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Os caligrafistas, ou calígrafos, que
não são palavras bonitas mas de boa índole, são pessoas talentosas que se
dedicam a embelezar as palavras. Um género de maquilhadores, de pintores de
palavras, para gozo e alegria dos apreciadores e fruição do universo, pelo
menos este, já que dos outros só em teoria e em sonhos.
Ponha-se o tempo a andar para trás, 6000
mil anos. O aparecimento da escrita, no final do quarto milénio antes de Cristo:
a escrita cuneiforme na Mesopotâmia, a hieroglífica no Egipto.
E se gostaríamos de imaginar que ela
nasceu com a impressão ainda que tosca, de uma palavra de paixão, um nome, ou
mesmo um arremedo rude de um pequeno poema nos recônditos escuros de uma
caverna, na casca de uma árvore do caminho, desenganemo-nos. Foram funcionários
escravos administrativos, na Suméria, a fazerem a primeira escrita
contabilística organizada, escrevendo em tabuinhas de barro uma língua com uma
grafia fina e elegante. Os egípcios
inventaram uma escrita imagética forte, intuitiva, como uma banda
desenhada feita de símbolos e figuras humanas e animais estilizadas.
Depois os romanos, os primeiros
publicitários dos espaços livres. Esculpiam grandes letras e números nos
frontispícios dos edifícios e palácios, e andavam pelos confins do imenso
império, nas regiões ocupadas, a ler para os locais os editais escritos em Roma,
em papiros que iam desenrolado enquanto liam.
E o árabe, língua de contornos
femininos a parecerem frases em movimento de dança hipnótica. De uma grande
beleza. Na Idade Média, os monges copistas, fechados na escuridão dos conventos,
a criarem iluminuras ricamente decoradas e livros que são únicos, obras de arte
e do engenho.
Hoje, são poucos os que ainda
escrevem com canetas de aparo. Na normalização de tudo, a escrita executada
pelos computadores ainda que disponibilize centenas de tipo de letra e estilos,
é banal e digital.
Eu, tenho em mim um caderno onde
guardo palavras belas. Uma estufa fertilizante em que os vasos são as folhas
brancas e onde planto palavras escritas que já existem e outras que invento.
As que já existem nos calhamaços e
nas línguas que se falam, são mais fáceis de entender, têm um ou mais
significados atribuídos pelas pessoas, como eu, que se cruzam com elas e as
adoptam, ou as descartam depois de usadas, o que temo seja o que acontece à
maioria das palavras.
As que invento, só eu sei o que me
dizem, e ávido de as colecionar, raramente as partilho, com receio que fujam do
caderno, apesar de nutridas e confortáveis, onde as cuido com solicitude. Uma
vez por outra, uso-as nalgum escrito, encadeio-as em frases, pode ser que se
entenda o sentido. O que não é grave, o importante é que eu as reconheça e
desfrute na sua companhia.
Para convidar uma para a minha
intimidade, sou rigoroso e quase científico. Não é uma qualquer, mais serigaita,
que me pisca o olho e me leva ao engano. Tem de acontecer um processo, que não
sei se será químico ou outro, instantâneo, a despoletar uma ignição dos dois. Um
desvario com efeitos colaterais controlados.
A acontecer esse fenómeno, coloco-a numa
ordem e método meus, numa das páginas do caderno, que confesso, trata-se de um
dos objectos mais valiosos que tenho. Nem quero imaginar perder o caderno e por
isso anda sempre comigo, na pequena mochila onde guardo os meus tesouros
essenciais: o caderno, um livro, uma caneta de aparo.
É claro que encontro palavras belas
com muita frequência e imagino-as também. O meu caderno não para de crescer e
um dia, quem sabe, virei a ter um dicionário das palavras belas.
Há palavras para todos os gostos e
situações. Todas as palavras de Amor são belas. As de ódio não, nem desprezo,
nem raiva. Como em tudo na vida, há muitas que são neutras. Abusam-se e
esgotam-se ditas nas bocas e escritas por todo o lado e vão morrer anónimas nos
cemitérios das palavras.
Para vos revelar um pouco mais, devo
dizer-vos que tenho palavras suaves, outras duras, umas melodiosas, afónicas,
elaboradas, há as rudes, mas não há critério de escolha, são belas porque nos
escolhemos mutuamente, e nos apreciamos, só por isso.
O meu irmão, que é pintor, e gosta da
grafia das palavras e o que elas encerram e dizem, pinta por vezes essas
palavras em telões de grandes dimensões, dando-lhes assim a oportunidade de
elas respirarem desafogadamente e inebriarem-se com os aromas do espectáculo do
mundo, que existe fora do meu caderno das palavras belas., As pessoas que
apreciam os seus quadros têm uma boa oportunidade de lerem palavras que são minhas e dele e podem ser de todos,
vestidas em roupagens ricas de cores e intensidades.
Uma democracia de palavras.
É minha intenção, sempre adiada
porque não paro de preencher o meu caderno, criar uma história para cada uma, a
minha história delas. Dê no que dê, pode ser um texto inverosímil e incoerente,
aparentemente oposto ao que outros entendem do significado dessas palavras. Será
a minha versão privada.
Sou assim, um colecionador de bens
intangíveis, detentor de propriedade intelectual das palavras, porque
invento-lhes o jeito de se escreverem e dizerem. Como os outros as usam não sou
responsável, nem posso assegurar que digam o mesmo que as minhas. Foram
tecladas em cabeças alheias, e, vá-se a saber o que cada cabeça pensa.
As minhas estão viçosas e saudáveis e
mesmo que construindo frases tortas, são absolutamente pacíficas e irrequietas
como as crianças, a quem se desculpa tudo.
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