer tudo.

Saiu-se à rua sem medo, cantando com os pulmões cheios de refrões de palavras belas,

Foi a ingenuidade dos dias utópicos, de todos os sonhos e de todas as quimeras.

Anunciou-se Abril e os ecos das canções chegaram a todos os cantos do mundo. Muitos homens ganharam novas esperanças de que também a primavera acontecesse no seu país.

Foi a festa pá,

cá tão contentes, com cheirinhos de alecrim.

O homem que um dia me pôs o bivaque de soldadinho na cabeça, não voltou de uma guerra inútil, perdida desde o primeiro dia.

A ponta romba do lápis azul partiu-se e deixou de riscar algemas e prender as palavras.

O povo amordaçado, no momento seguinte potencia um caos de gritaria.

É assim o povo.

Fazem-se todas as festas, todos os excessos.

A liberdade, à solta, também causa acidentes.

Nesse dia, o mundo, o meu, deixou de ser a preto e branco.

A palavra          o ASSOMBRO.

E vieram todos os amigos e cantou-se pelas madrugadas dentro.

Caíram as paredes das fortalezas, derrubou-se o muro da escola,

o homem do leite sorriu,

o amolador, esse, continuou desconsolado e pobre, contaminado pela única melodia pungente que sabe tocar:

um ensaio de fado triste.

Acabou-se, ainda bem, já não há o dia da raça, mas ainda se comemora o dia desse país com desfiles militares e discursos vãos.

As canções:

E depois do adeus     Grândola, vila morena     Queda do império   Verdes anos

A palavra         UTOPIA

não há melhor do que viver em democracia.

Como nunca tínhamos vivido neste regime,

tivemos de aprender, à nossa custa,

autodidactas , professores de nós mesmos.

Arranhámos muitas vezes os joelhos e as mãos,

Perdemos o equilíbrio em poses arriscadas e desconhecidas,

Assobiámos para o ar e recebemos de volta os perdigotos,

 Fomos por caminhos que deram em nada,

Vivemos, nos cinquenta anos de democracia, um processo de aprendizagem contínuo:

novos desafios estão sempre a acontecer,

e só nos resta ser bons cavaleiros andantes, com Dulcineias no coração, lanças a rasgar os ventos e a ferir as velas de moinhos,

defensores de causas imaginárias ou reais,

ingénuos e puros porque acreditamos no futuro.

Temos ainda tanto para aprender:

Que a liberdade responsável é inestimável.

Que a empatia, é uma ligação mais forte do que a compaixão e que vale mais a mão aberta do que o punho cerrado

Que o outro, é o nosso reflexo ao espelho,

E a cidadania é a melhor das honestidades

 Que a soberba e as verdades absolutas, são ácidos corrosivos.

E,

Que também aprendemos com os erros:

Se tivéssemos feito tudo certo, teríamos feito tudo errado,

Passou o tempo, fizeram-se coisas, muitas por fazer.

Algum governo, muitos desgovernos.

As utopias não se realizaram, porque nunca se realizam

Os poetas e todos os artistas continuam a ser considerados loucos e bobos das cortes.

A cultura, essência primordial do humano, não entra nos orçamentos nem nas estratégias.

O kitsch é suficiente para alimentar os festejos,

E o que o povo quer são foguetes e gaitadas,

porque não sabe

porque não aprendeu

porque não se investiu:

a cultivar o gosto

a educar o pensamento,

a alimentar o espírito crítico

construindo uma sociedade a pensar pela sua própria cabeça, vestida de justiça e oportunidade para todos..

As canções:

Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades

 Tanto mar   O barco vai de saída    Pedra filosofal

O rapaz que um dia brincava com as caricas e os carrinhos da matchbox, nas bermas do passeio da rua das casas brancas, também emigrou um dia,

Precisava de respirar.

Esse rapaz feito homem nessa aurora dos dias coloridos e livres, poderia talvez ter feito mais, mas o atraso era tanto, a distância tão grande que 50 anos não foram suficientes para entregar aos seus, o que ele queria dar:

Um país risonho,

Justo,

Desenvolvido,

Um pequeno jardim das delícias.

E é assim a espuma da minha biblioteca interior:

O que vivi e o que sou.

Escrito neste CADERNO DE ABRIL, em que se revisitaram algumas canções que são o nosso património, dessa cultura que só se recorda em datas e comemorações.

Vivem-se de novo dias estranhos e escuros e desconfortáveis

Voltou o grasnar dos corvos perfilados na tribuna.

Hoje, vi o povo a assistir, nas costas, aos festejos, quando a banda deveria estar virado para ele a tocar as nossas canções.

Parece que falta cumprir Abril, mas as flores mais resilientes do que nós, persistem em desabrochar, lembrando-nos que a vida para ser plena deve estar pintada de todas as cores.

Sou um homem que viveu uma existência banal nos tempos que fazem história,

 

ESPERO DIAS RISONHOS PARA TODOS NÓS.

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