Avançar para o conteúdo principal

UM CADERNO COM PALAVRAS

 


Abanico Abantesma Abelharuco Abesoirar Abraço Abundância Acariciar Açoteia Acrobata Adeus Aerograma Afeiçoar Agrimensor Alfarricoque Alma Amor Anarquia Anjo Aperaltado Aresta Assombro Assombração Azul Beijo Bifanas Bonifrates Cachopa Calor Caos Deserto Desavindo Empatia Escrever Farol Hoje Gatafunhos Geografias Imaginar Jardim Liberdade Mão Mediterrâneo Melancolia Melro Metáfora Montra Morte Namorado Nascer Ódio Orelhudo Palavra Palmas Panegírico Patagónia Passarolar Piropo Poesia Proteger Quotidiano Roleta Separação Silêncio Sofá Sonho Utopia Vaguear Valdevinos Vida Voar

 

Os caligrafistas, ou calígrafos, que não são palavras bonitas mas de boa índole, são pessoas talentosas que se dedicam a embelezar as palavras. Um género de maquilhadores, de pintores de palavras, para gozo e alegria dos apreciadores e fruição do universo, pelo menos este, já que dos outros só em teoria e em sonhos.

Ponha-se o tempo a andar para trás, 6000 mil anos. O aparecimento da escrita, no final do quarto milénio antes de Cristo: a escrita cuneiforme na Mesopotâmia, a hieroglífica no Egipto.

E se gostaríamos de imaginar que ela nasceu com a impressão ainda que tosca, de uma palavra de paixão, um nome, ou mesmo um arremedo rude de um pequeno poema nos recônditos escuros de uma caverna, na casca de uma árvore do caminho, desenganemo-nos. Foram funcionários escravos administrativos, na Suméria, a fazerem a primeira escrita contabilística organizada, escrevendo em tabuinhas de barro uma língua com uma grafia fina e elegante. Os egípcios  inventaram uma escrita imagética forte, intuitiva, como uma banda desenhada feita de símbolos e figuras humanas e animais estilizadas.

Depois os romanos, os primeiros publicitários dos espaços livres. Esculpiam grandes letras e números nos frontispícios dos edifícios e palácios, e andavam pelos confins do imenso império, nas regiões ocupadas, a ler para os locais os editais escritos em Roma, em papiros que iam desenrolado enquanto liam.

E o árabe, língua de contornos femininos a parecerem frases em movimento de dança hipnótica. De uma grande beleza. Na Idade Média, os monges copistas, fechados na escuridão dos conventos, a criarem iluminuras ricamente decoradas e livros que são únicos, obras de arte e do engenho.

Hoje, são poucos os que ainda escrevem com canetas de aparo. Na normalização de tudo, a escrita executada pelos computadores ainda que disponibilize centenas de tipo de letra e estilos, é banal e digital.

 

Eu, tenho em mim um caderno onde guardo palavras belas. Uma estufa fertilizante em que os vasos são as folhas brancas e onde planto palavras escritas que já existem e outras que invento.

As que já existem nos calhamaços e nas línguas que se falam, são mais fáceis de entender, têm um ou mais significados atribuídos pelas pessoas, como eu, que se cruzam com elas e as adoptam, ou as descartam depois de usadas, o que temo seja o que acontece à maioria das palavras.

As que invento, só eu sei o que me dizem, e ávido de as colecionar, raramente as partilho, com receio que fujam do caderno, apesar de nutridas e confortáveis, onde as cuido com solicitude. Uma vez por outra, uso-as nalgum escrito, encadeio-as em frases, pode ser que se entenda o sentido. O que não é grave, o importante é que eu as reconheça e desfrute na sua companhia.

Para convidar uma para a minha intimidade, sou rigoroso e quase científico. Não é uma qualquer, mais serigaita, que me pisca o olho e me leva ao engano. Tem de acontecer um processo, que não sei se será químico ou outro, instantâneo, a despoletar uma ignição dos dois. Um desvario com efeitos colaterais controlados.

A acontecer esse fenómeno, coloco-a numa ordem e método meus, numa das páginas do caderno, que confesso, trata-se de um dos objectos mais valiosos que tenho. Nem quero imaginar perder o caderno e por isso anda sempre comigo, na pequena mochila onde guardo os meus tesouros essenciais: o caderno, um livro, uma caneta de aparo.

É claro que encontro palavras belas com muita frequência e imagino-as também. O meu caderno não para de crescer e um dia, quem sabe, virei a ter um dicionário das palavras belas.

Há palavras para todos os gostos e situações. Todas as palavras de Amor são belas. As de ódio não, nem desprezo, nem raiva. Como em tudo na vida, há muitas que são neutras. Abusam-se e esgotam-se ditas nas bocas e escritas por todo o lado e vão morrer anónimas nos cemitérios das palavras.

Para vos revelar um pouco mais, devo dizer-vos que tenho palavras suaves, outras duras, umas melodiosas, afónicas, elaboradas, há as rudes, mas não há critério de escolha, são belas porque nos escolhemos mutuamente, e nos apreciamos, só por isso.

O meu irmão, que é pintor, e gosta da grafia das palavras e o que elas encerram e dizem, pinta por vezes essas palavras em telões de grandes dimensões, dando-lhes assim a oportunidade de elas respirarem desafogadamente e inebriarem-se com os aromas do espectáculo do mundo, que existe fora do meu caderno das palavras belas., As pessoas que apreciam os seus quadros têm uma boa oportunidade de lerem palavras  que são minhas e dele e podem ser de todos, vestidas em roupagens ricas de cores e intensidades.

Uma democracia de palavras.

É minha intenção, sempre adiada porque não paro de preencher o meu caderno, criar uma história para cada uma, a minha história delas. Dê no que dê, pode ser um texto inverosímil e incoerente, aparentemente oposto ao que outros entendem do significado dessas palavras. Será a minha versão privada.

Sou assim, um colecionador de bens intangíveis, detentor de propriedade intelectual das palavras, porque invento-lhes o jeito de se escreverem e dizerem. Como os outros as usam não sou responsável, nem posso assegurar que digam o mesmo que as minhas. Foram tecladas em cabeças alheias, e, vá-se a saber o que cada cabeça pensa.

As minhas estão viçosas e saudáveis e mesmo que construindo frases tortas, são absolutamente pacíficas e irrequietas como as crianças, a quem se desculpa tudo.

Comentários

Mensagens populares deste blogue

AI DO QUE GOSTEI E DO QUE GOSTO

  Gostei da alcofa pousada na marquise onde entrava o sol com abundância e a minha avó costurava. Gostei do colo da minha avó.   Gostei que me afagasse os lençóis ao deitar.   Gostei de alguns tons escuros, os das noites, outros não.   Gostei do silêncio da noite, gostei em geral dos silêncios. Gostei de ouvir num radio a pilhas músicas que me fizeram sonhar sonhos bons. Gostei do cão Tôto, de caça, onde cavalguei no pátio, a imaginar-me cavaleiro. Gostei daquela casa onde só me lembro do parapeito da janela, onde presumo que aos fins de dia eu e a minha avó víamos as pessoas a passar na rua e nós, abeirados do beiral as cumprimentávamos. Gostei de odores que já não identifico. Gostei da tia Rosa, mulher ainda mais pobre que nós a quem dávamos de comer e ela, em troca, me dava todo o seu amor porque nunca teve ninguém seu. Era eu. Gostei do carro de bombeiros que o meu avô me ofereceu. Tinha uma sirene. Era único. Gostei do primeiro livro de quadradinhos, contava

BERLINDES

Eram berlindes e guelas, os primeiros mais pequenos, os outros, mais vistosos, abafavam os berlindes. Eram de vidro cheios de cor, muitas, com padrões que davam ao girar a sensação de movimento encantatório. Compravam-se nas papelarias de bairro, pequenas superfícies habitualmente familiares que vendiam de tudo de uma forma absolutamente eficaz e personalizada. Estabelecimentos, não superfícies, designações de um presente deselegante, um nome que soa estranho e é frio. Os proprietários e os empregados sabiam os nossos nomes. Podíamos levar e pagar depois, numa contabilidade honesta que se fazia no livro dos devedores, preenchido a lápis de carvão. Este calhamaço era uma história do negócio, onde se desfiavam listas de nomes e produtos e datas. Raramente era usado para lembrar os atrasos: ninguém queria estragar relações de boa vizinhança, num tempo em que a honra e a honestidade eram valores não transacionáveis. Uns buracos no chão com uma distância entre si, medi

COPOS E GAJAS BOAS, DE PREFERÊNCIA

De manhã se começa o dia, dizia a minha querida avó, mulher avisada, que vestia de preto, tinha um buço pronunciado e gostava da pinga às escondidas. Como quem sai aos seus, aos seus sai, já enfiei dois medronhos, para dar energia a enfrentar o dia que dá trabalho, e até chegar ao fim, é uma peregrinação quase religiosa ao botequim do chico. Pelo menos tenho fé em ir lá, é uma espécie de purificação do meu interior. Agora só bebo sininhos, estou em dieta alcoólica, só pequenas quantidades (de cada vez claro). Não se pode dizer que saia caro. Cada sininho são 30 cêntimos. Um copo de três, cinquenta cêntimos. Apesar de alguém desavisado poder estar em desacordo (está longe, não vê, está mal informado), sou uma pessoa poupada: só bebo um de cada vez. Se descontar de todos os que bebo, as ofertas, os brindes às efemérides de cada parceiro que frequenta o botequim, e os que o Chico se esquece de cobrar, gasto realmente muito pouco. Sou portanto no Sul, um dos homens mai

CAVALO-MARINHO

  Na distância do tempo que leva a vida a passar, as imagens mais antigas confundem-se, fundem-se mesmo, é difícil apurar certezas. Vejo-me a olhar fascinado e miúdo, a primeira vez, um cavalo-marinho. Ressequido, mas conservado, pousado na palma da minha mão. Se na altura conhecesse uma palavra mais pomposa do que renda, diria filigrana. Aconteceu quando estava de visita a uma casa liliputiana, de tios meus. A meu ver uma casa cheia de misteriosos e pequenos tesouros, que ia descobrindo na curiosidade de criança, abrindo gavetas e mexendo em prateleiras. Uma casa que tinha um olho de vidro da vista direita da minha tia, pousado no fundo de um copo cheio de água na mesa de cabeceira, a olhar para mim com um olhar espantado, esgazeado, e eu a olhar para ele, a princípio receoso,  depois a querer saber o que havia por trás de um olho, já que os vemos sempre colocados nas órbitras dos usufrutuários e não sabemos o que está por trás. Este olho de vidro é a prova óbvia que a minha tia ficou

DO AMOR INCONDICIONAL - 1-DO PODER

Nesta pluralidade que é a natureza, nesta obra dos acasos ou de causas superiores insondáveis, há seres cuja beleza cativa o mundo. A beleza é o argumento mais forte do poder. Dança à sua volta, danças do ventre, sensuais, húmidas, viciantes. Sabe rodeá-lo e tecer a sua teia invisível mas inquebrável, ata-o de mãos e pés, imobiliza, inteiramente hipnotizado. Perante a força irracional que irrompe de uma obra sinfónica, para pôr um exemplo de beleza superior, o homem baixa as defesas, entrega a sua sorte no embalo da música, extasiando-se é levado por essa torrente de emoções. Os efeitos dessa mistura explosiva, do casamento da beleza com o poder leva os seres a atitudes que não se alcança imaginar, coisas fora da lógica. Práticas do bem e o mal, sem noção, do bem e do mal, coisa subjectiva que leva por vezes a equilíbrios no fio da navalha. O aparecimento fugaz de um tigre listrado, meio visto, meio escondido no restolho dos arbustos, hipnotiza quem o vê e olha,