Avançar para o conteúdo principal

O Caminhante



Recorta-se a figura do senhor Sommer, caminhando de manhã à noite, pelos sendeiros que marcam os limites de uma aldeia no remoto norte da Suécia. O Senhor Sommer passou a vida em movimento, até ao último dos dias em que visto visto, pois desapareceu completamente e nunca mais se lhe deu conta, e as pessoas - como é assim -, nos primeiros dias deram pela sua falta, e depois, com o pousar do tempo, esqueceram-no.

Este homem, que deambulava com um rumo que parecia estar automaticamente inscrito na sua cabeça e decisão, existiu como personagem principal de uma história de ficção, um livro. Inventado, portanto, ou não, se concordarmos que as ficções também podem ser reais e se acreditarmos nas outras faces de mundos paralelos.

Não se sabe nem desconfia, porque consumia ele todas as suas energias e empenho, executando esse movimento monótono de pôr um pé em frente do outro.

Há quem diga que com essa monotonia se combate o tédio, o mais desaproveitado dos vazios. Outros e famosos, filósofos e afins, afirmam que é no caminhar que se desnovelam os melhores pensamentos, que levam às melhores ideias. Pertencem a esse grupo o senhor Kant, o senhor Nietzsche, o senhor Rosseau, o senhor Montaigne, e mais figuras de peso, e para não se deixar de mencionar um doutor de peso na arte das deambulações, o senhor Thoreau que escreveu Waldo ou a vida nos bosques, uma experiência do autor, que foi viver em solidão, durante dois anos, para uma pequena cabana isolada (construída por si), sendo  que as actividades principais, que lhe ocupavam o corpo e a cabeça, eram passear erraticamente pelos bosques e assistir do pequeno alpendre, ao espectáculo da natureza, deliciando-se com o seu silêncio, o seu ruído, os odores, a chuva e o sol, e a noite estrelada e imensa.

Na minha pequena vila, pouco maior do que essa aldeia imaginária nos confins do setentrião, cruzo-me todos os dias, por várias vezes, com um homem que andarilha. Todos o fazemos, mas os que o fazem com a vontade que só se vê marcada nos rostos compenetrados, é que são objecto de atenção e nota da minha parte. Os outros vão distraídos e andar é só a forma de se deslocarem de um ponto a outro, sem mais interesse nem prazer.

Ele é, o senhor Sommer do meu mundo.

A sua figura é uma simpatia. Pequeno, dando curtos passos apressados, como se fosse resolver algum assunto nas finanças, ou no banco, prestes a fecharem portas. É um homem idoso, mas bem conservado. Tem um olhar meigo, talvez tímido, e sorri quando nos cruzamos, oferecendo toda a sua gentileza no cumprimento que trocamos.

Há um ano que nos vemos praticamente todas as manhãs, quando saio com o senhor Darwin - um cão que nos adoptámos -, e noutras situações, lugares e momentos.

Estando ele ainda relativamente afastado, a descer à Fonte das Freiras, se dá conta de mim, faz-se logo efusivo, na sua maneira simples, mas cheia, de me saudar. Estamos numa fase em que já trocámos palavras circunstanciais, questões como o tempo, a saúde, e coisas sem peso.

Como sou curioso, já lhe imaginei histórias de vida, peripécias e andanças. É assim que entretenho o meu tempo, quando não ando preenchendo na minha cabeça histórias mirabolantes e outras.

Sendo a nossa comunidade curta de gentes, acabámos por coincidir num almoço de um sobrinho seu, meu novo amigo.

Lá estava ele, perplexo quase, de me ver ali. É o senhor Manuel. Encantador, pouco conversador (a esposa ocupa-se da conversa pelos dois), mas magnético, a atrair-nos para si.

Acabou por me confessar que caminhar era uma forma de passar o tempo e se distrair, já que quando se é velho, este, demora uma eternidade a consumir.

Vejo o senhor Manuel como uma ideia conseguida de liberdade. Na lentidão dos seus pequenos passos apressados, domesticou a clepsidra, treina a eternidade que se lhe avizinha. Quando esta vila que é quase e só uma aldeia, vier a estar arquivada na carteira das coisas distantes, e não passar já de um sonho seu, esse espaço material onde agora faz longas caminhadas, sem se deter nem descurar a simpatia natural que mantêm, como um sedutor com rosto de menino, existe uma probabilidade ainda que mínima, de os dois, ele e Sommer se encontrarem, e cada um, sem necessidade de falarem, pôr um pé diante de outro, e cada um nos seus, partilharem o prazer dos papa-léguas, andadeiros pelas nuvens, exercício que será de pouca dificuldade, mas de enorme prazer.

Tenho os calcorreadores em grande estima, e neste meu universo pequenino, há alguns de grande calibre, e digo isto porque os vejo a caminhar decididamente, dando voltas à vila, ao campo de futebol, na única avenida que temos digna da sua extensão, mas o senhor Manuel é o meu preferido, porque irradia harmonia, naqueles seus mínimos passos tão elegantemente executados, parece até que flutua, fosse ele dado a coisas místicas ou religiosas.

E mais agora, com minúcia e cuidado o observo, que sendo conhecidos, podemos deixar de falar de coisas circunstanciais e explorar a curiosidade um do outro.

 

 

Comentários

Mensagens populares deste blogue

BERLINDES

Eram berlindes e guelas, os primeiros mais pequenos, os outros, mais vistosos, abafavam os berlindes. Eram de vidro cheios de cor, muitas, com padrões que davam ao girar a sensação de movimento encantatório. Compravam-se nas papelarias de bairro, pequenas superfícies habitualmente familiares que vendiam de tudo de uma forma absolutamente eficaz e personalizada. Estabelecimentos, não superfícies, designações de um presente deselegante, um nome que soa estranho e é frio. Os proprietários e os empregados sabiam os nossos nomes. Podíamos levar e pagar depois, numa contabilidade honesta que se fazia no livro dos devedores, preenchido a lápis de carvão. Este calhamaço era uma história do negócio, onde se desfiavam listas de nomes e produtos e datas. Raramente era usado para lembrar os atrasos: ninguém queria estragar relações de boa vizinhança, num tempo em que a honra e a honestidade eram valores não transacionáveis. Uns buracos no chão com uma distância entre si, medi

AI DO QUE GOSTEI E DO QUE GOSTO

  Gostei da alcofa pousada na marquise onde entrava o sol com abundância e a minha avó costurava. Gostei do colo da minha avó.   Gostei que me afagasse os lençóis ao deitar.   Gostei de alguns tons escuros, os das noites, outros não.   Gostei do silêncio da noite, gostei em geral dos silêncios. Gostei de ouvir num radio a pilhas músicas que me fizeram sonhar sonhos bons. Gostei do cão Tôto, de caça, onde cavalguei no pátio, a imaginar-me cavaleiro. Gostei daquela casa onde só me lembro do parapeito da janela, onde presumo que aos fins de dia eu e a minha avó víamos as pessoas a passar na rua e nós, abeirados do beiral as cumprimentávamos. Gostei de odores que já não identifico. Gostei da tia Rosa, mulher ainda mais pobre que nós a quem dávamos de comer e ela, em troca, me dava todo o seu amor porque nunca teve ninguém seu. Era eu. Gostei do carro de bombeiros que o meu avô me ofereceu. Tinha uma sirene. Era único. Gostei do primeiro livro de quadradinhos, contava

COPOS E GAJAS BOAS, DE PREFERÊNCIA

De manhã se começa o dia, dizia a minha querida avó, mulher avisada, que vestia de preto, tinha um buço pronunciado e gostava da pinga às escondidas. Como quem sai aos seus, aos seus sai, já enfiei dois medronhos, para dar energia a enfrentar o dia que dá trabalho, e até chegar ao fim, é uma peregrinação quase religiosa ao botequim do chico. Pelo menos tenho fé em ir lá, é uma espécie de purificação do meu interior. Agora só bebo sininhos, estou em dieta alcoólica, só pequenas quantidades (de cada vez claro). Não se pode dizer que saia caro. Cada sininho são 30 cêntimos. Um copo de três, cinquenta cêntimos. Apesar de alguém desavisado poder estar em desacordo (está longe, não vê, está mal informado), sou uma pessoa poupada: só bebo um de cada vez. Se descontar de todos os que bebo, as ofertas, os brindes às efemérides de cada parceiro que frequenta o botequim, e os que o Chico se esquece de cobrar, gasto realmente muito pouco. Sou portanto no Sul, um dos homens mai

CAVALO-MARINHO

  Na distância do tempo que leva a vida a passar, as imagens mais antigas confundem-se, fundem-se mesmo, é difícil apurar certezas. Vejo-me a olhar fascinado e miúdo, a primeira vez, um cavalo-marinho. Ressequido, mas conservado, pousado na palma da minha mão. Se na altura conhecesse uma palavra mais pomposa do que renda, diria filigrana. Aconteceu quando estava de visita a uma casa liliputiana, de tios meus. A meu ver uma casa cheia de misteriosos e pequenos tesouros, que ia descobrindo na curiosidade de criança, abrindo gavetas e mexendo em prateleiras. Uma casa que tinha um olho de vidro da vista direita da minha tia, pousado no fundo de um copo cheio de água na mesa de cabeceira, a olhar para mim com um olhar espantado, esgazeado, e eu a olhar para ele, a princípio receoso,  depois a querer saber o que havia por trás de um olho, já que os vemos sempre colocados nas órbitras dos usufrutuários e não sabemos o que está por trás. Este olho de vidro é a prova óbvia que a minha tia ficou

DO AMOR INCONDICIONAL - 1-DO PODER

Nesta pluralidade que é a natureza, nesta obra dos acasos ou de causas superiores insondáveis, há seres cuja beleza cativa o mundo. A beleza é o argumento mais forte do poder. Dança à sua volta, danças do ventre, sensuais, húmidas, viciantes. Sabe rodeá-lo e tecer a sua teia invisível mas inquebrável, ata-o de mãos e pés, imobiliza, inteiramente hipnotizado. Perante a força irracional que irrompe de uma obra sinfónica, para pôr um exemplo de beleza superior, o homem baixa as defesas, entrega a sua sorte no embalo da música, extasiando-se é levado por essa torrente de emoções. Os efeitos dessa mistura explosiva, do casamento da beleza com o poder leva os seres a atitudes que não se alcança imaginar, coisas fora da lógica. Práticas do bem e o mal, sem noção, do bem e do mal, coisa subjectiva que leva por vezes a equilíbrios no fio da navalha. O aparecimento fugaz de um tigre listrado, meio visto, meio escondido no restolho dos arbustos, hipnotiza quem o vê e olha,